Um sentido para o jornalismo musical

Por João Luiz Sampaio

No final dos anos 1990, a equipe do Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo reunia-se semanalmente para debater pautas futuras. Cada repórter dizia no que estava trabalhando, as ideias eram discutidas por toda a equipe, matérias eram programadas. De tempos em tempos, no entanto, chegava a notícia de que naquele dia a reunião seria “conceitual”, o que acontecia sempre que o editor Evaldo Mocarzel sentia a necessidade de repensar a proposta do caderno. Eram reuniões longas, seguiam noite adentro, com debates acalorados entre os repórteres, críticos e colaboradores freelancers, que eram convocados às pressas para a conversa.

O ponto de partida da discussão era sempre o mesmo: qual o papel do jornalismo cultural? A discussão podia seguir caminhos dos mais diversos, mas o ponto de chegada costumava ser o mesmo: como equilibrar as pautas de agenda, ou seja, aquelas que se referiam a eventos específicos da programação cultural da cidade e do país, com uma reflexão que, fora do dia a dia, pensasse a cultura de forma mais ampla, apontando tendências e abordando temas que fossem além do roteiro? Não havia respostas definitivas, mas acreditava-se que era possível conciliar as duas coisas, com textos que a partir da agenda fossem capazes de suplantá-la, tanto nas matérias de apresentação como na avaliação feita pelos críticos do caderno.

Nem vinte anos se passaram, mas a esta altura não é novidade que as transformações tecnológicas, culturais, sociais, econômicas e políticas – e o intrincado mecanismo segundo o qual todos esses elementos alimentam uns aos outros – tornaram o mundo um lugar profundamente diferente, e um lugar no qual o jornalismo precisou encontrar novamente o seu espaço. Não é um processo já concluído. Mas, se naquelas reuniões a internet ainda nem era um fator a ser considerado, hoje não há mais dúvida de que ela é parte intrínseca do trabalho do jornalista, não apenas pelas novas ferramentas que oferece no tratamento da informação mas, e talvez principalmente, pela forma como implodiu a noção de hierarquia na divulgação da notícia, não mais exclusiva de grandes veículos estabelecidos.

O cenário é conhecido. A queda de receita dos veículos tradicionais levou a uma diminuição do tamanho dos jornais (e portanto dos textos dedicados a cultura), enquanto o espaço ilimitado da internet acaba reduzido pela busca de audiência, item a partir do qual qualquer ideia de nova monetização do negócio jornalístico se constrói – correndo já não tão por fora nessa busca o protagonismo cada vez maior de sites independentes ou segmentados que multiplicaram não apenas as vozes a falar com o público mas passaram a investigar novos sentidos para o fazer jornalístico. Também a noção do mercado da cultura se transformou. Nele, hoje, há espaço tanto para o grande selo como para o músico que cria e divulga sua obra em seus canais pessoais e é capaz de mobilizar grandes públicos.

Nesse contexto, relativizou-se a função do jornalista cultural como filtro a separar o que tem ou não qualidade, o que é ou não relevante. A imagem do crítico de arte, como diz Daniel Piza em seu livro Jornalismo cultural, como uma presença quase sacerdotal, missionária, atraindo seguidores afeitos a seus julgamentos artísticos, não combina com o que Pollyana Ferrari (em Jornalismo digital) chama de “navegação de pilhagem”, na qual, por ser bombardeado diariamente por uma quantidade avassaladora de informações, o internauta não se sente fiel a qualquer veículo digital. Mais do que isso: compreender e investigar este novo e menos hegemônico mercado cultural exige o tempo que o jornalista já não tem – e isso, paradoxalmente, só o torna ainda mais vulnerável ao que restou da indústria cultural.

Além disso, é bom lembrar, vivemos um próprio questionamento da cultura como valor dentro de uma sociedade. Recentemente, foi extinto o Ministério da Cultura. A decisão depois foi revogada, mas não sem que antes alguns estados, como o Rio de Janeiro, tenham sugerido o fim de suas secretarias como maneira de lidar com a crise financeira. Em Curitiba, a Oficina de Música, evento de duas décadas dedicado à formação de jovens instrumentistas, foi cancelado em 2017 em nome da necessidade de investimento em “áreas estratégicas” da prefeitura. A reação a exposições como Queermuseum, em Porto Alegre, e à performance La bête, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, também foi reveladora não apenas da leviandade com que se trata a questão da censura mas também de uma visão da arte como mero entretenimento, ao qual não cabe propor reflexões e muitos menos incomodar.

Um contexto como esse talvez fosse propício para uma discussão a respeito do que seria o jornalismo cultural de qualidade perante o mundo que temos hoje à nossa volta. Mas, na esteira dos dilemas inerentes à profissão e do próprio questionamento do sentido da arte, o debate que se impõe parece ir em outra direção: precisamos de um jornalismo cultural? E o que dizer do jornalismo dedicado à música clássica e à ópera, essa ave rara na cena artística?

