Os engenheiros do caos e a banalidade do mal  

Por Leonardo Pinto de Magalhães

A filósofa Hannah Arendt apresenta no livro Eichmann em Jerusalém o conceito da banalidade do mal. Segundo a autora, esse conceito se refere aos nazistas (ou indivíduos em outras épocas da história) que participaram de atrocidades “apenas” cumprindo ordens. Assim, pessoas como Eichmann seriam destituídas da capacidade de pensar por si próprias – e a banalidade do mal se instala nesse espaço institucional criado pelo não pensar.

Olhar para a atualidade e analisar como a banalidade do mal se instalou em processos políticos de diferentes países é uma das propostas do livro Os engenheiros do caos (Vestígio, 2019), escrito pelo italiano Giuliano Da Empoli.

Giuliano é jornalista, escritor e também criador do think tank Volta. Logo no início do livro ele cita uma frase de Woody Allen: “Os maus, sem dúvida, entenderam alguma coisa que os bons ignoram”. Um primeiro aspecto que os maus entenderam, como demonstrado no livro, são formas de manipular as redes sociais e os dados que elas produzem.

Um exemplo destacado foi a campanha para o Brexit (retirada do Reino Unido da composição da União Europeia). Uma grande equipe de físicos foi contratada para analisar dados e, assim, identificar perfis que já apoiavam o projeto de separação e também aqueles que seriam suscetíveis a tal apoio. Com esses perfis definidos, então era possível o envio de propagandas personalizadas, abordando temas específicos que interessassem a essas pessoas.

Às vezes as mensagens enviadas eram contraditórias: para grupos envolvidos na defesa dos animais eram mandadas propagandas mostrando como a União Europeia era relapsa na proteção ambiental, enquanto pessoas adeptas da caça esportiva recebiam mensagens totalmente antagônicas ao do outro grupo. Essa contradição não é mero acaso, mas projetada para causar o caos. A confusão é uma oportunidade para ganhar adesões a projetos autoritários.

Giuliano também descreve que, em 2015, a crise na Síria levou um grande fluxo de imigrantes para a Europa, em busca de uma vida melhor. Diferentemente de outros políticos, o primeiro ministro da Hungria, Viktor Orbán, se aproveitou do caos para consolidar seu projeto político. Os imigrantes que passavam pela Hungria não tinham a intenção de permanecer no país, seu objetivo era chegar até a Alemanha e outros países, mas Orban e sua equipe dispararam campanhas que pregavam o contrário.  Além disso, aprovaram um projeto de lei em tempo recorde para construir uma barreira de 175 quilômetros no país. Esse projeto tinha a justificativa de manter os imigrantes longe, mas, ao contrário, causou uma demora maior em seu deslocamento e, com isso, gerou a impressão de que o país estava com um número ainda maior de estrangeiros. A campanha foi tão intensa que os imigrantes foram agredidos por cidadãos húngaros, tiveram seus acampamentos queimados e foram presos pela polícia. A cena mais significativa do caos instalado foi a de um imigrante recebendo a rasteira de uma cinegrafista durante um programa ao vivo na televisão.

A confusão gerada por campanhas difamatórias tem como objetivo aproveitar o caos da reação em cadeia e instalar a banalidade do mal, como descrita por Arendt. Mas, agora, aponta Giuliano, a banalidade não se dá mais em uma canetada de um burocrata como Eichmann. A maldade é exercida nas redes sociais através de cliques e compartilhamentos.

O autor, na introdução de Os engenheiros do caos, cita a passagem de Goethe pela Itália no século XVIII. Encantado com o país, escreveu sobre diversos aspectos da cultura italiana, como o carnaval, e como essa festa, tão comemorativa, podia em segundos se tornar um ambiente de caos e violência. Bastava para isso que alguma centelha, incentivada pelo anonimato da multidão, despertasse o ódio reprimido durante todo o ano pelos italianos. Para o autor, o comportamento incentivado pelos engenheiros do caos nas redes sociais segue o mesmo princípio. A presunção de ser anônimo, o incentivo ao ódio e a polarização levam a que a maldade deixe de ser um sentimento individual e passe a ser um comportamento coletivo. Os engenheiros do caos incentivam que as pessoas ajam sem pensar por si, uma reação em manada baseada no ódio.

Ao ler Os engenheiros do caos ficamos com a impressão de estarmos vendo muita coisa que já sabemos. Porém, o livro é um ponto inicial para aprofundar no tema da manipulação das redes com fins partidários. Além disso, serve para nos lembrar da frase de Allen e atentar para questões que os maus possam entender primeiro. Afinal, as redes sociais não são novidade e foram por anos negligenciadas no debate público. O livro termina com uma conclusão positiva, mostrando que entender as mudanças sociais é primordial para todos os democratas que desejam retomar as rédeas da política e impedir o vácuo em que se instala a banalidade do mal.

Leonardo Pinto de Magalhães é doutorando em engenharia de sistemas agrícolas (USP) e aluno da especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)