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Índice do projeto Lab-19

Lab-19 é uma produção dos alunos e alunas da Oficina de Jornalismo  Científico II do curso de Especialização em Jornalismo Científico do Labjor-Nudecri/IEL/IA, da Unicamp, para cobrir a pandemia da Covid-19. Os textos desta série paralela são editados exclusivamente por Germana Barata e Sabine Righetti, professoras do curso. Continue lendo Índice do projeto Lab-19

Povos indígenas precisam de atendimento local para Covid-19 antes de a doença chegar a estado grave, diz pesquisadora

Por Leandro Magrini e Luciane Borrmann

Com mais de 20 mil indígenas contaminados e mais de 300 mortos, a saúde dos indígenas na pandemia tem induzido ações de voluntários e campanhas de doação — que levaram à construção de hospitais de campanha no país inteiro. Mas isso não é suficiente para o enfrentamento da doença. Para a antropóloga e demógrafa Marta Maria do Amaral Azevedo, professora e pesquisadora do Núcleo de Estudos de População Elza Berquó (NEPO) da Unicamp, os povos indígenas precisam de atendimento local para Covid-19 antes de a doença chegar a estado grave.
Marta foi presidente da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) em 2012-2013 e tem atuado na elaboração e monitoramento das políticas públicas para povos indígenas, além de diversas entidades da sociedade civil. Desde 1978, estuda os povos indígenas voltados à saúde, segurança alimentar, educação indígena, demografia, etnologia indígena e sustentabilidade.
Conforme o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, há no Brasil aproximadamente 890 mil indígenas autodeclarados, e cerca de 305 etnias diferentes, a maioria vivendo na Região Norte e no ambiente amazônico. Estudo recente realizado pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) mostra que a população indígena da região Amazônica possui uma taxa de mortalidade na pandemia 150% maior do que a já elevada média nacional.
A situação da maioria dos povos indígenas na pandemia é de extrema vulnerabilidade e para dezenas desses grupos o risco de serem dizimados é muito alto. Para etnias como os Akuntsu (afluente do rio Corumbiara, sudoeste de Rondônia) e os Juma (Alto do Tapajós), cujas populações não chegam a dez pessoas, a chegada do vírus provavelmente resultará em seu extermínio.
A antropóloga falou com a ComCiência sobre o enfrentamento da Covid-19 em comunidades indígenas. Acompanhe a seguir.

A princípio, antes da elaboração do Plano Emergencial dos Povos Indígenas no enfrentamento à Covid-19, publicado em junho, o único atendimento previsto era para os indígenas vivendo em terras demarcadas e regularizadas (Terras Indígenas). O atendimento durante a pandemia foi ampliado? Houve alguma mudança?

MARTA: Isso continua assim. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), do Ministério da Saúde só está atendendo dentro de áreas demarcadas. Da área de atendimento dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), os dois Distritos da região Sul estão super bem desenhados. O problema é ter dinheiro, ter funcionários de saúde – o que nunca há – porque eles são contratados pela Missão Caiuá. É um contrato super precário, anual. Então tem um rodízio de profissional de saúde. Não tem material, nem papel, máscara, termômetro, aspirina, nada!

Sônia Guajajara, liderança indígena bastante atuante, costuma dizer que há uma visão hegemônica estereotipada e distorcida de que os povos indígenas são atrasados, primitivos, preguiçosos e por isso atrasam o desenvolvimento econômico e social do país. Como a senhora analisa isso?

MARTA: Há uma visão de que na Amazônia os índios ainda vivem como índios, e fora dela os índios não vivem como índios. Índio é índio, seja da forma como viver; mesmo aqueles que vivem no centro da cidade, ou aqueles que trabalham em empresas – continuam sendo indígenas! Uma coisa é identidade; outra é a maneira de viver, valor. Isso é bem importante de esclarecer.
Se perguntarmos para qualquer cidadão do município de São Paulo se tem povos indígenas na cidade – irão dizer não, imagina, isso só lá na Amazônia! Sendo que na capital há mais de 10 aldeias. Tem terras demarcadas, terras homologadas, e terras não demarcadas, mas ocupadas pelos Guarani-embura no município de São Paulo. Então o desconhecimento é absolutamente imenso.
Apesar de termos conseguido que os indígenas entrassem no Censo demográfico [de 2010], e de muita coisa ter melhorado, ainda assim a visão dos indígenas é muito distorcida. E para o atual Governo, houve a volta daquela visão do século XVI, de que os índios são preguiçosos, letárgicos… Acho que essa pandemia da Covid-19 não adiantou para dar visibilidade.
Quando você tem uma pandemia cuja população mais vulnerável são os idosos e a outra população mais vulnerável são os indígenas, ou aqueles que moram mais longe de um atendimento – e se você não faz nada para essa população, obviamente você está com alguma intenção. Quero dizer, a ausência de intenção também é uma intenção. Tudo é político.

