O geronticídio no Brasil da pandemia

Por Samuel Ribeiro dos Santos Neto [Foto: Jefferson Peixoto/Fotos Públicas]

Principal grupo de risco para a covid-19, população idosa lida com outros riscos à saúde e enfrenta preconceitos.

Os mais de 28 milhões de brasileiros acima de 60 anos têm vivido tempos difíceis. Afinal, eles correspondem ao principal grupo de risco para desenvolver formas graves da covid-19, com mais chance de hospitalização e óbito. Mas a história não para aí. Num país marcado por desigualdades, a pandemia evidencia preconceitos e traz outros impactos durante o isolamento social.

Das mortes por covid-19 registradas até 25 de maio no Brasil, quase 70% correspondem a pessoas com mais de 60 anos. O envelhecimento costuma vir acompanhado de uma menor eficiência do sistema imunológico e maior vulnerabilidade a doenças infecciosas. Além disso, a presença de comorbidades – como doenças cardíacas e diabetes, que também são fatores de risco para o coronavírus – torna-se mais comum com o passar dos anos, a depender da qualidade de vida de quem envelhece.

“No Brasil se envelhece mal e precocemente. Comorbidades que na Itália, na Espanha, na França, você espera ter talvez aos 80, aqui nós temos aos 50”, afirmou o médico e pesquisador de saúde pública Alexandre Kalache, durante um webinar recentemente transmitido pela Faculdade de Saúde Pública da USP e intitulado Idosos e a pandemia do covid-19 no Brasil: o que fazer para evitarmos um geronticídio?.

Kalache, que é ex-diretor do Programa Global de Envelhecimento e Saúde da OMS, ressaltou que a raiz dos problemas de saúde dos idosos no Brasil está nas desigualdades sociais, e elas foram escancaradas pela pandemia. Os mais atingidos de agora já eram os mais atingidos de antes. “O normal era parte do problema”, afirmou.

Envelhecimento de risco

O número de brasileiros em envelhecimento que apresentam morbidades de risco para covid-19 grave é alto, segundo dados de um artigo recentemente depositado em versão pre-print na plataforma Scielo e que está em avaliação nos Cadernos de Saúde Pública, publicado pela Fiocruz.

No estudo, pesquisadores de várias instituições analisaram os dados do ELSI-Brasil (Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros) e constataram que metade da população em estudo acima dos 50 anos – cerca de 22 milhões de pessoas – apresentou multimorbidade (duas ou mais doenças) de risco para covid-19 grave. Entre as doenças mais presentes estão as cardiovasculares e a obesidade.

Segundo Bruno Pereira Nunes, professor da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas e primeiro autor do artigo, a transição demográfica ocorreu de forma rápida no Brasil e o sistema de saúde, subfinanciado, não teve condições de atender a população idosa da melhor forma possível. A desigualdade social afeta a questão da multimorbidade, mas análises mais específicas da relação entre indicadores socioeconômicos e doenças são difíceis de serem feitas. “Grande parte das pesquisas partem da informação diagnosticada por médico. O acesso aos serviços é desigual, então fica a questão: as pessoas não têm a doença ou não foram diagnosticadas?”, explicou Nunes.

O pre-print aponta que a presença de multimorbidade e de uma pior situação de saúde é maior entre pessoas com menor nível de escolaridade, mais comuns nas camadas sociais mais pobres. “Além de todas as vulnerabilidades antes da pandemia, o vírus também pode ser mais prejudicial a elas”, apontou o pesquisador, ressaltando que uma saúde já fragilizada favorece as evoluções graves da covid-19. Por isso o acompanhamento adequado das morbidades crônicas nos serviços de saúde é fundamental. Mas, com a necessidade do isolamento, parte desse manejo tem sofrido adaptações.

“Boa parte das ações e mudanças já poderiam ter sido feitas para melhorar e modernizar os serviços da atenção primária pré-pandemia”, afirmou Nunes, citando a separação de fluxos de sintomáticos respiratórios dos demais usuários do serviço de saúde, o aumento de ações de acompanhamento à distância (via internet ou telefone) das pessoas com doenças crônicas e o apoio à saúde mental de quem está em isolamento.

