Walter Carnielli: Afinal: o que é e o que não é ciência?

Por Lívia Mendes, Marco Centurion e Talita Gantus

Em entrevista aos alunos do curso de Especialização em Jornalismo Científico do Labjor/Unicamp, Walter  Carnielli,  professor do Departamento de Filosofia da Unicamp e membro do Centro de Lógica, Epistemologia e História a Ciência (CLE), partiu de sua área de pesquisa – que abrange os conhecimentos em fundamento da lógica e computação, história e filosofia da lógica – para indicar fundamentos conceituais sobre o problema da demarcação científica, a partir do trabalho do filósofo austríaco Karl Popper. Para o professor, as ideias de Popper foram um grande impulso para a demarcação entre ciência, não-ciência e   pseudociência. Para Carnielli, classificar as ciências humanas como não-ciência, diferenciando-as das ciências naturais, seria uma forma de separar o conhecimento do mundo daquele conhecimento sobre o que nos faz humanos. Por  outro lado, etiquetar áreas  como a psicanálise, por exemplo, como pseudociência,   é entender mal os critérios da demarcação e diferenciação entre as áreas do conhecimento.

Como funciona essa área de pesquisa que envolve fundamentos de lógica, computação, história e filosofia?

Minha área de pesquisa, dentro das ciências formais, funciona como qualquer outra atividade acadêmica: levantar problemas, buscar recursos na literatura, apresentar a ideia em congressos, seminários, palestras, e finalmente submeter os trabalhos a publicações. Inclui fundamentos da lógica contemporânea, lógica e fundamentos da computação combinatória finita e infinita, história e filosofia da lógica. Descrevendo dessa maneira passa a ideia de que se trata de uma porção de coisas desconexas, mas esse leque de atividades tem sido desenvolvido em 40 anos de trabalho.

Mais recentemente, também tenho trabalhado na área geral de racionalidade, incluindo probabilidades, pensamento crítico e argumentação em geral. Na prática do trabalho cotidiano de um cientista não aparece propriamente a preocupação com as relações entre as áreas de trabalho e as definições de ciência. O cientista parte do princípio de que sua área é científica, já que as boas revistas e os bons congressos submetem os trabalhos a pareceristas, que se alinham aos cânones da ciência.

E quais as relações com as definições de ciência?

Do ponto de vista conceitual da demarcação, a questão de separar ciência da pseudociência recebeu um grande impulso com o trabalho de Karl Popper e sua proposta de falsificacionismo. As ciências formais, contudo, não envolvem métodos empíricos, portanto, não se enquadram realmente no âmbito daquilo que Popper estava tentando caracterizar como ciência. A falsificabilidade não pode ser aplicada a teoremas em matemática, probabilidade, lógica ou computação teórica. De acordo com Popper, a matemática é um ramo da metafísica, como defende no livro póstumo Realism and the aim of science, editado pela Routledge, em 2015. Porém, Popper não julga a metafísica de forma negativa em comparação com a ciência.

Thomas Kuhn, por outro lado, criticando Popper, mostrou o quanto o progresso científico e a justificação das teorias dependem não apenas da lógica e da racionalidade, mas também da história e da sociologia.

Em meu entender, isso tudo é muito debatível. Alguns filósofos chegam até a afirmar que a matemática, por não ser experimentalmente falsificável, deixaria de ser uma ciência de acordo com a definição de Karl Popper. Contudo, a matemática é certamente uma ciência no sentido amplo de “conhecimento sistemático e formulado”. Na matemática, como em outras ciências formais, o árbitro final da correção é a prova, e não a evidência empírica.

Quais maneiras de definição de ciência surgiram desde as teorias Popper? Dentre essas, quais são consideradas um avanço positivo para essa questão?

Qualquer lista que eu propuser será discutível, mas arrisco dizer que os principais filósofos da ciência após Popper são: Thomas Kuhn, Imre Lakatos, Paul Feyerabend e Hilary Putnam.

O primeiro, Thomas Kuhn, é bastante conhecido por seu trabalho sobre mudanças de paradigma. Sua obra famosa é denominada The structure of scientific revolutions, publicada em 1962 (traduzida no Brasil como A estrutura das revoluções científicas”, publicada pela editora Perspectiva, em 1978).

Sobre Imre Lakatos, a sua maior contribuição para a filosofia da ciência foi a criação do princípio da “metodologia dos programas de investigação científica”, conhecido pela sigla MPIC. Uma revisão radical do critério de demarcação de Popper entre ciência e não-ciência, conduzindo a uma nova teoria da racionalidade científica, pode ser verificado no artigo “Falsification and the methodology of scientific research programmes”, autoria de Lakatos em parceria com Alan Musgrave, publicado na revista Criticism and the growth of knowledge, da Cambridge University Press, em 1970.

