Tenentes vs. Bacharéis: a primeira onda do tenentismo e o começo do conflito entre os militares e o sistema jurídico no Brasil

Por Douglas Oliveira Donin

Sem a Constituição o nomeando defensor, o militar perde sua essência, torna-se um pistoleiro ou mercenário qualquer. Por isso é estranho, ou ao menos deveria ser estranho, o pensamento que uma força armada possa aspirar existir fora do sistema constitucional – como se pairasse acima dele, imune aos seus desígnios. Uma força externa, que o tutela de fora – que o aceita quando e se quiser, ao sabor da discricionaridade do comando. Seria, no mínimo,  uma contradição.

Em um sistema constitucional moderno todos os entes e órgãos do Estado encontram sua origem jurídica – ou seja, a sua legitimação, sua função, a própria permissão de existência – na Constituição do país. Equivale dizer: mesmo que uma instituição historicamente preceda a Constituição, é a carta política, mesmo a carta posterior à sua existência fática, que ancora a sua existência fática no sistema político e jurídico do país. Se sobrevém uma nova Constituição, esta ou mantém a instituição como parte integrante do sistema (diz-se, neste caso, que a recepciona) ou a despe de existência jurídica.  E, como qualquer instituição estatal, neste mecanismo também se inserem as Forças Armadas – ou, ao menos, deveriam se inserir.

Parte integrante do desenho constitucional mais básico de qualquer nação, é dessa decisão política fundamental[1] que as Forças Armadas extraem não apenas a sua legitimidade jurídica, mas também sua essência: sem isso, sem esse reconhecimento oficial, essa origem jurídica e constitucional, seriam apenas uma milícia armada qualquer, um agrupamento de homens armados ou um mero inventário de material bélico, desprovidas da legalidade e da oficialidade. Ou seja, o militar deve seu status, prestígio e missão – missão confiada a ele, exclusivamente a ele, não a qualquer outro grupo armado, por maior ou mais bem municiado que seja – porque é ele, e não outro, que a decisão política fundamental do país, a Constituição, nomeia, empossa e incumbe oficialmente da missão, honra e privilégio. Sem a Constituição o nomeando defensor, o militar perde sua essência, torna-se um pistoleiro ou mercenário qualquer.

Por isso é estranho, ou ao menos deveria ser estranho, o pensamento que uma força armada possa aspirar existir fora do sistema constitucional – como se pairasse acima dele, imune aos seus desígnios. Uma força externa, que o tutela de fora – que o aceita quando e se quiser, ao sabor da discricionaridade do comando. Seria, no mínimo,  uma contradição. Nem no país com as forças armadas mais poderosas do planeta – os Estados Unidos – esse tipo de autonomia ontológica seria sequer concebível: as forças armadas americanas, com todo o seu poderio e força, são famosas exatamente pelo legalismo estrito e por sua fidelidade ao sistema constitucional daquele povo.

Mas, no Brasil, onde a cultura constitucional é sensivelmente mais fraca, é bastante natural identificar nos membros das Forças Armadas expressões francas e indisfarçadas do pensamento contrário. Para uma extensa parte da caserna (muito identificada, centenária e historicamente, conforme veremos, com o ethos do Clube Militar) o jogo constitucional (e, por extensão, o próprio sistema jurídico) seria algum tipo de assunto de natureza civil, uma ocupação artificial eminentemente teórica – algo fútil, algo teatral, artificial – dos “paisanos”. Um assunto um tanto etéreo, que deriva apenas de acordos políticos fracos, efêmeros, que carece de solidez e objetividade e que, ocasionalmente, pode desaguar em abusos ou absurdos típicos dos intelectuais. Nestas horas, então, este jogo deveria ser paternalisticamente supervisionado pelos militares – os quais, como um motor imóvel, periodicamente podem invocar algum tipo de papel de árbitro ou de moderador, externo ao jogo – repintando no processo, como se artistas fossem, o quadro em que estão retratados.  

Fato é que, conforme observa-se no regular histórico de discursos abertamente intervencionistas ostentados no âmbito do Clube (principalmente, em salvas disparadas por oficiais já na reserva), uma porção relevante dos militares se vê como os “adultos na sala”, que utilizam de sua autoridade para impor a ordem quando os civis, irresponsáveis por natureza, por essência fracos e vãos, acabam por inexoravelmente extrapolar a brincadeira com seus assuntos menores e fúteis – leis, constituições, teorias e todos estes assuntos despidos de materialidade inerente, concreta, objetiva, inegociável, como o são o gume do aço, as barragens de artilharia ou cargas de cavalaria. Nessa visão, quando essa brincadeira diletante dos civis – tolerada apenas enquanto as crianças se comportam – passa dos limites, os adultos levantam da poltrona, distribuem algumas admoestações, colocam alguns de castigo – algumas palmadas pedagógicas, se necessário – e retornam a sociedade à ordem desejada, que eles sabem perfeitamente, de algum modo inerente ao próprio caráter militar, qual é. Pode parecer ao leitor uma interpretação um pouco dura e ressentida do pensamento militar, mas uma análise histórica rápida – e, como veremos, um breve resgate das próprias palavras de figuras históricas – corrobora essa assertiva.

Coincidência ou não, embora tenham um papel constitucional que o destina “à garantia dos poderes constitucionais”, fixado no art. 142 da Carta, fato é que as Forças Armadas brasileiras, quando vistas sob um prisma histórico, ostentam um bastante consistente registro de operar como uma força de desestabilização da vida política do Brasil. De fato, nossa história é marcada pela repetição de golpes – e tentativas fracassadas de golpes – contra os poderes constitucionalmente constituídos que, ou contam com a conivência das forças de defesa, ou são diretamente protagonizadas por elas[2]. É um tanto irônico que a Constituição reserve às FFAA um papel que descreva exatamente o oposto do que vêm, ao longo do período imperial e republicano, consistentemente representando, em um sólido e regular ciclo de subversão e interferência que, inclusive, se destaca mesmo no cenário notoriamente instável do entorno latino-americano, apinhado de norte a sul de putsches e pronunciamentos – o que em si é uma bastante dúbia honra.