Transformação
Em maio de 2017, a conferência Classical Next, que anualmente discute em Roterdã, na Holanda, os caminhos do mercado da música clássica à luz da necessidade de inovação, dedicou um de seus painéis ao jornalismo musical. A descrição do debate proposto é de tal forma uma lição de síntese que vale a pena reproduzi-la. “Espaço para o comentário profissional sobre música clássica na mídia tradicional está desaparecendo ou, em alguns casos, já desapareceu por completo. Comentários amadores nas mídias sociais e em blogs cresceram exponencialmente, e equipes internas de grandes instituições estão produzindo seu próprio conteúdo, mas nenhuma dessas duas formas oferecem comentários profissionais, informados e objetivos. Em um mundo no qual o conteúdo é pautado cada vez mais pela popularidade (uma competição na qual a música clássica dificilmente será vencedora) e a especialização é vista com suspeita, parece não haver lugar para a antiga crítica musical. Aceitamos que a era do comentário profissional acabou ou podemos encontrar uma solução?”

Uma das conclusões a que se chegou no debate é a de que a diminuição generalizada de espaço para a cobertura de música clássica não diminuiu a demanda por conteúdo que, no entanto, precisou ser produzido em outras searas, um processo facilitado pela internet (blogs, sites, redes sociais) como veículos alternativos à chamada grande imprensa. Uma das tendências identificadas é justamente o jornalismo travestido como ferramenta de marketing. A Orquestra Filarmônica de Berlim, por exemplo, para promover o projeto de transmissão via internet dos seus concertos, passou a produzir minidocumentários e entrevistas sobre o grupo, as obras apresentadas e os artistas envolvidos. Nos Estados Unidos, a Orquestra Sinfônica de Baltimore contratou um grupo de jornalistas para produzir matérias sobre o dia a dia do conjunto. No Brasil, uma das principais empresas de agenciamento de artistas criou um site de notícias de música clássica, tratando naturalmente de seus agenciados e seus projetos. E não é o único caso de publicações (blogs e sites) em que músicos falam de seus próprios projetos ou das instituições a que estão ligados, em textos com verniz jornalístico.

Se aceitamos (e me parece que devemos aceitar) a premissa de Alex Ross, crítico da revista New Yorker, de que o jornalista é aquela pessoa que se levanta diante daquilo que lhe é dito para afirmar “não exatamente”, a pergunta natural é: dá para acreditar na isenção de um maestro ou músico contratado de uma orquestra que, em seu blog ou site, seja lá onde ele estiver hospedado, dispõe-se a falar de seu empregador? Ricky O’Bannon, um dos jornalistas da orquestra de Baltimore, disse em uma entrevista ao site San Francisco Classical Voice que a orquestra lhe dá liberdade para tratar de temas diversos e que em apenas 30% dos casos os textos tratam de um artista ou concerto específico do grupo. Mas ele reconhece que seu trabalho está em uma “área cinzenta” entre relações públicas e jornalismo. Na mesma publicação, Johanna Keller, da Universidade de Siracusa, é mais direta: “Autores ligados a uma instituição jamais terão a liberdade de assumir uma postura crítica e independente a respeito do que escrevem. Isto se chama relações públicas. Pode ser feito bem, de maneira inteligente, as pessoas podem adorar. Mas não é jornalismo. É inconcebível que uma grande organização pague alguém para criticar seu trabalho.”

O caso de blogs individuais ou sites coletivos, não ligados a nenhuma instituição, parece mais complexo. Seus autores não são normalmente jornalistas. E o senso comum sugere que, por conta disso, suas palavras devem ser relativizadas. Mas o que difere esse autor de um jornalista? A formação acadêmica? A compreensão das regras básicas de conduta ética que são o pilar da atividade? Mas será que o descumprimento delas é exclusivo de amadores? É o fato de que jornalistas vivem do que fazem e, portanto, têm com a sua atuação uma relação de maior envolvimento e responsabilidade? É algo relacionado ao fato de que o jornalista ligado a algum veículo foi, de certa forma, testado e chancelado pelo mercado? Mas seria essa, em um contexto de transformação da ideia de mercado, a única chancela possível? Talvez não seja exatamente um diferencial, mas ainda assim algo a que todo jornalista deve se dedicar: uma reflexão constante a respeito do sentido de seu trabalho e dos modos como ele pode se relacionar com o novo contexto social, econômico, político e cultural e, mais do que isso, ajudar a pensar a arte como simbólico desse contexto e como ferramenta de transformação.