Ficar em casa e ficar saudável

Em reportagem recentemente publicada pela Agência Fapesp, pesquisadores da USP alertaram para os riscos à saúde que o sedentarismo prolongado durante a quarentena pode trazer, sobretudo aos idosos e pessoas com doenças crônicas como diabetes, hipertensão e obesidade. Além da piora das morbidades, a inatividade física agrava a perda de massa muscular, fenômeno que já ocorre no envelhecimento. É o que reforça Marco Carlos Uchida, professor da Faculdade de Educação Física da Unicamp.

“O envelhecimento está associado à diminuição da massa muscular, mas principalmente da força e da função física. Isso significa que os idosos têm diminuídas as capacidades de realizar atividades da vida diária de forma plena e eficiente, culminando na perda da independência”, explicou. O “destreinamento” causado pelo sedentarismo impacta a saúde dos idosos em vários aspectos, e pode piorar um quadro da saúde pública que já é grave.

No contexto das desigualdades brasileiras e de uma população que envelhece mal, a pandemia de inatividade física torna tudo mais difícil. A OMS recomenda a prática semanal de pelo menos 150 minutos de atividade física para ter uma vida saudável, mas o isolamento social tem dificultado isso. A prática de exercícios via internet por vídeos no Youtube ou no Instagram, por exemplo, tem sido uma alternativa para não ficar parado, mas esses recursos não são familiares ou acessíveis a todos.

Segundo Uchida, o uso da tecnologia ainda pode ser um desafio para algumas pessoas mais velhas, sobretudo aquelas com menor escolaridade. “Nesse momento de pandemia, essa é uma das grandes barreiras”, comentou. “Os idosos que têm condição de utilizar esses equipamentos acabam sendo muito beneficiados. A ajuda dos filhos e netos neste momento, desde que já estejam em isolamento com eles, é muito importante”.

Preconceito e geronticídio

Além de trazer complicações à vida diária e evidenciar as desigualdades na saúde, a pandemia aflorou também o preconceito contra os idosos. É o que afirma Maria Lucia Cacciola, professora aposentada do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Em texto publicado recentemente e intitulado O sentido do tempo, Cacciola aborda como a chegada do novo coronavírus intensificou uma visão pejorativa dos idosos por parte da sociedade.

A ideia de um tempo de vida que “já passou” coloca os mais velhos em segundo plano, seja por serem vistos como um incômodo, seja pela infantilização com que são tratados, muitas vezes encoberta pela ideia do cuidado. Na pandemia, o preconceito se materializou no equívoco de enxergar o idoso não só como um indivíduo mais vulnerável às formas graves da covid-19, mas também como alguém que transmite mais a doença.

A ideia de que não compensa “investir” na vida dos mais velhos, presente nas falas controversas do ex-ministro da saúde Nelson Teich, estaria também ligada a esse preconceito. Em março, no início da pandemia, a chefe da Superintendência de Seguros Privados (Susep), Solange Vieira, teria dito a seguinte frase em uma reunião com integrantes do Ministério da Saúde: “É bom que as mortes se concentrem entre os idosos. Isso vai melhorar nosso desempenho econômico, pois reduzirá nosso déficit previdenciário”.

“Tudo é investimento para o amanhã. Não se investe em um ser que não terá muitos amanhãs”, escreve Cacciola no artigo. À reportagem, a professora afirmou que essa visão está ligada ao sistema social em que vivemos. “No sistema capitalista, quem não produz deixa de ser uma pessoa, deixa de ter uma identidade. O doente atrapalha, a velhice atrapalha, tudo isso atrapalha o sistema produtivo”, comentou.

Samuel Ribeiro dos Santos Neto é mestre em educação física pela Unicamp. Atualmente é aluno do curso de especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp e bolsista do programa Mídia Ciência (Fapesp).