De fato, José Murilo de Carvalho parece ter sido muito feliz quando cunhou, para descrevê-las, a alcunha de “O Poder Desestabilizador”[3]: poucos países no planeta tiveram tantos episódios de insurreição com participação militar, em um período tão concentrado de tempo, como o Brasil. Para citar apenas os mais graves (que não podem ser reduzidos a meros amotinamentos individuais) e proeminentes, lidamos com a insurreição total ou parcial da caserna em 1889, 1891, 1922, 1930, 1935, 1937, 1945, 1961 e 1964 – e tivemos, neste meio tempo, vários anos de governo exercido diretamente por militares. 

Esta inclinação a ciclicamente invadir o palco político (e que, se a história é algum guia, certamente não irá parar nas datas acima) em franca revolta e insubordinação contra os poderes constituídos não pode ser vista como mero acidente. De fato, ela é um comportamento esperado, regular e até consequência inescapável do próprio espírito que anima as Forças Armadas no Brasil. Entender este espírito, sua gênese, seus personagens principais e o modo como se instalou (e como é cultuado e reproduzido, conscientemente, ainda hoje) é um passo obrigatório no seu exorcismo, uma etapa fundamental na sua substituição por uma doutrina verdadeiramente constitucional para as Forças Armadas. Desprezar essa necessidade é esperar pela próxima erupção intervencionista.

Voltemos, para tanto, para o contexto do Brasil Imperial, para entender como esta peculiar autoimagem salvacionista se formou no Exército, de lá contaminando o resto das Forças Armadas em todo o período republicano. 

O Exército brasileiro até as Guerras do Plata

Antes do conflito no Chaco o Exército brasileiro era muito diferente. A força terrestre brasileira ainda na década de 1840 era marcada por uma estrutura heterogênea, fruto de uma apressada expansão das décadas anteriores, que se deu pela emergência de uma necessidade prática: evitar, no momento pós-independência, por repressão ou dissuasão, o surgimento de movimentos de contestação que pudessem levar à fragmentação de um território imenso, muito maior do que as tropas regulares constituídas até então poderiam dar conta. Dessa tarefa foram incumbidos, às pressas, grandes quantidades de mercenários, locais e estrangeiros, populares conscritos à força e até mesmo escravos e indígenas, comandados por um oficialato rarefeito oriundo das elites locais – um ajuntamento de homens sem unidade ideológica ou doutrinária que vieram a compor o contingente inicial do Exército. Estes compuseram destacamentos que serviram, inicialmente, para o enfrentamento especializado de crises locais, como as crises do Plata, pelos sulistas, ou o abafamento de revoltas pelas tropas nordestinas: uma tropa despida de qualquer homogeneidade nacional.  

Tudo isso imprimiu à força, por muito tempo, um caráter bastante regionalizado, espelho da cultura local, sob o qual tentativas sucessivas de organização centralizada não tiveram muito impacto senão nos aspectos formal e estético, jamais doutrinário. As enormes distâncias terrestres, obstáculo imenso à tecnologia de comunicações da época, apenas pioravam tentativas de centralização de decisões, enfraqueciam a cadeia de comando e mantinham fragmentado o espírito do Exército ao longo do imenso território em que ele estava espalhado. 

Também era uma força desprestigiada. Ao contrário da Marinha, tida como verdadeira reserva de elite, o Exército era em boa parte comandado por egressos de aristocracias locais decadentes, principalmente os sulistas (que nunca tiveram muita proeminência no palco nacional) e os nordestinos (que perdiam rapidamente importância à medida que a abundância do ciclo do açúcar se tornava mera memória). Ambas as regiões, além do minguante poder patrimonial de suas elites, se situavam longe demais do Rio de Janeiro para reclamar influência no dia-a-dia da corte, que reclamava um corpo-a-corpo palaciano mais íntimo.  Não é de se espantar que o Exército fosse alvo, em função disso, de um nítido descaso.

Mais do que isso, era um descaso planejado: o governo regencial temia que o fortalecimento do Exército em um país tão grande pudesse dar origem a “pequenos Napoleões”, como vinha acontecendo na Argentina e México, ou ameaçar a autonomia das províncias – principalmente a ala liberal da política, encabeçada por Feijó, temia que Dom Pedro I pudesse usar o Exército, ou parte dele, como porta dos fundos para voltar ao país, pois ainda detinha influência na instituição. O resultado desses temores foi a imposição de um verdadeiro regime de inanição institucional à tropa, com dissolução completa de inúmeros batalhões e diminuição drástica de contingente (principalmente os mercenários, que acabaram banidos) que reduziu o efetivo total, no seu pior momento, a menos de 6.000 homens. Para suprir esta deficiência de presença armada ostensiva, sem gerar oportunidades de levantes, foi criada a Guarda Nacional, sob comando de lideranças patrimoniais locais – sem resquícios, portanto, de lealdade a Dom Pedro – e que reuniu em pouco tempo um número muito maior de combatentes do que o Exército.  

Mesmo com a maioridade de Dom Pedro II e o fim da política de estrangulamento imposta pelo gabinetes regenciais, ainda estava longe o fim da penúria. O novo Imperador, ao menos até imediatamente antes da Guerra do Paraguai, definitivamente não valorizava assuntos marciais e era visto como um governante com o qual o oficialato não teria muita perspectiva de prestígio. A má-sorte do Exército parecia sem fim.

De fato, olhando em retrospecto, o Exército enfrentava uma imensa sequência de infortúnios históricos. Ainda na memória vivia a vergonhosa retirada da guerra da Cisplatina, onde, apesar de ter um bastante poderoso efetivo, sofreu com a falta de apoio e recursos por parte de Dom Pedro I, que, dividido entre múltiplas preocupações, hesitou na condução do conflito. No período regencial, foi tratado como ameaça interna e risco de golpe, a ser contido e vigiado. No Segundo Império, viu sentar ao trono um monarca com pouquíssima simpatia à lida militar. O salário era mantido baixo e vinha caindo. Apesar de, como falamos, não ser exatamente uma corporação nacional uniforme, homogênea, ao menos nisso era unânime: o descontentamento do Exército, de norte a sul, não era pouco, e o ressentimento cozinhava em uma pressão cada vez maior. Para piorar, praticamente não havia liberdade de manifestação.