Um filósofo um pouco mais radical foi Paul Feyerabend, tecendo uma crítica aos programas tradicionais em filosofia da ciência. Seu livro Against method, de 1975 (traduzido no Brasil para Contra o método pela editora da Unesp, em 2007) é considerado um “anarquismo epistemológico”, como ele mesmo esclarece: “a ciência está muito mais próxima do mito do que uma filosofia científica está preparada para admitir”.

E, por último, Hilary Putnam é famoso pelo seu estudo denominado Philosophy in an age of science: physics, mathematics, and skepticism, publicado pela Harvard University Press, em 2012.

Depois desses nomes, na atualidade, os filósofos da ciência mais conhecidos talvez sejam: Daniel Dennett e Susan Haack. A essa lista podemos acrescentar também algumas propostas mais contemporâneas, como: Timothy Williamson, com seu livro Philosophical method: a very short introduction; e David Lewis, com On the plurality of worlds (uma defesa da surpreendente teoria de que existem infinitos mundos possíveis além do nosso).

De todo modo, me parece que a filosofia da ciência está em crise no momento, sem nenhum pesquisador que verdadeiramente poderíamos chamar de um “grande filósofo”.

Você acredita que os financiamentos em ciência levam em consideração a divisão entre ciência, não-ciência e pseudociência?

Sim, certamente. Nenhuma agência de fomento vai conceder financiamento para astrologia, criacionismo ou terraplanismo. Mas, na minha opinião, há outras propostas que podem ser confundidas com “ciência verdadeira”, como o lysenkoismo – uma campanha contra a genética e a agricultura baseada em métodos tradicionais, conduzida por Trofim Lysenko sob os olhos das autoridades soviéticas.  

A Alemanha nazista, por sua vez, tentou criar uma “física ariana” em oposição à “física judaica”, pretendendo estabelecer uma física baseada em supostos princípios arianos. Esta interpretação distorcida da física pretendia alinhar as teorias científicas com a ideologia racial nazista, mas carecia de qualquer base em princípios científicos genuínos. 

Há ainda o que denominamos de “fetichismo quântico”, que se baseia numa semelhança superficial entre certas noções tradicionais e conceitos da mecânica quântica, aparentemente contraintuitivos, como o princípio da incerteza, o emaranhamento e a dualidade  partícula-onda, inventando clichês e ignorando as limitações impostas, por exemplo, pela “decoerência quântica” (um fenômeno em que a natureza quântica de partículas diminui ou desaparece quando interagem com o ambiente, levando a uma perda de informações e à transição para um comportamento clássico. Um exemplo famoso é a propriedade dual da luz, que na física quântica possui simultaneamente as propriedades de partícula e onda, mas que ao mensurada ou observada, colapsa em um único tipo, assumindo então o aspecto clássico de partícula ou onda).

Contudo, as coisas não são tão simples assim, porque cada vez surgem mais “pseudoteorias” com uma certa aparência científica, que podem induzir equipes inteiras ao erro.

Denominar as ciências humanas de não-ciência não seria uma maneira de minimizar a sua importância?

Sobre essa questão é preciso distinguir algumas terminologias como: ciência, negação da ciência ou negacionismo científico, pseudociência e não-ciência. O negacionismo científico é uma forma extrema de pseudociência, é disso que as teorias da demarcação tentam tratar, ou seja, que se estabeleçam critérios científicos para as diferentes denominações.

As ciências humanas, tanto quanto a matemática e as ciências formais, e mesmo a psicanálise, não entram na categoria que Popper categorizava como ciência que, para ele, envolve métodos empíricos – as ciências naturais – e, portanto, seriam hipoteticamente falsificáveis. No entanto, não é por isso que as ciências “não-empíricas” deixam de ter seus cânones teóricos e seus métodos bem estabelecidos.

As ideias psicanalíticas, por exemplo, são testadas por evidências experimentais, confirmando algumas e refutando outras. Mesmo que a psicanálise não costume utilizar a experimentação, ela tem seus métodos reconhecidos pela comunidade. A filosofia, como outro exemplo, emprega as ferramentas racionais de análise lógica e esclarecimento conceitual em lugar da verificação empírica, embora alguns filósofos naturalistas, como Willard Van Orman Quine, considerem a filosofia uma ciência empírica, porém abstrata, que se preocupa com padrões empíricos abrangentes de observações particulares. Portanto, em meu entender, classificar as ciências humanas como não-ciência, diferenciando-as das ciências naturais, não é uma forma de minimizar sua importância, é sim uma forma de separar o conhecimento do mundo daquele conhecimento sobre o que nos faz humanos.