Relevância
Grandes orquestras e teatros de ópera têm sido vistos ao longo do tempo como pilares da atividade musical. Pelo tamanho e influência, elas são capazes de manter programações constantes, apresentar grandes solistas e maestros, obras importantes, atrair maiores públicos, desenvolver projetos estruturantes e assim por diante. No entanto, elas também se transformaram, nas últimas décadas, em símbolo de estagnação e comodismo. O seu funcionamento, com uma outra variação, é o mesmo de duzentos anos atrás, assim como a produção artística – as grandes sinfonias e óperas – que eles apresentam ao público. Não se trata de questionar a forma como uma obra do século XIX ainda é capaz de mexer com as plateias e como o contato com ela nos aproxima da enorme tradição cultural ocidental que ainda nos define e, portanto, é capaz de oferecer um olhar sobre nós mesmos. Mas com essa ligação com o passado associada a uma aura de especialização e exclusividade, as grandes instituições mantiveram-se ao longo das últimas décadas em uma posição à margem dos principais debates culturais surgidos na sociedade. E entenderam essa postura, durante um bom tempo, como algo positivo, uma forma de distinção no olhar do público.

Nos últimos anos, no entanto, esse quadro começou a mudar, com o surgimento de projetos sociais ligados à música, que a entendem como ferramenta de transformação. Uma orquestra é composta por dezenas de músicos, separados em grupos, que tocam uma obra musical que deve soar em harmonia, ainda que cada grupo represente uma voz distinta, o que não é um problema, afinal, é justamente da multiplicidade de vozes que pode surgir um todo coeso. Nesse sentido, uma orquestra (ou um quarteto de cordas, um trio etc.) é exemplo tanto da importância da voz individual como da capacidade dela de se articular com o que o outro tem a dizer na busca por um objetivo comum, tornando-se um microcosmos a reforçar a importância de valores democráticos. À luz desse conceito, projetos sociais entendem que ensinar um instrumento a um jovem carente não é apenas oferecer a ele um caminho profissional mas, acima de tudo, abrir espaço para que tenha a chance de descobrir sua própria voz e a importância que ela tem dentro da sociedade.

O impacto desse processo é, claro, individual, mas tem uma consequência também no que diz respeito ao setor como um todo. Primeiro, porque esses músicos que se formam em um contexto de compreensão mais ampla do fazer musical serão um dia os profissionais responsáveis por mantê-lo de pé. E, também, porque a percepção da relevância social da música (ou a importância que ela pode ter na transformação da sociedade) levou gradativamente ao questionamento do papel desempenhado pelas grandes instituições e da estagnação em que viviam. Além dessa consequência direta, há ainda uma outra: grandes orquestras e teatros deixaram de ser compreendidos como caminhos hegemônicos, com projetos menores e independentes buscando espaço e esboçando uma noção de trabalho em rede que mobiliza jovens artistas. Não é um caminho fácil ou plenamente estabelecido, mas ela carrega possibilidades múltiplas – inclusive para grandes instituições que podem, ao lado dessas novas iniciativas, descobrir maneiras diferentes de falar com o público.

E o que tudo isso tem a ver com o jornalismo musical? A.O. Scott, crítico de cinema do New York Times, escreve que o papel do jornalista é “resistir ao consenso manufaturado, interrogar o sucesso, exaltar o desconhecido, argumentar em favor da ambiguidade e da complexidade”. Para tanto, é preciso antes de mais nada um olhar estrutural, que vá além da entrevista com o grande maestro ou solista ou da avaliação crítica preocupada apenas com a afinação do cantor x ou y e assim por diante, aceitando que um espetáculo e um concerto, por suas propostas estéticas ou pelo contexto em que estão inseridos, podem ter ressonância que vai além do momento da apresentação. Mais do que nunca, é necessário também buscar compreender as motivações de quem imagina um meio musical mais amplo, ajudar a fazer essas ideias circularem, dialogar com elas, questionar fórmulas e discursos fáceis. E entender que, por ser em sua maior parte bancada pelo poder público, a atividade musical tem um aspecto político que não pode ser desconsiderado e a sua relação com os governos é, muitas vezes, uma janela privilegiada para considerações a respeito de visões de estado, o que faz de uma orquestra ou teatro de ópera ou um quarteto de cordas um agente importante na cena cultural. Os veículos para tanto são hoje dos mais diversos. Mas de pouco valem se não soubermos que caminho tomar.

João Luiz Sampaio é jornalista e crítico musical. Foi repórter, chefe de reportagem e editor assistente do Caderno 2, Sabático e Cultura, suplementos do jornal O Estado de S. Paulo, do qual é atualmente colaborador freelancer e onde mantém um blog dedicado à cobertura de música clássica e ópera. É editor executivo da revista Concerto.