Mas este sentido de unidade, de corporação, de classe, não tardou a chegar, quando as três guerras em sequência no Prata (a guerra contra Oribe e Rosas, em 1851-52, a guerra contra Aguirre, no Uruguai, em 1864-1865, e principalmente a Guerra do Paraguai, de 1864-1870), imprimiram ao Exército sentimento de corpo e identidade inéditos, nascidos da unidade da missão, da coexistência imediata entre os combatentes (finalmente o Exército conhecia a si mesmo), do estreitamento do comando, da irmandade das trincheiras, do fogo inimigo e, claro, do descontentamento generalizado contra as péssimas condições de operação (o início dos conflitos, principalmente a curta campanha no Uruguai, fizeram escancarar o absoluto descaso do Governo com o Exército, que enfrentou dificuldades logísticas, decorrência da própria míngua de recursos, que só foram parcialmente reduzidas com o desenrolar da campanha do Paraguai).

A terceira campanha, a própria guerra do Paraguai, não permitiu que o estado de negligência governamental continuasse afligindo o Exército brasileiro. Solano López empreendeu um esforço de guerra considerável (embora inexoravelmente fadado ao fracasso) perante o qual o fortalecimento e a modernização da força terrestre não podiam mais ser adiados. Durante o conflito o Exército ganhou números, foi modernizado e equipado à moda prussiana (modelo, à época, de modernidade), encerrando o conflito completamente transformado, com muito mais feitio de tropa moderna. 

Em outra seara, igualmente importante, Dom Pedro II se recusou a repetir os erros do pai no final da campanha cisplatina: promoveu, paralelamente às operações marciais, uma operação de propaganda inédita, de modo a assegurar o engajamento do espírito da nação no conflito. O país foi relativamente convencido da necessidade do esforço bélico (apesar da guerra ser, em termos gerais, impopular, não o foi como na questão da Cisplatina) e, consequentemente, do valor do Exército Brasileiro. Criou-se o corpo de “Voluntários da Pátria” – que, devido ao entusiasmo da população, em pouco tempo recrutou efetivo suficiente, ao ponto de ser necessário encerrar prematuramente o recrutamento[4], e o próprio Imperador, o “Voluntário Número Um”, marchou como um soldado qualquer, trajado com os mesmos uniformes da tropa, ao conflito[5].

Ao fim, o Exército saiu da guerra com a vitória (não uma vitória qualquer, mas um avassalador sucesso militar), prestígio inédito junto à população, renovado moral e orgulho, e o mais importante: um inédito sentimento de corporação e unidade – podia, agora, se falar em uma “classe” dos oficiais militares, de aspirações e interesses razoavelmente homogêneos.  

Mas apesar do sentimento de orgulho (e mesmo em razão dele) esse oficialato que voltou do Paraguai, transubstanciado em corporação de fato, já de longa data transbordava de descontentamento, e logo dobraria em frustração. Passado o conflito, o Exército esperava largas recompensas, reconhecimento e recuperação do prestígio perdido desde o período regencial, como consequência pela vitória na campanha paraguaia, mas rapidamente ficou claro que a tropa não veria contrapartida alguma do Império. Sequer o soldo dos militares, há muito defasado, foi reajustado para recuperar o poder aquisitivo perdido com a inflação. O sentimento de abandono era geral. A historiografia trata este problema como “A Questão Militar”, uma das causas do amotinamento que terminou por proclamar, às pressas, a República, e é também o pano de fundo de uma disputa peculiar entre duas categorias da jovem intelectualidade daquela época.

O desprezo contra os bacharéis

Mesmo antes da guerra o descontentamento no Exército já não era pouco: o salário era visto como extremamente baixo, o nepotismo era rompante e, em função de uma polêmica reforma no sistema de promoções que viria a impor idade mínima e tempo de serviço em cada posto, o progresso na carreira ficou demasiadamente lento.  

Este último fator ultrajava principalmente os oficiais mais jovens: por mais competência que demonstrassem em questões militares práticas, teriam de aguardar até décadas para atingir o oficialato superior. Longe estavam aquelas aspirações, vindas de histórias românticas típicas do período napoleônico, de jovens talentos e gênios arrojados galgando os degraus da carreira em ritmo impetuoso, se tornando jovens generais em poucos anos pela força irradiante do próprio mérito. Agora, o mais provável para o egresso das Academia é que, após a tenência, se amargasse uma frustrante e lenta espera de até quinze anos apenas no posto de capitão, aguardando a promoção a major, e talvez mais tanto tempo na passagem de major a coronel, em virtude da observância rigorosa da Lei de Promoções de 1850, mecanismo instituído pelo ministro Manoel Felizardo de Sousa e Melo para justamente tentar colocar um obstáculo ao nepotismo incontrolável do Primeiro Império, onde cadetes bem-nascidos e apadrinhados já eram conduzidos aos maiores postos da carreira logo na saída da Academia – como foi o caso do Marquês de Barbacena, que recebeu logo aos 21 anos o posto de major no Exército[6]. E, para tornar o ruim ainda pior, esta espera de décadas em postos menores ocorreria, muito provavelmente, em quartéis distantes, em rincões atrasados e indesejados, longe da efervescência e glamour da Capital.

O efeito foi imediato: o desprestígio da profissão militar, em especial o brusco freio imposto à ascensão meteórica de jovens apadrinhados criado com as “leis de idade”, se tornou frustrante ao ponto de famílias tradicionais não mais desejarem que seus filhos seguissem a carreira, que já não se apresentava como uma raia livre para a ascensão rápida na vida pública pela via das trocas de favores entre familiares e amigos nos bastidores da corte. A caserna passou a ser destino dos filhos de famílias menos abastadas, fora do círculo aristocrático, e de filhos dos próprios militares.

O destino preferencial dos jovens de bom berço, então, passou a ser as faculdades civis, resumidas, à época, nos cursos de Direito (em São Paulo e Recife) e Medicina (no Rio de Janeiro e Bahia). As carreiras de jurista e de médico, exatamente ao contrário da carreira militar, ofereciam pronta e imensa recompensa em termos de prestígio e ascensão. Os jovens médicos encontravam um país entrando em franca valorização do sanitarismo, com alta demanda por seu trabalho. Eram preciosos ao sistema de saúde, mas, ao menos neste momento inicial, não foram alvo do ressentimento dos militares (após a derrubada da monarquia foi elemento curioso da Revolta da Vacina, patrocinada em parte por militares[7]).