Muitos idosos que transmitem a cultura para o seu povo e líderes que lutam fora de suas aldeias pelos direitos do seu povo, além de sua representatividade dentro das aldeias, estão morrendo. O que significa a perda de idosos e lideranças indígenas?

MARTA: Por isso mesmo que a gente fala em etnocídio, além de genocídio, no caso da Covid-19. Sabemos que a Covid-19 afeta com muito mais gravidade a população idosa…
Quando a gente fez no Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (NEPO/Unicamp), onde eu trabalho, o índice de vulnerabilidade dos povos indígenas em março (2020), a gente viu isso. A população mais velha, no caso dos indígenas, é de pouco mais de 50 anos. Eles têm uma expectativa de vida mais baixa do que a população pobre das classes D e E, que já têm uma expectativa de vida cerca de 15 anos a menos do que as classes C, B e A no Brasil. Os idosos têm maior conhecimento da cultura, e se todos os velhos morrem, há um impedimento de reprodução cultural. Sem velhos os conhecimentos não estão guardados em lugar nenhum, porque são culturas orais, não são culturas escritas. Nos casos dos índios é uma perda enorme.

Muitas aldeias já estão usando da tecnologia. Elas também estão aproveitando essa tecnologia para guardar essa cultura?

MARTA: Eles filmam muito, gravam muito, mas não tem o mesmo sentido. O problema é esse, a gente acha que é como para nós, grava e substitui. O problema é que para eles, fica gravado; daí eles vão ouvir sentados. Mas nos processos tradicionais de transmissão de conhecimento, esse ensino que os velhos fazem para os jovens não é sentado! É no meio da mata, é nos rituais! Então o sentido da gravação e do guardar ajuda, mas tem outro sentido, diferente do que tem para a gente.

Com esse ritmo de avanço tão grande da disseminação da doença entre os povos indígenas, com sua vulnerabilidade já tão alta, é possível falar em etnias que estão mais vulneráveis?

MARTA: tem o indicador de vulnerabilidade que a gente fez, e os municípios estratégicos para instalar algumas unidades de atendimento aos índios. São dois trabalhos realizados com colegas do IBGE e estão disponíveis no site do NEPO. Estes trabalhos têm acesso aberto para ajudar as políticas públicas, e para que isso contribua para o próprio movimento indígena a se organizar, para evitar e combater a Covid-19. E isso ajudou muito mesmo, porque muitos povos se organizaram, fizeram barreiras sanitárias e pediram doações de EPIs (equipamentos de proteção individual).
Como a epidemia está fora de controle para nós, isso significa que para eles é um ônus ainda maior. Eles estão fazendo barreiras sanitárias 24 horas; estão se alternando, e alguns estão internados não por Covid-19, mas por cansaço, por estafa! Porque eles não dormem, e têm que continuar, uma vez que a epidemia está fora de controle no Brasil.

Temos 305 etnias reconhecidas no país e há dados populacionais efetivos para uma parte destas etnias. Ainda há uma carência muito grande de dados populacionais para várias etnias, e muitas delas chegam apenas a algumas dezenas de pessoas. Há ações específicas sendo realizadas, ou que deveriam ser feitas para proteger os povos indígenas com populações reduzidas?

