Moda: do glamour ao furor científico

Por Bruno de Sousa Moraes e Beatriz Guimarães

Historicamente marginalizados no meio acadêmico, os estudos da moda mostram expansão no Brasil e no mundo, abrangendo diferentes áreas e consolidando o vestir como parte essencial das sociedades.

A questão da moda não faz furor no mundo intelectual. A frase, escrita pelo filósofo e sociólogo francês Gilles Lipovetsky no livro Império do efêmero, data de 1987. Ela marca uma época em que poucas pessoas envolvidas na pesquisa científica — e na tomada de decisões a respeito do que se estudava nas universidades e centros de pesquisa — levavam o estudo da moda a sério.

Mais de trinta anos depois, ainda que continue a aparecer em dissertações de mestrado e teses de doutorado, a frase de Lipovetsky precisa ser repensada. Hoje, as causas e os efeitos do vestir são investigados em grupos de pesquisa de diferentes universidades do Brasil e do mundo, provocando um crescimento na produção acadêmica e nos eventos relacionados ao tema. Porém, no Brasil, ainda são raros os programas de pós-graduação voltados especificamente à moda, fazendo com que o assunto seja tratado nas interseções de outros campos – como história, antropologia, sociologia e comunicação. Afinal, entre avanços e desafios, já é possível dizer que a moda causa, sim, furor no mundo intelectual?

Foi por conta do interesse pelos estudos de gênero que Maria Claudia Bonadio, hoje professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), começou a se aproximar da moda. Durante a graduação em história, na Unicamp, ela se viu intrigada por um pequeno livro chamado A moda, de Amélia de Rezende Martins (1877-1948), autora conhecida por ser filha do barão Geraldo de Rezende. “Achei que seria um livro ilustrado, com roupas da baronesa. Mas, na verdade, era um panfleto que ela havia escrito contra a moda da década de XX e contra as melindrosas – que ela considerava prostitutas”, explica Maria Claudia. Partindo desse manifesto de repúdio escrito por dona Amélia, a pesquisadora desenvolveu um trabalho sobre a imagem feminina e o perigo que a moda em ascensão naquela época — retirando o vestido rodado e dando lugar às saias franjadas — representava às “boas moças”. É um exemplo de como o estudo das vestimentas pode abrir caminhos para novas visões sobre as sociedades, suas formas de vida e seus tempos.

Para Maria Claudia, a presença da moda na academia já não é a mesma daquela descrita por Lipovetsky no final dos anos 1980. A pesquisadora destaca que, hoje, são mais de 150 cursos superiores de moda somente no Brasil, com uma demanda crescente de mestres e doutores que possam fazer parte dessa cadeia de ensino e pesquisa. A aceitação desse tema nas mais diversas áreas de investigação também tem aumentado. “Hoje o cenário das universidades é muito diferente do que era em 1950, quando Gilda de Mello e Souza, nossa pioneira nos estudos de moda no Brasil, defendeu na USP o doutorado “O espírito das roupas” que, ao contrário do que acontecia com grande parte dos doutorados, não virou livro de imediato”, lembra Maria Claudia. Foi apenas em 1987, 37 anos após a defesa, que o trabalho foi publicado como livro. A pesquisa, feita numa época em que a moda era vista como futilidade ou como “assunto de mulher”, passou a ser considerada visionária por relacionar moda, arte, história, corpo e gênero.

Em 2010, Maria Claudia publicou um mapeamento da produção acadêmica em moda e temas afins no Brasil, enfocando especificamente pesquisas de mestrado e doutorado. Ela encontrou 533 trabalhos catalogados desde 1950 — quando Gilda de Mello e Souza marca a inserção da moda no meio acadêmico nacional — até o final de 2010. A maioria dessas pesquisas foi desenvolvida em universidades públicas, em áreas como antropologia, ciências sociais, administração, sociologia, história, engenharia de produção e comunicação. Agora, Maria Claudia realiza um novo levantamento, do período de 2011 a 2017. O estudo ainda não foi finalizado, mas ela adianta que houve crescimento expressivo nessa produção, com pelo menos mais 500 trabalhos catalogados.

A professora e pesquisadora Marizilda Menezes, docente do Departamento de Artes e Representação Gráfica da Unesp, também tem se dedicado a mapear a produção acadêmica em moda no Brasil. Desde 2008, ela mantém o site “Design de moda: referencial de pesquisa científica”, que funciona como um inventário de pesquisas de pós-graduação desenvolvidas sobre esse assunto. As categorias temáticas criadas para organizar os trabalhos trazem uma ideia da diversidade que o assunto alcança: relações de trabalho ao consumo, responsabilidade social, inovação tecnológica, modelagem, ensino.

De acordo com Marizilda, essa pluralidade de visões e caminhos de pesquisa se deve a particularidades do Brasil, um dos poucos países que têm em seu território a cadeia completa de produção e consumo da moda, desde o plantio do algodão até a criação e venda das coleções. Essa estrutura fornece um rico material para quem deseja estudar diferentes aspectos da moda e suas relações com a sociedade. Marizilda, por exemplo, perpassou variados tópicos ao longo de sua carreira, como o papel da tecnologia na criação e na produção do vestuário e a influência que os fenômenos sociais podem ter nas roupas. E, assim como Maria Claudia, ela acredita que a recepção da moda no meio acadêmico está mudando. “Hoje a moda faz furor, sim. Deixou de ser uma coisa que é só glamour para se tornar um campo de pesquisa”, diz.