Quanto aos juristas, a história era bem outra. Além do mercado da advocacia, as Faculdades de Direito forneciam o pessoal para preencher as mais diversas funções públicas, técnicas e políticas, do Império. Livres de regulamentos restritivos e impulsionados pelas enormes fortunas e influência das famílias tradicionais, os jovens bacharéis, já da porta de saída das faculdades, abocanhavam postos de imenso prestígio na política das províncias, inclusive, em posições que comandavam mais poder do que os próprios generais do Exército. Todas as esferas do poder imperial e provincial, em todas as funções burocráticas ou decisórias, eram um campo aberto para os bacharéis[8].

Aliás, ser bacharel em Direito, por si só, sinalizava muito sobre a posição social de alguém, e os jovens “doutores” colhiam os calorosos frutos desse prestígio seja onde estivessem. Um exemplo: em homenagem à data de fundação das primeiras faculdades de Direito do Brasil os restaurantes passaram a oferecer refeições de graça aos bacharéis e estudantes no dia 11 de agosto, na esperança de que a presença ilustre dos moços, filhos de famílias ricas, verdadeiras celebridades, pudesse transferir prestígio ou atrair clientela abastada ao próprio restaurante[9].

Desnecessário dizer que isto era visto como um insulto por parte dos jovens militares, a outra ponta da balança e com o prestígio em franca decadência. Não é surpresa que passaram a um estado de inveja e o ressentimento para com os “legistas”, como se referiam pejorativamente aos bacharéis em Direito que virtualmente ocupavam todas as principais posições políticas do país. Do ressentimento à hostilidade, e daí à agressão aberta, deflagrada, foi apenas um passo.

Um exemplo claro pode ser lido na edição de 5 de abril de 1855 da publicação “O Militar”[10]:

Quem se quiser dar ao trabalho de examinar as filiações dos moços que freqüentam a Escola Militar, verá que, salvo uma ou outra exceção, eles são todos de família pouco abastada e sem influência para criar-lhes uma posição de onde possam ser úteis a si e a seus camaradas; e quando encontrar algum nome desses que possuem o mágico condão de criar políticos abalizados, estadistas profundos, diplomatas felizes e administradores fecundos, pode de antemão afirmar que é um bastardo, sobrinho pobre, ou parente muito afastado: os filhos, os parentes e pupilos ricos são destinados para os cursos jurídicos...

O editorial de 25 de abril de 1855 da publicação “O Militar” é ainda mais agressivo[11]:

Srs. Legistas; o período de vossa usurpação está acabado...

Deixastes chegar a agricultura até as bordas da sepultura, não lhe proporcionando os braços de que necessita, retirando depois os poucos de que ela dispunha sem substituí-los por outros, não promovendo por meio algum a introdução dos melhoramentos nos processos agrícolas imperfeitos de que ela usa, não tratando enfim, desprezando totalmente, negando-lhe mesmo as vias de comunicação, elemento indispensável para a sua prosperidade.

Tendes desprezado e mesmo estorvado, com essa teia inextricável de leis e regulamentos... todo e qualquer desenvolvimento industrial.

Tendes comprimido a expansão espontânea do comércio... não lhe fornecendo essas vias por onde sua vida se comunica.

Tendes lançado sobre a Classe Militar um manto espesso de ignomínia, de compressão e de miséria.

Tendes feito chegar o clero do Brasil ao último grau de descrédito e de depravação...

Com vossas tramas e violências eleitorais, com vossa corrupção, desmoralizando o povo tendes rebaixado e adulterado a representação nacional...

Suspendestes, sim, esse infernal tráfico, mas por que meio fostes a isso levados? Nem ousamos relatá-lo, repugna a um coração brasileiro a recordação de semelhantes acontecimentos. [O Brasil fora forçado a abolir o tráfico escravo pela esquadra britânica.]

Mesmo grandes personalidades subscreviam essa visão. Um artigo de 1890 da Escola Militar – da autoria de ninguém menos do que Euclides da Cunha – critica a “gabolice de borla e capelo, a quem se entrega a Justiça“, a “insciência togada” e o “triste quadro das nossas academias de direito, onde estuda-se a sociedade sem as noções das mais simples leis naturais“. O venerado Antônio Tibúrcio Ferreira de Sousa, o “grande militar e pensador” nordestino, escreveu ainda em 1883: “Contra as pretensões da canalhocracia jurista, só podemos opor a disciplina da ciência e a aristocracia da força, disfarçada com a necessidade urgente de aumento de tropas e a consequente multiplicação de nosso material de guerra.[12]

Os insultos voavam livremente. Os jovens militares passaram a desdenhar abertamente da formação jurídica dos membros da elite política[13] – segundo eles, um apinhado de cultura inútil, que só gerava emaranhados incompreensíveis e labirínticos de leis e regulamentos. Estabeleceu-se, no imaginário da “mocidade militar”, a oposição entre eles próprios – que seriam abnegados patriotas, cujo ofício é derramar o próprio sangue em sacrifício (o que, veremos, no caso desta nova geração, bem pouco correspondia à verdade), injustiçados com seus soldos minguados e desdenhados pelos civis[14] – e os “casacas”: os políticos civis, geralmente filhos da elite rural, que sequestraram as rédeas da nação em benefício próprio, valendo-se de conchavos, clientelismo e nepotismo.

Neste momento já havia se montado no baixo oficialato um círculo vicioso: o ressentimento impulsionava a indisciplina (para se ter uma ideia, no ano de 1884 o Exército chegou a prender por mau comportamento 7.526 integrantes – bem mais da metade de seu efetivo total de 13.000 homens[15]), a indisciplina gerava punições, e cada tentativa do comando de simplesmente tentar fazer cumprir os regulamentos recalcitrava ainda mais os indisciplinados, que encaravam sanções pessoais como se fossem ataques à honra da corporação[16].