MARTA: Essa questão da sociedade e povos com população menor – isso foi causado, óbvio, por epidemias e guerras durante o processo de colonização. Então quando você constata uma população de 60 pessoas – isso é uma parte, é o que restou do povo. A gente diz que o povo íntegro ainda é o povo Yanomami, que ainda tem uma população, digamos, ainda grande, num território grande. Um povo que também já sofreu muito, como todos, mas que não se acabou.
O Brasil é o segundo país em diversidade sócio nativa, e isso é super importante. Ter esses 305 povos indígenas no Brasil é um privilégio. É uma riqueza cultural absurda. A gente não está sabendo conversar com eles, aprender com eles. Em geral, a gente vai fazer alguma coisa com o indígena e a primeira coisa que a gente faz é “ensinar”.
E esses povos de menor população estão muito mais ameaçados. Por exemplo, o povo Myky no noroeste do estado do Mato Grosso tem uma aldeia só. Eles são uma aldeia só! E se chegar a Covid-19 lá?! Eles estão fazendo barreira sanitária lá, mas ninguém aguenta fazer barreira sanitária durante um ano.
Por isso digo que é um genocídio e etnocídio! Como uma população de menos de 200 pessoas vai ficar fazendo barreira sanitária? Nas terras dos Myky há dois locais de entrada, além do meio da mata que também dá para entrar. Entra caçador, garimpeiro…
Os povos de menor tamanho populacional realmente são mais vulneráveis. Mas a política é a mesma. Não há nenhuma política diferente a não ser para em isolamento voluntário. Aí sim há uma política específica para esses povos com recente contato e isolamento voluntário, pela falta de conhecimento do que está acontecendo ao redor deles.

O presidente Bolsonaro ao sancionar a Lei 14.021/20 no início de julho vetou diversas medidas essenciais para a prevenção de contágios dos povos indígenas por Covid-19, dentre as quais a obrigatoriedade de fornecimento de água potável. Em seguida, o vice-presidente Mourão disse que “o indígena se abastece da água dos rios que estão na sua região”. Por que a água potável é importante para os indígenas?

MARTA: O que está lá não é só água mas todo um sistema de saneamento e energia que já devia ter sido criado há muito tempo e nunca ninguém fez.
Essa questão da água potável, mesmo morando em lugares longínquos como, por exemplo, no Alto do Rio Negro, e com o crescimento populacional e o manejo do lugar de cada comunidade, muitas vezes esses povos se contaminam com vermes. A incidência e prevalência de vermes e de verminoses entre as crianças acabam deixando as crianças subnutridas.

Então a falta de saneamento e de água potável nas aldeias deixa a população mais vulnerável a qualquer tipo de infecção?

MARTA: A cólera, no começo dos anos 2000, por exemplo, chegou perto. A nossa sorte foi que a cólera não foi para frente porque não sobreviveu às águas ácidas do Rio Negro. Muitas vezes tem incidência de hepatite, até do tipo G, e hepatite tem muito a ver com falta de saneamento. E há várias outras coisas que existem por falta de saneamento e vacinação. A vacinação neste Governo atual também caiu muito. A cobertura vacinal dos índios chegou a cair 15% de uma cobertura que já estava em 90% em alguns distritos sanitários.
São questões muito sérias e todo mundo [que trabalha com essas questões] sabe em quais regiões é mais urgente fazer o saneamento. Existem muitos especialistas no Brasil que sabem, então precisamos de uma mudança na concepção do “não vou fazer nada porque não posso fazer tudo”. Não posso fazer tudo agora, então faz onde é mais urgente, que é aqui por exemplo… em aldeias de regiões mais próximas em que a água potável e o saneamento são mais urgentes, e em regiões mais longe. A água potável é super importante!

Além de toda a gravidade do quadro que a senhora expôs em relação às medidas sanitárias, da contaminação das águas, das doenças infecciosas e contagiosas, ainda tem as contaminações de diversas áreas no entorno de terras indígenas devido ao uso de agrotóxicos em plantações e às atividades de garimpo.

MARTA: Sim, você tem toda razão. Os povos indígenas na região Norte sofrem com o mercúrio e com os peixes que vão comer. O Rio Madeira está inteirinho contaminado por mercúrio e é uma contaminação que afeta os peixes – e isso não some! Os Yanomami [em algumas aldeias] têm uma proporção de cerca de 85% da população contaminada por mercúrio. E isso provoca problemas de saúde muito sérios, problema digestivo, intestinal, muitas vezes neurológico. A contaminação por mercúrio é por conta do jeito absurdo que o garimpo ilegal é feito. Então se vai fazer uma mineração por ouro podia melhorar a tecnologia e não deixar contaminados povos inteiros. Além dos agrotóxicos que são jogados por aviões e acabam contaminando toda a água. Nossos Aquíferos já estão todos contaminados.

