O som e o sentido, de José Miguel Wisnik

por Bruno Vaiano

Há muitas obras sobre história da música – nenhuma delas exatamente um best seller – que seguem mais ou menos o mesmo roteiro: um parágrafo sobre as primeiras flautas do registro arqueológico, um capítulo curtinho sobre os gregos, algo sobre o canto gregoriano medieval e então um calhamaço de páginas sobre os compositores canônicos europeus (e só europeus) entre Bach e Debussy, sempre devidamente enaltecidos. Esses livros – que têm em comum, além do sumário, a incapacidade de dar à maioria dos leitores algum ímpeto de virar as páginas – ignoram a história da música popular do próprio Ocidente, bem como as músicas de todos os outros povos.

Em O som e o sentido, o músico e compositor José Miguel Wisnik não se amarra à cronologia clichê dos eruditos europeus, e cumpre a promessa do subtítulo: Uma outra história das músicas. Ele se interessa pelo som e o silêncio em estado puro, como ciclos de pressão e descompressão do ar captados pelos tímpanos – e em como cada civilização moldou essa matéria-prima em uma expressão cultural particular. É uma obra de divulgação científica, que entrelaça física acústica, neurociência, antropologia, história e teoria musical.

A primeira edição, lançada em 1989, vinha com uma fita cassete. Assim, quando o autor falava em série harmônica ou escala diatônica, o leitor não especialista podia ouvir esses conceitos em vez de se relegar a imaginá-los. Nas edições mais recentes, ela foi trocada por um CD e, posteriormente, por uma playlist online.

Wisnik começa o livro com duas características fundamentais de um som: sua duração e sua altura – que, na verdade, são faces da mesma moeda. Duração, é claro, diz respeito ao tempo que o músico deixa um som soar antes de interrompê-lo. Altura, por sua vez, é característica de ser mais grave ou mais agudo, que nos permite diferenciar as notas musicais umas das outras (ela não tem nada a ver com o parâmetro que você regula usando o botão de volume, que os teóricos chamam de intensidade).

Embora pareçam diferentes, altura e duração são parte de um mesmo gradiente, de um continuum – e só nos parecem distintos por causa das limitações nos nossos sentidos.

Existe um limiar inferior e um superior para a percepção do ritmo pelo ser humano. O pesquisador Stephen Hart Lehman calculou o inferior em sua tese de doutorado e chegou a aproximadamente 30 batidas por minuto (bpm). O equivalente a bater uma palma, contar dois segundos e bater a próxima. Para os padrões da música popular esse é um caminhar estupendamente vagaroso, uma mansão de espaço entre dois sons.

Qualquer ritmo mais lento viola uma limitação cognitiva denominada presente de percepção – que se pode definir como um lapso de tempo curto o suficiente para que nossos sentidos interpretem dois fatos consecutivos como se ambos estivessem no presente.

Para que o cérebro humano dê liga a uma canção, o vão entre duas notas precisa ser tão breve que a nota anterior não saia do campo da sensação e se torne uma memória. Se o ouvinte precisar se lembrar de um som para dar sentido ao som seguinte, a noção de continuidade evapora.

Na outra ponta do espectro, há o ritmo mais rápido que ainda nos permite distinguir dois sons consecutivos: algo como 600 batidas por minuto. Ou, para facilitar, dez batidas por segundo, o que os físicos chamam simplesmente de 10 Hertz (Hz). Entre 10 Hz e 15 Hz entramos em uma zona cinzenta, de indeterminação, em que cada impacto das baquetas na bateria começa a se fundir com o seguinte. Nenhum baterista, é claro, é tão rápido: é preciso filmá-lo e acelerar o vídeo artificialmente para tornar esse fenômeno audível.

Acima dos 15 Hz a fusão se completa e passamos a ouvir um som contínuo. Um apito de altura definida (ou seja: algo reconhecível como uma nota musical, ainda que usar esse termo aqui seja impreciso). Quanto maior a frequência, mais agudo o apito. A frequência mais alta que um ouvido adulto comum capta é algo como 15 mil Hz. Uma criança recém-nascida bate os 20 mil Hz, um gato atinge 65 mil Hz.

O mesmo, diga-se, acontece com a visão. Um vídeo é uma sequência de fotos passadas rapidamente. Tão rápida que seus olhos são incapazes de entender quando terminou uma foto e começou a outra. Cada foto é chamada de frame, e é a fusão dos frames que dá a ilusão de movimento.

Ritmos são como fotos, alturas são vídeos que surgem quando os ritmos são muito rápidos. Na afinação padrão adotada hoje no Ocidente, a nota Lá no centro do piano – que é parâmetro para determinar todas as outras – tem 440 Hz. Ou seja: se fosse possível usar as mãos para bater 440 vezes por segundo em um bongô, um percussionista poderia tocar a primeira nota de Stairway to Heaven.