Neste movimento, sentindo-se ameaçados e buscando voz ativa, e em parte para impor alguma resistência organizada às medidas disciplinares, fundaram em 1887 o que é até hoje seu sindicato de facto, o Clube Militar. Sena Madureira, seu fundador, já deixava claro o objetivo da agremiação: “unir a classe para a defesa de nossos interesses comuns e prepararmo-nos para a luta que teremos de sustentar contra as becas“. As “becas”, por óbvio, eram os civis, em especial, os políticos, os bacharéis, os “paisanos” ou “casacas”, como eram geralmente chamados pelos militares em tom de evidente desprezo[17].

O que segurava um pouco os ânimos da tropa e evitava que essa situação de indisciplina descambasse em revolta aberta e generalizada contra o poder constituído era apenas a influência pessoal do velho oficialato, leal às instâncias políticas, ele mesmo beneficiário de um sistema de tratamento preferencial a fidalgos e aristocratas já não mais existente – figuras como Osório, Caxias, Deodoro e outros, uma velha aristocracia disciplinada, dos chamados “tarimbeiros”. Entretanto, com o passar do tempo e a chegada da velhice, estas figuras de autoridade passaram a sair de cena e uma geração muito mais rebelde, incontinente, verbal e política ocupou o seu lugar. Cada vez mais, os militares se sentiam à vontade para expressar livremente posições políticas e aspirações próprias, que já não mais mantinham reclusas às suas confraternizações. As confidências de descontentamento tomaram ares de ameaça de desforra contra o poder constituído.

Fato é que os militares, em especial o baixo oficialato, ressentidos contra o comando civil da política, criaram para si mesmos um conto maniqueísta onde figuravam em posição de verdadeira elite moral da nação – bastião abnegado, firmado na fortaleza do caráter e na honra pessoal inerente ao militar, um ser ontologicamente distinto, como se feito de material diferente, de melhor quilate – em oposição à imoralidade, covardia e mesquinhez dos “legistas”, os juristas que monopolizavam o vil mundo das leis e regulamentos[18]. Viam a si mesmos como os únicos que ligavam valor à honra, e atribuíam aos civis a incapacidade de valorizar semelhante atributo no mesmo nível de sacralidade[19]. Enamorados por esta imagem, pintada em cores vibrantes, não tardou para que os jovens militares atribuíssem a si mesmos, também, a imagem a verdadeira elite intelectual e científica da nação.

O que possibilitou que dessem esse passo seguinte, dobrando uma já superlativa imagem de grandeza extraordinária, foi uma interpretação muito particular, adaptada em alfaiataria para si próprios, da doutrina francesa do positivismo.

O tenentismo positivista 

Como dissemos, Dom Pedro I fundou duas faculdades de Direito (São Paulo e Recife) e duas Faculdades de Medicina (Rio de Janeiro e Bahia). Seu sucessor, Dom Pedro II, por mais que viesse se mostrar um verdadeiro patrono das ciências, não abriu faculdades novas em todo o Segundo Reinado. A única outra formação superior, a Engenharia, era ensinada apenas na Escola Militar da Praia Vermelha. Embora a escola aceitasse também civis, o ensino de engenharia estava fortemente vinculado ao currículo de formação dos oficiais do corpo de engenharia ou artilharia.

Era um ensino, aliás, de excelência. Em nada o ensino da matemática e da mecânica dos cadetes ficava a dever, em qualidade e modernidade, ao ensino das humanidades e do Direito nas faculdades de São Paulo. E este ensino, que englobava primariamente as ciências exatas (mecânica, hidráulica, química, matemática), após o ingresso de Benjamin Constant nos quadros docentes, em 1872, passou a dar grande destaque às letras, filosofia e até sociologia. Surgiram, no interior da Escola, clubes de literatura, poesia e debates.

O resultado é que começou a se formar nos cadetes e tenentes recém-saídos da Academia um imenso (e plenamente justificado) orgulho da exclusividade de sua formação, o que levou, naturalmente, ao sentimento de que se tratavam de uma verdadeira elite intelectual. Criaram, para a Escola Militar, a alcunha de “Tabernáculo da Ciência”, pela qual ela passou a ser tratada, e o tratamento entre si próprios passou a envolver a alcunha “doutor” ou “seu doutor”: “Dr. Tenente Fulano”, por exemplo[20]. Com o tempo passaram a tratar a si próprios como “os científicos”. De certa forma, de um ponto de vista institucional, estavam certos, quando se imaginavam os exclusivos portadores da formação superior no que hoje chamaríamos de “hard sciences”. Não é de se desprezar o sentimento de orgulho, pertencimento, distinção e classe que semelhante exclusividade pode gerar em um grupo coeso de jovens, com elos de irmandade temperados por anos em um microcosmo apartado da sociedade em geral.

Isso criou um antagonismo não só com os “legistas” civis, mas com os oficiais mais antigos (sobretudo os das armas de infantaria e cavalaria), cuja formação tradicional girava em torno de assuntos eminentemente militares e práticos. Os cadetes desprezavam os assuntos típicos da caserna, que davam como menores, mais vulgares e mais brutos, típicos dos “tarimbeiros”, apelido pejorativo dados a tais oficiais[21]. A animosidade dos jovens era tanta que mesmo a posse de medalhas de guerra, exibidas pelos veteranos do Paraguai, passou a ser alvo de zombarias, como se fosse um sinalizador de incultura, rusticidade ou insofisticação. Abandonando qualquer apreço pela atividade marcial, e por serem alunos do único curso superior mais ligado às ciências naturais, os “científicos” ignoraram a função precípua do uniforme e arvoraram-se com gosto da posição de guardiões exclusivos da ciência no país. Sobre isso escreveu o General Tito Escobar[22]:

(...) raros soldados de escol produziram as escolas militares e raríssimos exemplares deles nos legaram; sobram-nos, entretanto, enraizados burocratas, literatos, publicistas e filósofos, engenheiros e arquitetos notáveis, políticos sôfregos e espertíssimos, eruditos professores de matemáticas, ciências físicas e naturais, como amigos da santa paz universal, do desarmamento geral, inimigos da guerra, adversários dos Exércitos permanentes.