Recentemente a jurista brasileira Deisy Ventura, especialista em direito internacional, afirmou que há elementos suficientes para investigar o presidente Jair Bolsonaro por crimes contra a humanidade como o extermínio e o genocídio, com intencionalidade e ações sistemáticas. Há ainda a importância do debate sobre essas investigações como forma de conscientizar a população. Como a senhora vê esse cenário? Acredita que deva haver uma união de entidades indígenas e ONGs defensoras dos direitos indígenas ingressando no campo da disputa jurídica para a responsabilização dos agentes públicos?

MARTA: Eu acredito que sim, que o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), e a Apib, com certeza já estão entrando com ação, inclusive juntas. A OAB tem um núcleo de direitos indígenas com advogados totalmente comprometidos, tem o ISA, uma série de organizações captadas pelo próprio Eloy Terena, advogado que foi ao Supremo (STF) defender a suspensão dos vetos presidenciais ao plano de atendimento emergencial aos povos indígenas frente à Covid-19.
Eu não sou técnica em direito, não trabalho com isso, mas acho super importante esses processos. Quando você assume um cargo público você tem uma obrigação com aquele cargo, há uma missão para qual você é escolhido como servidor público, e se não fizer a função pode ser processado e condenado. Eu acho que o atual presidente da FUNAI tem que ser processado com certeza porque ele não está fazendo o papel pelo qual ele foi escolhido; ele não desempenha a sua missão. Da mesma forma que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tem que ser processado porque ele não cumpre o que foi determinado para fazer. Você não assume um cargo público sem responsabilidade. Isso é um absurdo, um escândalo.
Para mim este é o maior escândalo do Governo Federal hoje em dia. As pessoas que estão lá não tem responsabilidade, não tem compromisso, não tem ética, não tem moral, não tem valores humanos. São todos sociopatas. Essa é a definição de sociopatia. As pessoas não têm empatia nenhuma com o coletivo ao qual estão servindo. Na verdade, eles estão lá para enriquecer mais…
Acho que apesar da Covid-19, os povos indígenas continuam muito invisíveis, mesmo nessa pandemia. E acredito que esses processos têm que acontecer porque a justiça tem que ser feita; a justiça social tem que ser feita. É muito importante que se dê visibilidade a estes processos. Os jornalistas têm que estar mais atentos a estes processos. Acho que poucas pessoas sabem, por exemplo, que no Tribunal Internacional de justiça de Haia os Salesianos foram condenados em 1988 pelos maus tratos aos povos indígenas. Assim como os povos Xavantes que eram mantidos em internatos, presos, a partir dos sete anos de idade. Os Salesianos tiravam as crianças das mães e colocavam no internato até completarem 18 anos. Isso impedia que os povos indígenas fizessem todas as festas de iniciação das meninas e dos meninos. Então você arrebenta com a produção cultural do povo. Isso é super grave. Isso no caso é um etnocídio!

Sete em cada dez profissionais de saúde pública não se sente preparado para lidar com a pandemia

Por
   Ana Carolina Bezerra da Silva
   Júlia Ramos

Apenas um em cada três profissionais de saúde pública foi testado para Covid-19, metade não recebeu equipamentos de Proteção Individual (EPI) e 70% deles não se sentem preparados para lidar com a Covid-19. Os resultados foram divulgados pelo Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) no dia 30 de julho na segunda fase da pesquisa “A pandemia de Covid-19 e os profissionais de saúde pública no Brasil”.

A pesquisa mostra também que, apesar de 78% dos profissionais relatarem que que sua saúde mental foi afetada, apenas 20% recebeu algum tipo de apoio. Esse é o caso de Helena*, médica residente em um grande hospital da cidade de São Paulo. “Recebi pouco treinamento. Apenas o básico sobre paramentação e desparamentação no atendimento a casos suspeitos de Covid-19. Não recebi treinamento sobre como manejar clinicamente os pacientes”, diz em entrevista à reportagem.

Apesar da situação não ser favorável em nenhuma região do país, Norte e Nordeste têm as piores condições de trabalho e que os Agentes de Controle de Endemia (ACE) e Agente Comunitário de Saúde (ACS) são os profissionais em situação de maior vulnerabilidade.

Realizada entre os dias 15 de junho e 1º de julho, a pesquisa usou um formulário online para coletar impressões de 2.138 profissionais de todos os níveis de atenção e de todas as Unidades Federativas do Brasil e procurou medir a percepção desses profissionais sobre o avanço da pandemia, saúde mental, assédio moral e testagem.