Outro sinal de que a moda está em ebulição na academia brasileira é o fato de que o país é sede do Colóquio de Moda, um dos eventos mais importantes desse campo no mundo. Em setembro deste ano foi realizada a décima quarta edição, juntamente com o Fórum das Escolas de Moda e Congresso de Iniciação Científica em Design e Moda. A cada ano, são apresentados entre 300 e 500 trabalhos, e recebidos de 700 a 1000 inscritos, reunindo pesquisadores, docentes e estudantes de programas de graduação e pós-graduação em moda, design, artes, história, psicologia, sociologia, economia, administração, marketing, publicidade, jornalismo, entre outras áreas.

E, se o assunto é a publicação de artigos, o Brasil tem iniciativas como a revista dObra[s], publicada semestralmente desde 2007 e editada pela Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Moda (Abepem) desde 2014. A revista é produzida em parceria com a editora de livros acadêmicos Estação das Letras e Cores, que, além da dObra[s], também conta com um acervo de livros sobre moda com mais de cinquenta títulos.

Um ajuste de perfil

Para Maíra Zimmermann, historiadora e professora da graduação em moda da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e da pós-graduação em moda e criação da Faculdade Santa Marcelina, existem três pontos principais que merecem atenção para que a pesquisa em moda no Brasil possa se fortalecer. O primeiro tem a ver com as instituições que oferecem o curso, e com o perfil das mesmas. “Existem cursos de moda em algumas faculdades públicas, como a USP, a Udesc, UFJF e UFG. Mas a maior parte ainda está nas particulares, e é nas universidades públicas que se tem pesquisa. Nas particulares, essa realidade é mais distante”.

Maíra — que também chegou à moda indiretamente, por meio da pesquisa em história — diz ainda que o número pequeno de instituições de ensino superior públicas que oferecem o curso de moda se reflete em um problema ainda maior quando o assunto é pós-graduação. A maior parte é profissionalizante e não acadêmico. Interessados em desenvolver pesquisas com esse tema acabam recorrendo a áreas relacionadas, em programas de pós-graduação em arte ou história, por exemplo. Maíra, que teve a oportunidade de estudar em um dos poucos cursos de mestrado em moda do Brasil, a hoje extinta pós-graduação em moda, cultura e arte do Senac, se viu obrigada a continuar o doutorado em história.

Durante o doutorado, realizou um intercâmbio no London College of Fashion, da Universidade de Artes de Londres, o que proporcionou à pesquisadora uma visão das diferenças no panorama da pesquisa em moda dentro e fora do Brasil. Além de terem um número maior de cursos de mestrado e doutorado em moda, países como a Inglaterra chamam a atenção pela proximidade entre a academia e a cadeia produtiva do setor. “Uma das minhas percepções é a dificuldade, no Brasil, de relacionar indústria, mercado e academia. É quase como se uma coisa não estivesse relacionada à outra. Em Londres vi que tudo isso é mais conjunto”, diz. E esse distanciamento entre a academia e o mercado acaba se refletindo no perfil das turmas de graduação. “A área da moda no mercado de trabalho tem crescido. Geralmente, o perfil do aluno que vai fazer moda, não quer ir para a academia”, completa.

De fato, os principais resultados na internet sobre as opções de carreira para bacharéis em moda no Brasil sequer citam a pesquisa acadêmica como uma possibilidade. Fica para docentes como Maíra Zimmermann o esforço de tentar impulsionar seus estudantes a se manterem na universidade após a graduação: “Eu brinco com as minhas alunas: “vocês querem saber qual a tendência? A tendência é o conhecimento”. Porque a gente tá precisando de repertório”, brinca.

O fato de as três pesquisadoras com as quais a redação da ComCiência conversou para elaborar esta matéria terem projetos tão distintos aponta o quão diverso pode ser esse repertório. Enquanto Maria Claudia Bonadio estuda o impacto cultural das telenovelas na percepção do que está ou não na moda, Maíra Zimmermann se volta à juventude e à contracultura. Já Marizilda Menezes cataloga pesquisas sobre uma imensidão de assuntos, incluindo estudos sobre tecnologia e cadeia produtiva, formação profissional de designers de moda e as repercussões sociais da indústria têxtil.

E faz sentido que o repertório de pesquisas seja amplo e diverso. “A roupa é a segunda pele, é o primeiro presente que a gente ganha quando nasce”, diz Menezes. E completa: “O conforto, a comunicação, a forma de estar no mundo. A roupa tem todas essas visões”.

Bruno de Sousa Moraes tem graduação em ciências biológicas (UFRJ), mestrado em ecologia (UFRJ) e é aluno do curso de pós-graduação em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.

Beatriz Guimarães é jornalista formada pela PUC-Campinas, cursa mestrado em divulgação científica e cultural (Labjor/Unicamp).