Esse sentimento de especialidade, de importância, não teria se convertido em um perigoso delírio de grandeza, não teria alcançado proporção revolucionária, se não fosse a intensa doutrinação positivista à qual os cadetes eram expostos, em especial devido à influência de Benjamin Constant, que foi admitido como professor de matemática na Escola Militar em 1880.

Benjamin Constant era uma daquelas raras figuras na história que, por mérito, magnetismo e exemplo, facilmente arregimentam seguidores ao seu redor. Unia, em um homem só, quatro figuras: a do homem que ascendeu na vida por mérito próprio, vindo de família pobre e com história pessoal trágica; a do capaz  “homem de ciências”, pois era matemático e engenheiro; a de herói militar, por ser veterano da campanha do Chaco; e a de pai substituto, mas não menos amoroso, daquele grupo de jovens apartados das famílias.  Nesse sentido, foi notório um episódio onde arrancou a Ordem do Dia das mãos do oficial em plena leitura, por considerar que era uma desonra ao Corpo de Cadetes – os alunos estavam sendo punidos em conjunto por uma suspeita de roubo atribuído a um deles – o que lhe garantiu alguns dias de prisão na Fortaleza de Santa Cruz. Este ato de rebeldia e a consequente punição só lhe fizeram crescer em honra: foi visitado e homenageado na prisão por colegas, oficiais e alunos.

Constant era discípulo fervoroso de Auguste Comte e um dos mais entusiasmados difusores de sua doutrina no Brasil. Detalhar a história e a fundamentação filosófica do Positivismo comtiano certamente extrapolaria o escopo deste artigo, mas, em síntese, basta saber que se tratava de uma vertente filosófica muito popular na Europa, que chegava com força ao Brasil, bastante ligada às ideias de progresso científico e ordem social. Fortemente impressionada pelo avanço rápido das ciências naturais daquela época e pelas transformações que a indústria trouxe à sociedade, propunha que os fenômenos sociais deveriam ser vistos pelo exato prisma metodológico das ciências exatas: as leis que regem o social seriam fixas, lógicas, objetivas e estariam, como todas as leis do universo, apenas temporariamente ocultas, prontas para serem descobertas. 

A decorrência lógica do pensamento positivista é que a condução das nações ultrapassaria o âmbito da política, do debate, da negociação, do acordo: seria matéria objetiva de ciência, logo, assunto de “homens de ciência”. O próprio Comte, em outras palavras, já o estipulava através das “Lei dos Três Estados”, ponto fulcral de sua teoria: as sociedades iniciariam a marcha do progresso no “Estado Teológico”, onde atribuiriam importância à religião e à vontade dos deuses, passariam para o “Estado Metafísico” – nosso atual estado – onde substituiriam os designíos divinos por conceitos abstratos, como justiça, moral, ética etc., e atingiriam inexoravelmente o ápice de sua evolução social no “Estado Positivo”, definitivo, eterno, onde perceberiam a futilidade da abstração perante a descoberta e constatação de evidentes leis imutáveis, exatas, que governam os destinos humanos, e seriam governados pela própria ciência e seus arautos sábios, precisos, inerrantes.

Mas o positivismo era mais do que uma simples doutrina filosófica: se pretendia também uma religião (“A Religião da Humanidade”), embora uma religião laica, secular, deliberada. Sabia que era impossível retirar o fascínio do mito do homem, e por isso mesmo buscava ocupar esse espaço imaginário, iconográfico. Possuía credos, dogmas, templos, cultos e santos (inclusive um Apostolado nacional oficial, e até hoje ainda mantém um templo operacional, com cultos regulares) nos exatos moldes da religião católica, mas substituindo os aspectos sobrenaturais desta por contrapartes seculares. Por exemplo, o panteão de santos do catolicismo seria substituído por uma galeria de “grandes vultos” da ciência e da história; a arte sacra, retratando a glória divina, seria substituída por imagens igualmente apoteóticas reimaginando acontecimentos históricos. Acima de tudo, no lugar de Deus, estaria a própria Ciência – e a Humanidade, personificada.

No Brasil o positivismo se dividiu em três frentes: a frente “civil”, que se popularizou nas faculdades e reuniões partidárias; a frente “militar”, um desdobramento da frente civil que seguiu rumos bem próprios, autônomos e definidos, gestada na Escola Militar e largamente reformada para corresponder ao discurso dos jovens cadetes e tenentes; e após 1881 (com a fundação da Igreja Positivista do Brasil), o Apostolado, organização que se pretendia central, mais próxima à dogmática francesa, consideravelmente mais purista, que se recusava a mesclar as crenças positivistas com ação política direta (acreditavam que, por se tratar de uma “lei do progresso”, eventualmente os povos iriam alcançar naturalmente a fase positivista, em decorrência de sua própria evolução, sendo desnecessários impulsos políticos). Desnecessário dizer: devido à sua reticência em imiscuir-se na ação política direta, o Apostolado foi rapidamente isolado. Os movimentos que levaram à proclamação da República, por exemplo, o pegaram em completa surpresa.

Não é difícil imaginar de onde vinha o fascínio do positivismo: a imagem de uma utopia tecnocrata falava ao íntimo de cada categoria intelectual, a qual imaginava que este futuro próspero, ordeiro, pleno, abundante, sadio, só o seria pois chegaria conduzido sob o seu comando, ideias e preferências. A ideia, com um quê calvinista, era universalmente sedutora, sobretudo a quem já ocupava posições de elite social e podia comprar boa formação. Mas a ninguém esta imagem se adequou melhor às próprias inclinações quanto aos “científicos” do Exército: a ideia de que aos militares, e somente a eles, cabia a salvação da pátria generalizara-se na instituição a partir da Guerra do Paraguai, à medida que o exército se institucionalizava e criava uma alma própria[23], e ali a doutrina de Comte caiu como uma luva no gosto dos cadetes e tenentes. Quando a doutrina positivista falava dos iluminados tenocratas que virão salvar o povo de sua própria ignorância, trazendo a luz do progresso, os jovens militares, enamorados pelo evangelismo de Benjamin Constant, imaginavam que era justamente a ascensão deles próprios ao poder, e à instituição de uma “ditadura da razão” por eles conduzida, que daria fim à era dos “becas”, que Comte profetizara.