A pesquisa foi distribuída por compartilhamento de links das redes sociais e aplicativos de troca de mensagens. Os resultados trazem a opinião dos respondentes e não podem ser generalizados para todos os profissionais de saúde pública do país. “Os dados, no entanto, trazem um bom retrato do que pensam os profissionais que estão na linha de frente do combate à pandemia por meio dos respondentes”, disse a coordenadora do trabalho, Gabriela Lotta, no lançamento da pesquisa.

Com uma média nacional de 1,4 leito de UTI no sistema público de saúde para cada 10 mil habitantes e 70% da população dependente do SUS, a distribuição de EPIs e a testagem dos profissionais são necessárias para proteger tanto a população quanto os profissionais. Segundo Gabriela Lotta, uma das responsáveis pela pesquisa, a testagem de profissionais é uma forma de impedir que eles se tornem vetores da doença e contaminem pacientes ou colegas de trabalho.

De acordo com dados do Ministério da Saúde divulgados no dia 05 de agosto, existem 233.912 casos confirmados e 169 mortes entre os profissionais da saúde. Os mais afetados foram os profissionais da enfermagem com 114.009 casos confirmados, seguidos pelos médicos (25.207 casos confirmados) e agentes comunitários de saúde (11.346 casos confirmados). “Conheço facilmente mais de 40 pessoas que ficaram doentes. Pais, irmãos, amigos e colegas de trabalho. […] o hospital aqui é bem grande, muita gente se contaminou”, conta Helena.

O Projeto de Lei 1826/2020, surgiu como forma de oferecer “um mínimo de segurança financeira e direitos para poder exercer sua atividade com um mínimo de amparo do governo”, de acordo com o próprio documento. O PL prevê indenização à profissionais que se infectaram com o novo coronavírus atuando no combate à pandemia e ficaram permanentemente incapacitados. O projeto também garante indenização aos cônjuges, dependentes e herdeiros do trabalhador de saúde que tivesse falecido por ter atuado diretamente no atendimento de pacientes da doença ou em visitas domiciliares.

Apesar de ter sido aprovado pelo Congresso em 14 de julho, o PL foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro. Ainda assim, o Congresso pode decidir se derruba ou mantém o veto em uma sessão conjunta a ser agendada. Se for derrubado, a lei seguirá para promulgação.

*a entrevistada pediu anonimato.

Pandemia impacta mais a vida das mulheres

Para psicólogas , a Covid-19 e o isolamento social causaram aumento da violência doméstica, sobrecarga de trabalho e diminuição da produtividade

Por Eliane Comoli e Karen Canto

Quando os primeiros países começaram o isolamento, a ONU Mulheres lançou um alerta mundial, advertindo autoridades políticas, sanitárias e organizações sociais sobre a forma como a pandemia da Covid-19 e o isolamento social poderiam afetar as mulheres – tanto através da sobrecarga de trabalho como através do incremento dos índices de violência doméstica e diminuição de acesso a serviços de atendimento. De fato, dados recentes, apontam aumento de 22% nos casos de feminicídio no Brasil, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), entre os meses de março e abril. Já a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) realizada pelo IBGE, aponta que cerca de 7 milhões de mulheres deixaram seus postos de trabalho no início da pandemia, 2 milhões a mais do que o número de homens na mesma situação.

“O documento da ONU aponta que, na história da humanidade, toda crise social atingiu com mais intensidade as mulheres”, observa Simone Mainieri Paulon, psicóloga, professora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A pesquisadora também coordena o projeto Clínica Feminista na Perspectiva Interseccional da UFRGS, no qual acompanha mulheres em situação de vulnerabilidade e, desde o início da pandemia, percebeu que as mulheres sofreriam um grande impacto. Nesta entrevista, Simone com a participação da psicóloga Marília Jacoby, especialista em Atendimento Clínico e Mestre em Psicologia Social que coordena o projeto Clínica Feminista juntamente com Simone P, analisam os intensos impactos da pandemia na vida de mulheres.

Marília Jacoby. Arquivo pessoal

A realidade do home office imposta pela pandemia poderia, em princípio, ser considerada uma situação amena, afinal, trabalhar de casa poderia ser considerado um ganho. Passados mais de quatro meses, quais os efeitos desta nova realidade?

