Necropolítica e genocídio: política de morte em ação

Por Flávio Gomes-Silva e Renan Augusto Trindade

crédito da imagem: Manny Becerra/Unsplash

Conceitos se articulam por meio de um mecanismo fundamental: o racismo

Nos últimos anos, as palavras “necropolítica” e “genocídio” têm aparecido de forma recorrente – embora nem sempre correta – nos noticiários e nas redes sociais. São termos que já vêm se combinando ao longo de séculos, e o Holocausto contra os judeus durante a II Guerra Mundial costuma ser tomado como exemplo clássico dessa articulação. Ela também pode ser identificada, por exemplo, nas políticas de morte contra populações negras e indígenas no Brasil, que perduram desde o período colonial.

Necropolítica é a política que subjuga a vida ao poder da morte, sendo executada por quem detém o poder, como o Estado e o mercado. Ela é regulada pelo racismo, por meio do qual se definem quais povos ou grupos de pessoas matar ou simplesmente deixar morrer. Nesse contexto, crimes de genocídio podem acontecer.

O conceito de necropolítica foi apresentado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe em um artigo publicado na revista científica Public Culture, em 2003. “Necropolítica é um conceito que define a própria política. Mas, se não utilizamos o [prefixo] necro-, não conseguimos enunciar o que é preciso acerca da política”, afirma Suze Piza, filósofa e pesquisadora da Universidade Federal do ABC (UFABC). Segundo ela, no início, o conceito era muito atrelado à ideia de certa governamentabilidade, de gestão de populações, mas hoje pode ser compreendido de maneira mais ampla, como o processo de articular e formalizar tudo o que diz respeito à vida, mas associando essa formalização à morte e à destruição.

Ao apresentar o conceito, Mbembe dialoga com importantes autores europeus, mas sob uma perspectiva decolonial. Nos estudos decoloniais, pensadores do Sul Global – territórios marcados por um histórico de exploração colonial – escrevem a partir da experiência de opressão, violação e exclusão, valorizando perspectivas e saberes locais e recusando a leitura eurocêntrica de história, ciência política, economia, filosofia. Piza afirma que “Mbembe vem dessa tradição: ele chama o italiano Giorgio Agamben, a alemã Hannah Arendt e o francês Michel Foucault para conversarem, mas tira as próprias conclusões e vai além”.

A referência a Foucault, por exemplo, transcende a mera contraposição ao conceito de biopolítica introduzido pelo filósofo. “Quando Foucault pensa na biopolítica, ele percebe o Estado moderno racista deixando de fazer uma gestão especificamente dos territórios e passando a fazer uma gestão das populações, mas sob um controle não necessariamente vinculado à destruição”, analisa a pesquisadora da UFABC. Ela explica que Mbembe, por sua vez, percebe na própria política o objetivo de destruição e de manejo para esse fim.

Racismo, a engrenagem da necropolítica

Na rede conceitual da necropolítica, o racismo é fundamental, pois ele se articula com o Estado e a violência institucionalizada. Mbembe identifica isso em vários momentos da história: na relação dos judeus contra os palestinos em Israel, dos alemães contra os judeus no Holocausto, dos europeus contra os africanos nas plantations.

Piza explica que Mbembe percebia o capitalismo neoliberal criando condições para que fatos ocorridos com a população negra se reproduzissem mundialmente, “porque existe um aprendizado técnico no racismo: o manejo da morte, a forma de tornar os corpos supérfluos”. A pesquisadora pondera que isso não se restringe ao manejo de corpos negros, “embora esse seja o grande exemplo por conta da abrangência e da forma como o sequestro, a mutilação e a violência marcaram a construção da modernidade”. Em suma, as experiências do racismo ajudam a entender a regulação dos corpos e dos materiais ligados a esses corpos no espaço, fornecendo técnicas de manejo de destruição da vida e ensinando a modelar a própria política.

Psicóloga social e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Paula Gonzaga complementa que o racismo não pode ser reduzido a uma leitura sobre preconceito restrita ao campo de atitudes individuais: “o racismo está pautado na hierarquização da sociedade que se instaura a partir de um projeto colonial que estabelece quem são os humanos e os não humanos e, a partir daí, constrói estratégias de naturalização da barbárie e de autorização para que ela aconteça”.

Piza acrescenta que, “quando mudamos a perspectiva, percebemos a determinação de um mesmo tipo de pensamentos, práticas e pessoas no poder, o que define todo o resto que fica de fora”. Nesse sentido, pode existir um conjunto de discriminações, além da racial, que passa a nortear a necropolítica.

Genocídio como projeto necropolítico

Do ponto de vista filosófico, a pesquisadora da UFABC explica que, quando há projetos políticos de morte em massa, isso pode caracterizar o genocídio. No entanto, ela avalia que é um desafio definir esse tipo de crime no âmbito da política, pois ela é atravessada por questões diversas, muitas delas com certo grau de subjetividade.

Para exemplificar, Piza comenta que, quando se deixam morrer determinados grupos, não se trata de exterminá-los, mas de simplesmente deixá-los morrer – com ausência de políticas públicas, por exemplo – mas isso pode não ser caracterizado como genocídio. Outra situação acontece “quando o conhecimento de um povo é silenciado, invalidado, impossibilitado de se reproduzir como conhecimento e ser reconhecido em sua verdade”. Embora não se mate, a filósofa explica que “isso faz desaparecer pessoas, singularidades, subjetividades, identidades, que são parte fundamental do que somos como humanos. Se sobrevivem corpos depois disso, são corpos outros, modificados, formatados por outras culturas, por outros modos de vida”.  Ela também propõe pensar “no avanço do neoliberalismo, que transforma sujeitos históricos em prestadores de serviço, esvaziados, sem interioridade”. Ao trazer esses exemplos, a pesquisadora incita à reflexão: são ações coordenadas para eliminação de grupos? São projetos de morte em massa? São genocídios?