Aliás, é justo que lembremos que a própria participação de Benjamin Constant nesse processo é bastante superdimensionada. No imaginário mitológico criado pelos militares, Constant teria um papel muito mais ativo na derrubada da monarquia do que teve de fato, como um conspirador, um mentor. A historiografia moderna tem recuperado esse fato: Constant, e a sua pregação positivista, foram muito mais instrumentais aos militares do que o contrário. No positivismo os militares apenas encontraram uma racionalização a posteriori, incrivelmente conveniente, oportuna e que exigia pouquíssimos ajustes, para dar um estofo filosófico a uma forte rejeição que já possuíam ao sistema político.

Aqui chegamos no cerne da questão: o Positivismo é, em essência, uma doutrina profundamente antipolítica e antidemocrática. José Murilo de Carvalho[24] explica que

A noção positivista da cidadania não incluía os direitos políticos, assim como não aceitava os partidos e a própria democracia representativa. Admitia apenas os direitos civis e sociais. Entre os últimos, solicitava a educação primária e a proteção à família e ao trabalhador, ambas obrigação do Estado. Como vetava a ação política, tanto revolucionária quanto parlamentar, resultava em que os direitos sociais não poderiam ser conquistados pela pressão dos interessados, mas deveriam ser concedidos paternalisticamente pelos governantes. Na realidade, nesta concepção, não existiriam sequer os cidadãos ativos. Todos eram inativos, à espera da ação iluminada do Estado, guiado pelas luzes do grande mestre de Montpellier e seus porta-vozes.

De fato, para o tecnocrata positivista, a democracia não possui função alguma: o povo, essa massa inculta, não sabe o que é bom para si mesmo. Não há sentido algum em consultá-lo, como não há sentido em consultar a opinião de um filho menor. Uma ditadura benevolente, como dos “Reis-filósofos” platônicos, é do seu melhor interesse, e cedo o povo – que pode não compreender muito bem os princípios naturais por trás das maravilhas científicas, mas assim mesmo, de bom grado usufrui do bem-estar que elas proporcionam – o entenderia. 

Uma doutrina preservada no âmbar 

Hoje se sabe que o golpe de estado que depôs Dom Pedro II foi um acontecimento um tanto atabalhoado. De fato, no dia 15 de Novembro, Deodoro da Fonseca se encontrava doente e, na sua casa, foi convencido por pressão de um grupo de conspiradores – e por notícias falsas, deliberadamente engendradas pelo major Frederico Sólon Sampaio Ribeiro para criar comoção no Exército[25] – a ir ao Paço prender o Visconde de Ouro Preto, chefe do Gabinete imperial. O Imperador sequer se encontrava no Rio de Janeiro, e a chegada de um doente e hesitante Deodoro ao Paço com um punhado de soldados criou um embaraçoso impasse, que demorou horas para ser resolvido. O acontecimento, que seria inicialmente só a prisão do chefe do Gabinete, só se converteu em golpe de estado ao longo do resto do dia 15 e da madrugada do dia 16, quando os republicanos, paralelamente, e aproveitando o impasse e a ausência do Imperador, trataram de apressar uma tentativa de golpe marcada para o dia 20 de novembro. Esta sequência longa, hesitante e sôfrega de mal-entendidos que derrubou o Império foi transubstanciada, pelas cores de Henrique Bernadelli, em um acontecimento arrojado, heroico, dinâmico, no quadro “A Proclamação da República”, de 1892, onde um decidido Marechal ergue seu quepe sobre um majestoso cavalo baio no Campo de Santana. A peça, ironicamente, é destaque no interior da Biblioteca Marechal José Pessoa, na Academia Militar das Agulhas Negras – exatamente onde se formam os oficiais do Exército (há muito de simbólico nisso).

Deodoro se cercou, inicialmente, dos “tarimbeiros”, para frustração dos “científicos”. Benjamin Constant, alçado inicialmente Ministro da Guerra, logo entrou em conflito ideológico com Deodoro e foi trocado por Floriano Peixoto – também veterano do Paraguai. Para completar o infortúnio, a ala positivista (que desejava uma ditadura militar) perdeu em prestígio para a ala liberal-democrática, liderada por civis, entre eles republicanos e liberais históricos, como os futuros presidentes Campos Sales e Prudente de Morais, além do profundamente antimilitarista Rui Barbosa. Mas o governo de Deodoro durou muito pouco, logo sendo substituído pela ditadura de Floriano Peixoto – o qual, apesar de não ser positivista, finalmente se cercou dos jovens “científicos” egressos da Escola Militar[26].

Com a República nas mãos, e inspirados pela hábil manipulação de símbolos vista como vital pelos positivistas, os jovens militares se lançaram à tarefa de lapidar de maneira deliberada e consciente a sua hagiografia, sua mitologia e o seu legendário – a iconografia que, doravante, deveria ocupar a mente dos brasileiros, seu panteão de heróis, seus feitos e façanhas. Claro que o fizeram de modo extremamente parcial às próprias convicções: reinventaram a imagem do alferes Tiradentes à imagem e semelhança de Jesus (inclusive, com sua própria traição, paixão e calvário, cabelos longos e barba longa), o alçando a herói e mártir central da República[27]. Travaram longa batalha pelo hino e, principalmente, pela bandeira nacional (o modelo escolhido foi criado por Raimundo Teixeira Mendes, da Igreja Positivista do Brasil, com os dísticos “Ordem e Progresso” de autoria do próprio Augusto Comte). Mas, também, o Exército tratou de maquiar a própria história, através de uma narrativa sensivelmente mais heroica do que o fato, da derrubada da monarquia, pintando um quadro muito mais favorável de si mesmo do que os fatos autorizavam.

Deste quadro, as desavenças entre Exército e Armada, entre deodoristas e florianistas e, sobretudo, entre tarimbeiros e científicos foram apagadas – o próprio Exército, como instituição, de modo homogêneo, monolítico, deveria ser visto como o arauto e sinônimo da Ordem e do Progresso.  Instituiu-se um culto reverente, artificial, não só dos marechais envolvidos na derrubada do Império, mas de inúmeras figuras militares menores e do histórico de feitos recentes da instituição – tudo no esforço de conquistar o sentimento do cidadão, fazê-lo amar a pátria, através do amor aos heróis e façanhas do Exército.

