Pesquisa aponta aumento de insegurança alimentar e desigualdades na alimentação infantil

Cenário anterior à pandemia já indicava que quase metade das famílias com crianças menores de 5 anos (47,1%) vivia algum grau de insegurança alimentar

Por Mariana Schincariol Paes

Imagem: Agência Brasil

Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani), realizado entre fevereiro de 2019 e março de 2020, apontou que a insegurança alimentar está agravada nas regiões Norte, afetando 61,4% dos domicílios com crianças menores de 5 anos, e no Nordeste, atingindo 59,7%. Os índices são menores nas regiões Sul (36,8 %), Centro-Oeste (38,9 %) e Sudeste (39,3 %), mas ainda muito alarmantes.

“O objetivo do estudo foi levantar dados a respeito do estado nutricional das crianças menores de 5 anos de idade que possam embasar políticas públicas de nutrição infantil”, conta Dayana Rodrigues Farias, coordenadora do Enani-2019, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O cenário, porém, pode ser ainda pior. “Como a coleta de dados foi realizada antes da pandemia de covid-19, avaliamos que a prevalência de insegurança alimentar pode ser ainda mais elevada”, alerta Gilberto Kac, também coordenador do estudo, professor do Instituto de Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Má alimentação também preocupa

Assim como a insegurança alimentar, a má alimentação também é um fator agravante para a saúde das crianças, principalmente pensando nas doenças que podem surgir a longo prazo.

“No dia anterior à realização da entrevista com as famílias, 22,2% dos bebês de 6 meses a 2 anos e 27,4% das crianças de 2 a 5 anos não haviam consumido frutas nem hortaliças. A situação é mais preocupante na região Norte, onde, na véspera da entrevista, um terço (29,4%) dos bebês de até 2 anos não havia comido frutas nem hortaliças”, alerta Kac ao fazer referências aos dados levantados pelo estudo.

Para as crianças que já frequentam a escola existe o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) que garante o acesso à alimentação saudável e ajuda a minimizar o grave problema. Daniela Canella, professora adjunta e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) destaca que, conforme aumenta a adesão ao programa, a alimentação da criança melhora de maneira geral.

“Na nova resolução do PNAE as recomendações de micronutrientes foram pensadas em forma de cardápios, sem suplementação. O objetivo é garantir acesso a uma grande variedade de alimentos para suprir o aporte dos nutrientes e auxiliar a formação do hábito alimentar”, informa Canella.

Deficiência de vitamina reflete desigualdade socioeconômica

A deficiência de alguns micronutrientes estudados no Enani-2019 mostra que o acesso a determinados grupos alimentares não é democrático para o público menor de 5 anos.

“Os dados do estudo refletem a situação socioeconômica das famílias brasileiras e corroboram o cenário de insegurança alimentar. As fontes de vitamina B12, por exemplo, são exclusivamente alimentos de origem animal, como carne bovina, suína, fígado, vísceras e peixes, e a dificuldade de acesso a esses alimentos pode estar relacionada à alta prevalência de deficiência da vitamina nessa faixa etária”, afirma Kac.

Conforme identificado no estudo, a deficiência de vitamina B12 atinge 14% das crianças menores de 5 anos no Brasil, com grande diferença entre as macrorregiões: 28,5% das crianças no Norte, 14% no Sudeste, 12% no Centro-Oeste, 11,7% no Nordeste e 9,6% no Sul. As desigualdades também aparecem no recorte econômico e no quesito raça/cor. A proporção de crianças com deficiência de vitamina B12, por exemplo, é maior nas famílias mais pobres e entre as crianças pretas.

Outro ponto relacionado ao consumo de carne é a anemia, uma vez que a absorção de ferro em alimentos de origem animal é mais fácil do que em relação aos alimentos de origem vegetal, como destaca Susana Marta Isay Saad, professora no Departamento de Tecnologia Bioquímico-Farmacêutica da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.

A anemia é o problema carencial prevalente no Brasil, segundo Haroldo Ferreira, professor da Faculdade de Nutrição da Universidade Federal de Alagoas. Em 2010 e 2019 seu grupo de pesquisa realizou duas metanálises que identificaram que as populações que vivem em inequidade social são as mais afetadas, particularmente quilombolas e indígenas.

Os dados do Enani-2019 confirmam a questão levantada por Ferreira a respeito da prevalência de anemia em populações mais vulneráveis, uma vez que, apesar de ter sido reduzida pela metade em crianças menores de 5 anos entre 2006 e 2019, passando de 20,9 % para 10 %, continua crescendo na região Norte, que apresentou aumento de 6,6 % no mesmo período.

”É preciso considerar que a insegurança alimentar tem aumentado nos últimos anos e foi agravada pela pandemia. Políticas públicas têm que ser estruturadas considerando o atual cenário, especialmente pensando em grupos de maior vulnerabilidade social”, ressalta Dayana Farias.

Aleitamento materno

As práticas de aleitamento materno vêm crescendo no Brasil. Em relação a 1986 houve um aumento expressivo de 12 vezes da prevalência de amamentação exclusiva entre crianças menores de 4 meses. Segundo dados do Enani-2019 metade das crianças são amamentadas por mais de 1 ano e 4 meses, sendo 45,8 % de forma exclusiva até os 6 meses.

Entretanto, o número ainda é bem distante das metas da Organização Mundial da Saúde (OMS) para 2030 que indica, por exemplo, 70% de aleitamento materno exclusivo durante os primeiros 6 meses.

O aleitamento materno está relacionado à redução de riscos como infecções, desnutrição, ganho excessivo de peso, alergia alimentar e desenvolvimento de doenças crônicas”, destaca Farias.

Marina Padilha, pesquisadora de pós-doutorado do Observatório de Epidemiologia da UFRJ, destacou que o leite materno apresenta a composição balanceada e adequada para cada etapa de desenvolvimento do bebê, sendo muito difícil substituí-lo. “Ele contém, por exemplo, lactoferrinas, compostos antimicrobianos, anticorpos, microrganismos que vão participar da formação da microbiota do intestino e cerca de 150 tipos de carboidratos que atuam como prebióticos”, afirma Padilha. Segundo a pesquisadora, os microrganismos benéficos auxiliam o processo de amadurecimento do intestino e estimulam o sistema imunológico do bebê.

Apesar dos inúmeros benefícios, a falta de informação sobre os benefícios da amamentação e de condições adequadas para as mães resultam no desmame precoce. “A prática do desmame precoce é frequente no Brasil em decorrência da falta de redes de apoio e normativas que garantam não só o suporte emocional, mas também o atendimento dos direitos dessas lactantes”, reforça Ferreira.

Mariana Schincariol Paes é engenheira de alimentos, mestra e doutora em engenharia química. É aluna do curso de especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)