Quem deve pagar a conta do jornalismo na internet?

Por Natália Flores

Nas últimas décadas, temos vivenciado uma avalanche no mercado jornalístico, com a migração do consumo de notícias do papel para a internet. Poucas são as pessoas que compram jornais em bancas – a maioria prefere ler notícias direto dos aplicativos do smartphone. Neste contexto, o debate sobre a relação entre jornalismo e as Big Techs vem à tona. Afinal, como sustentar um jornalismo refém das plataformas digitais?

Se engana quem pensa que essa discussão é nova. As divergências em torno dela existem há, pelo menos, 20 anos. Em 2023, o tema, que se tornou mais relevante a partir de 2019, ganha novo capítulo com o lançamento do relatório “Remuneração do Jornalismo pelas Plataformas Digitais”, produzido pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br). O documento traz um panorama do debate legislativo nacional e internacional sobre o tema, a partir de pesquisa documental em legislações, entrevistas com especialistas e entidades envolvidas no debate no Brasil e América Latina, e conversas informais com outros atores.

Ao contextualizar o assunto, no primeiro capítulo, o relatório destaca que, até 2022, essa discussão, de caráter global, estava centralizada em poucos países desenvolvidos. Ela se torna mais complexa ao chegar a países em desenvolvimento, como o Brasil. Para ficar em apenas um exemplo: dependendo da forma como for implementada, uma regulamentação sobre remuneração jornalística pode ajudar a alavancar ou terminar de catapultar pequenos veículos, dos desertos de notícia.

Ainda que o mercado jornalístico brasileiro tenha suas particularidades, os especialistas entendem que os casos de outros países podem inspirar o debate por aqui. Por isso, no segundo capítulo, o relatório sintetiza o debate legislativo internacional sobre a remuneração do jornalismo por plataformas digitais nos últimos anos. As regulações se diferenciam de acordo com a forma como a negociação deve ser feita: com barganha direta entre veículos de comunicação e plataformas digitais ou com presença mais forte do Estado. 

O “News Media and Digital Platforms Mandatory Bargaining Code”, da Austrália, implementado em março de 2021, se tornou pioneiro nos debates do campo e traz como referência a negociação de acordos diretos das plataformas com veículos jornalísticos. Enquanto isso, nos países-membros da União Europeia, a força do Estado na definição de regras para o setor se faz mais pulsante – com uma série de leis nacionais aprovadas sobre direitos autorais aprovadas, por exemplo, na Alemanha e França. Nos Estados Unidos e Canadá, as regulamentações ainda estão em fase de tramitação.

No terceiro capítulo do relatório, é hora de voltar os olhos para o contexto brasileiro. Como sintetiza o documento, aqui as posições de empresas de mídia e associações jornalísticas têm se equilibrado entre a criação de uma legislação inspirada no código australiano, de barganha direta com veículos, ou a criação de um fundo setorial público, financiado pelas plataformas digitais. A ideia do fundo, por exemplo, é defendida pela Associação de Jornalismo Digital (Ajor) e pela Rede Globo. Existem, no entanto, diferenças importantes sobre como isso deve ser implementado.

Algumas controvérsias do debate giram em torno, por exemplo, de quem devem ser os beneficiários da regulação, quais os critérios de inclusão de quem remunera, como se define o que deve ser remunerado – além do papel do Estado nesta regulamentação. Entram em cena discussões sobre o que pode ser classificado como conteúdo jornalístico – e em que “caixa” estariam os influenciadores digitais. 

A riqueza do relatório do CGI.br está, justamente, em mostrar a diversidade de atores e interesses em campo – o que dá ainda mais argumento para a necessidade de um debate coletivo público antes da tomada de decisão. Como bem salientou Rafael Evangelista, conselheiro do órgão, é preciso expor e elaborar as tensões entre grandes e pequenas empresas de mídia e olhar com cuidado para os interesses dos pequenos veículos – os mais frágeis desta cadeia. 

A discussão tecnológica do nosso tempo passa por desnudar o potencial de fomento de um jornalismo de qualidade pelo mercado digital. Além de ser uma forma de fortalecer a democracia, a partir do combate à desinformação, essa decisão pode trazer soluções para a crise financeira do mercado jornalístico que se arrasta há anos.

Natália Flores é doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) . É gerente de conteúdo da Agência Bori.