Esse continuum entre duração e altura é a paleta de parâmetros de onde saem os sons usados para fazer músicas – do mesmo jeito que um pintor tem à disposição o gradiente de cores do arco-íris, entre o vermelho e o violeta. Ele está por trás do ritmo, que é a organização dos sons no tempo; da melodia, que é a parte que se canta; e da harmonia, que são os conjuntos de três, quatro ou mais notas (acordes) que os instrumentos tocam para dar contexto à melodia. Apesar disso, diz Wisnik, “a pedagogia musical costuma dar atenção nenhuma a essa passagem (…) em que o ritmo, a partir de certo limiar, se torna melodia e harmonia”.

Um pintor não pode usar todas as cores que existem simultaneamente – até porque há um número infinito delas: você pode fatiar o continuum do espectro eletromagnético em mil ou milhão de luzes, se quiser. As diferenças entre as cores contíguas serão imperceptíveis, é claro, mas existirão. Da mesma forma, pode-se picar o espectro de sons em qualquer número arbitrário de frequências:

440 Hz
441 Hz
441,1 Hz
441,1258383 Hz…

Toda civilização, portanto, se deparou com a questão de quais dessas alturas escolher dentre todas as possíveis. A própria natureza fornece um guia para essa curadoria, denominado série harmônica. Ela consiste no seguinte: quando a corda de um violão ou piano vibra, ela não produz apenas uma frequência fundamental – como, por exemplo, os 440 Hz da nota Lá –, mas também os múltiplos dessa frequência (880 Hz, que é o dobro, 1320 Hz, que é o triplo, e assim por diante).

O terceiro harmônico é uma frequência que está a uma quinta de distância da nota original. A quinta, no jargão musical do Ocidente, é uma das várias expressões que dizem qual é a distância, o intervalo entre duas notas. E notas que estão separadas por uma quinta soam muito agradáveis e estáveis. Cante “brilha, brilha, estrelinha”. O primeiro “brilha” é a nota de referência, o segundo “brilha” está uma quinta acima dele.

Uma das escalas musicais mais sucintas que existem – um conjunto de cinco notas chamado pentatônica – é construída a partir de sucessivos saltos em intervalos de quinta, e é uma paleta de sons fundamental para várias civilizações. Do blues à música chinesa da Antiguidade, essas cinco notas soam tão bem porque se alicerçam nos harmônicos, que são um fenômeno físico inerente a qualquer som.

A pentatônica é, talvez, a maneira favorita da humanidade de pescar, dentre o infinitesimal espectro de frequências, quais serão usadas como matéria-prima musical. Ela está embutida, inclusive, nas escalas diatônicas gregas usadas na música Ocidental: nossas sete notas nada mais são que uma pentatônica com duas notas extras (uma delas, a chamada sensível, fica a um degrauzinho de distância da nota que dá sensação de que a música terminou – e cria tensão).

Partindo dessa base de conhecimentos comuns – do que a música tem de universal – Wisnik dedica seções de tamanhos iguais ao sistema tonal (que é a base da música do Ocidente) e à chamada música modal: um termo genérico que abraça as demais tradições: árabes, indianas, balinesas, americanas nativas e até o cantochão medieval que, embora europeu, não era ainda tonal.

O livro termina – como as histórias da música comuns – com a música de vanguarda do século 20. Mas Wisnik não se esquiva de explicar o serialismo de Schopenhauer de maneira didática, nem ignora o rock, o jazz ou o gênero à parte que é Hermeto Pascoal.

A erudição de Wisnik – que, além de músico, foi professor de literatura brasileira da USP –  ajuda o texto na maior parte do tempo, ainda que atrapalhe pontualmente em momentos estratégicos. Por um lado, ele ordena as palavras com fluidez de literatura, sem a frieza de um texto jornalístico. Por outro, há longos comboios de adjetivos e devaneios poéticos no meio de explicações que, idealmente, exigiriam mais clareza.

O Som e o Sentido ocupa um nicho ambíguo na livraria. É uma obra de divulgação de ciências humanas, assumidamente didática e voltada ao público não especializado, mas escrita em estilo de ensaio acadêmico. Para quem é fã de música é um passeio pelos bastidores da arte. E para quem é da música, funciona como cola: o livro dá nexo ao conhecimento que você já tem, preenche lacunas e desvela os músicos pelo que eles são, fundamentalmente: uma longa tradição de artistas e artesãos que esculpem o ar com equações.

Bruno Vaiano é editor da revista Superinteressante e cursa a Especialização em Jornalismo Científico do Labjor-Unicamp