No caso do genocídio negro, Vivane Cunha, psicóloga social e pesquisadora da UFMG, explica que “a eliminação física é a parte geralmente mais visível da estrutura racista que traz todo um processo de desumanização, de não reconhecimento das vidas de pessoas negras, que se constroem simbólica, subjetiva e psiquicamente, na sociabilidade, na maneira de se relacionar, nos afetos”. Ela acrescenta que, após a eliminação física, persiste uma continuação da morte em sua dimensão simbólica, pois “a destruição da memória também é uma forma de perpetuar o genocídio negro”.

Segundo Gonzaga, desde o Brasil Colônia, passando pelo Império até a República, sempre se empreenderam estratégias de aniquilação de povos negros. Ela cita, como exemplos recentes, o processo de esterilização compulsória de mulheres nos anos 1980 e as chacinas que marcaram a década seguinte, eventos em que pessoas negras foram as vítimas principais. “Essas estratégias de aniquilação não foram superadas. Ainda há chacinas, ainda há esterilização e tudo isso acontece ao mesmo tempo. São muitas estratégias de aniquilação em curso e se atualizando”, arremata.

Cunha acrescenta que após a abolição da escravatura “outros mecanismos de dominação dos corpos negros foram sendo arquitetados e muito disso se deu por processos de criminalização”, inclusive de aspectos culturais, religiosos e dos modos de vida. Com isso, a associação da negritude à criminalidade passou a respaldar o Estado e a sociedade a marginalizar populações negras e a manter seu genocídio em curso.

Quando se analisa a situação dos indígenas, como “são populações minoritárias, um povo que seja composto de duas a 10 pessoas, mas que têm uma língua própria e um modo de viver, de lidar com o território que ocupa, de ter uma cosmologia, um conhecimento ao mesmo tempo físico e metafísico próprios, se isso desaparece, constitui genocídio”, explica a cientista social e pesquisadora Artionka Capiberibe, da Unicamp, e pesquisadora visitante na Universidade da Califórnia. Ela acrescenta que, como boa parte das populações indígenas vive na Amazônia Legal, ocupando territórios que contêm riquezas, sua existência é encarada como empecilho para o desenvolvimento, sob uma lógica totalmente predatória. Essa visão reflete um plano econômico que se apoia no projeto político de desmantelamento de órgãos de proteção ambiental e indígena e de impunidade a invasores de terras.

Capiberibe pontua que existe um genocídio físico, por ação ou inação do Estado, que perdura desde o período colonial: povos indígenas foram escravizados e dizimados; a ditadura militar (1964-1985) perpetrou assassinatos em massa de populações amazônicas; o extenso Relatório Figueiredo, de 1967, descreve décadas de violência contra indígenas. A pesquisadora também lembra o que tem ocorrido com os Ianomâmi: “a invasão garimpeira mata por armas, mas também mata por doenças, mata porque desmata e polui rios, fazendo com que peixes desapareçam, a comida desapareça, a possibilidade de caça reduza, então impacta todo o bioma, e isso impacta os indígenas”.

A pesquisadora acrescenta que existe outro processo de genocídio que ocorre dentro de marcos supostamente legais: “é a tentativa de fazer com que populações indígenas deixem de existir enquanto povos diferenciados por meio de leis”. As diretrizes de integração dos indígenas à sociedade não indígena, por exemplo, acabam por privá-los de suas terras e relegá-los a uma vida dependente e precarizada.

Todo esse panorama embute um racismo que “não está só na pele dos indígenas, está também em todo universo epistemológico deles, nos conhecimentos, nos modos de ser e viver, que estão sendo negados, porque perturbam as concepções de desenvolvimento vigentes”, conclui Capiberibe.

Do resgate dos conceitos a novas descobertas

Como políticas de morte são explícitas em regimes fascistas, nas ditaduras e em políticos de extrema-direita, é comum associar a necropolítica a apenas determinados governos, ignorando sua onipresença histórica na política brasileira e mundial. Como afirma Piza, “essa discussão é muito importante, porque implica reconhecer a forma como a modernidade concebe a política. O Brasil sempre foi laboratório de horror da modernidade e infelizmente nunca deixou de sê-lo, ainda que tenhamos tido políticas de ação afirmativa nas universidades ou para diminuir ou apaziguar um pouco o racismo”.

A necropolítica está arraigada ao modo como os Estados modernos se estruturaram ao longo do tempo, o que se deu através de um processo nocivo de transformação e maturação que se estende à contemporaneidade. Enfrentando isso, talvez a política possa vislumbrar um processo positivo de mudança e renovação. O resgate de conceitos auxilia nessa trajetória, pois permite entender e interpretar a realidade. Piza acrescenta que é preciso ir além: “os conceitos também devem ser usados para mobilizar conhecimentos e fazer novas descobertas”. Dessa articulação pode-se transformar a forma de se fazer política e a convivência em sociedade.

Flávio Gomes-Silva é mestre em botânica e biologia evolutiva e aluno da especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.

Renan Augusto Trindade é formado em física (USP) e aluno da especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.