Como é comum dos símbolos, mesmo depois da volta dos civis ao poder todo esse fenômeno – sua hagiografia, a sua iconografia, a sua imagética, sua diegese – permaneceu. Na sociedade em geral, como um eco cada vez mais fraco, mas, no interior do Exército, como objeto de culto fervoroso. E um objeto de culto que é ao mesmo tempo definidor de identidade, elemento de agregação e matéria doutrinária – sua desmistificação ou questionamento, principalmente entre os novos oficiais, é assunto de hierarquia e disciplina. Nos salões forrados de madeira escura e antiga das sedes militares, imaginados já como um veículo das ideias de tradição, permanência, perenidade e continuidade, esta visão – do Exército (hoje, as Forças Armadas) como salvadores, e dos civis como imprudentes; dos assuntos militares como sérios e graves, e dos civis como vãos e etéreos – é sugerida, por vezes implicitamente, por vezes de forma jocosa, como um convite ao orgulho classista, principalmente nas escolas de formação, e por vezes de modo explícito, franco, aberto, por vezes até como ameaça ou convocação, como no Clube Militar.

A frequente imodéstia e despudor dos mais francos porta-vozes do pensamento da classe militar frente ao jurídico, ao legal, ao constitucional, irradia em parte deste histórico de oposição consciente aos operadores civis do mundo das leis – cujos motivos podem nem ser mais lembrados, como uma vendeta antiga. A postura antilegalista, por doutrina e adestramento, se perpetua. E, pragmaticamente, quando voltam a se mesclar os terrenos das armas e da política, a sujeição ao poder das leis, para grupos de interesse militares, se torna uma simples disputa de poder real: e não seria inútil a lei que, ao fim e ao cabo, não se impõe, como se impõe o gume da espada?

Se é de nosso interesse que o espírito da intervenção, que já permanentemente agoura a América Latina, mas assombra especialmente o Brasil, seja exorcizado – que, enfim, se fale em um pensamento e uma alma constitucional para as Forças Armadas – é necessário que elas sejam obrigadas a reformar os vetores doutrinários que reproduzem esse antagonismo com o mundo civil, o mundo jurídico, o mundo constitucional, quase gravado em sua genética.

Douglas Oliveira Donin foi cadete-aviador da Academia da Força Aérea (AFA) e é mestre em Direito Civil e Empresarial e especialista em Direito Internacional e da Integração pela UFRGS

Referências

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[1] O próprio conceito político de Constituição, conforme Carl Schmidt.

[2] CARVALHO, José Murilo De. Forças Armadas e política no Brasil. São Paulo: Todavia, 2019.

[3] CARVALHO, José Murilo De. As forças armadas na Primeira República: o poder desestabilizador. História geral da civilização brasileira, 1977. v. 3, p. 180–234.

[4] DORATIOTO, Francisco. Maldita guerra – Nova história da Guerra do Paraguai. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

[5] SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador – D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 1a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

[6] Aliás, o posto de major do Exército foi lhe dado como prêmio de consolação. A ideia inicial era promovê-lo a capitão-de-mar-e-guerra, elevado posto da Marinha, o que gerou protestos naquela força, dada a pouca idade e inexperiência do rapaz. A solução foi transferi-lo para o Exército, onde tinha menos experiência ainda, já como oficial superior (naquela época o trânsito entre as diferentes forças não só era possível, como relativamente comum).

[7] CARVALHO, José Murilo De. Os Bestializados. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.                                              

[8] FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. A Proclamação da República | CPDOC. 2022. Disponível em: <https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/ProclamacaoRepublica>. Acesso em: 7 mar. 2022.

[9] Até hoje é comemorado o “Dia da Pendura” neste mesmo dia – embora com consideravelmente menos entusiasmo por parte dos restaurantes.

[10] HOLANDA, Sérgio Buarque De; ELLIS, Myrian; AL, Et. Declínio e Queda do Império. 6a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. v. 6

[11] Idem.

[12] SCHULZ, John. O Exército na política: origens da intervenção militar, 1850-1894. São Paulo: EdUSP, 1994. P. 98.

[13] SCHULZ, John Henry. The Brazilian army and politics, 1850-1894. Princeton: Princeton University, 1973.

[14] LYNCH, Christian Edward Cyril. Necessidade, contingência e contrafactualidade. A queda do Império reconsiderada. Topoi (Rio de Janeiro), 2018. v. 19, p. 190–216.

[15] LIMA, Manoel de Oliveira. O Império Brazileiro. São Paulo: Comp. Melhoramentos de São Paulo, 1927. p. 153.

[16] LYNCH, Christian Edward Cyril. Necessidade, contingência e contrafactualidade. A queda do Império reconsiderada. Topoi (Rio de Janeiro), 2018. v. 19, p. 190–216.

[17] LYRA, Heitor. História da Queda do Império, Tomo I. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964. p. 137.

[18] COSTA, Emilia Viotti Da. Da Monarquia à República: Momentos decisivos. 9a edição ed. São Paulo: Editora Unesp, 2010. p. 484.

[19] PASSARINHO, Jarbas. Os militares e a República. Informe Legislativo, 1989. v. 26, n. 4. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/181962>. Acesso em: 4 mar. 2022. p. 9.

[20] CARVALHO, José Murilo De. Forças Armadas e política no Brasil. São Paulo: Todavia, 2019.

[21] De “tarimba”, a cama simples e desconfortável nas quais os militares dormem quando estão alojados no interior dos quartéis.

[22] CARVALHO, José Murilo De. Forças Armadas e política no Brasil. São Paulo: Todavia, 2019.

[23] COSTA, Emilia Viotti Da. Da Monarquia à República: Momentos decisivos. 9a edição ed. São Paulo: Editora Unesp, 2010.

[24] CARVALHO, José Murilo De. Os Bestializados. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. P. 54.

[25] A estória de que o Visconde de Ouro Preto, chefe do Gabinete, teria ordenado a prisão de Deodoro e de Constant

[26] FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995. P.246.

[27] CARVALHO, José Murilo De. A Formação das Almas: o imaginário da república no Brasil. [s.l.] : Companhia das Letras, 1990.