Marília Jacoby: Sem dúvidas que, com o ritmo acelerado da vida moderna, trabalhar de casa pode trazer benefícios para a qualidade de vida, com melhor otimização do tempo dedicado às atividades laborais e às demandas familiares e domésticas. Contudo, esta é uma realidade que precisa ser relativizada a partir de marcadores que resultam em diferentes atividades e condições de vida desiguais entre as mulheres.
Considerando as mulheres que podem manter suas atividades profissionais de forma remota e permanecer em isolamento, o modo repentino como a exigência do home office ocorreu trouxe dificuldades adicionais. As famílias precisaram adequar espaços privativos para trabalho e estudo. Além disso, existe a lógica da produtividade a qualquer custo. Se não tivermos cuidado para estabelecer fronteiras claras entre o horário de trabalho e o tempo para demais instâncias da vida, o trabalho pode acabar tomando um espaço excessivo e indevido. Neste sentido, temos ouvido relatos de mulheres que somaram à carga horária de suas atividades em ambiente virtual, todo trabalho doméstico, as atividades escolares dos filhos e os cuidados com parentes idosos que estão isolados. Além disso, mulheres ainda se deparam com as cobranças para não negligenciar os cuidados com a própria saúde e aparência física.
Há que se ter cuidado para não cair na cilada de que o home office implique disponibilidade absoluta, pois a tendência é que todo dia fique com cara de segunda-feira. Manter uma rotina organizada, procurar estabelecer limites entre trabalho e rotinas familiares, preservar espaços para contatos afetivos e cuidados pessoais, parece ser a saída mais salutar e produtiva. E, principalmente, baixar as exigências sobre si mesmas pretendendo dar conta do mundo em um momento em que esse mesmo mundo está de pernas para o ar.

De acordo com o que vocês têm verificado na clínica ou em pesquisas, o isolamento social é sentido de forma diferente para homens e mulheres? Em caso afirmativo, é possível traçar uma relação com o machismo estrutural?

Simone Paulon: Sim, o impacto é maior nas mulheres e isso está ligado ao machismo estrutural. A sobrecarga e acúmulo de funções, a carga mental invisível, a violência doméstica e de gênero são produtos históricos da cultura patriarcal e machista na qual nos encontramos.

As discrepâncias entre o tempo dedicado por homens e mulheres às atividades domésticas é abissal. Segundo dados do IBGE de 2018, antes da pandemia as mulheres já dedicavam o dobro de horas semanais ao trabalho doméstico e/ou cuidado com pessoas, se comparado aos homens.
A pesquisa recente “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia” (realizada pela ONG “Gênero e Número” e pela Organização Feminista “Sempreviva”), concluiu que entre as 2.641 mulheres entrevistadas, 47% afirmaram ser responsáveis pelo cuidado de outra pessoa: 57% são responsáveis por filhos de até 12 anos, 6,4% afirmaram ser responsáveis por outras crianças, 27% afirmaram ser responsáveis por idosos e 3,5% por pessoas com alguma deficiência. Essa pesquisa fornece elementos importantes para olharmos as dinâmicas sexistas do cotidiano dos domicílios, e compreendermos que a pandemia pôs em foco a intensificação e o aprofundamento de dinâmicas de desigualdade que estruturam a sociedade brasileira e são sentidas no dia a dia das mulheres.

A violência de gênero também se agravou no contexto da pandemia. A situação de isolamento físico intensifica, por exemplo, a masculinidade tóxica e uma resposta violenta ao conflito.
Um indicador interessante são os serviços de disque-denúncia (como o 180). A Itália, que iniciou o isolamento social mais cedo, registrou um aumento de 161,71% nas denúncias entre os dias 1º e 18 de abril, de acordo com órgãos oficiais. O serviço argentino teve um aumento de 39% na segunda quinzena de março. No Brasil, o aumento foi de 14% no primeiro quadrimestre, com o ápice em abril, registrando aumento de 37,6% em relação ao ano anterior. Isso equivale a 37,5 mil denúncias apenas nos quatro primeiros meses. 

É preciso, ainda, contextualizar que mesmo antes da pandemia, o Brasil já era o 5º país do mundo no índice de feminicídios, há anos figura entre os piores em termos de desigualdade de renda e é considerado o país que mais mata pessoas LGBTQI+.

Atentas a esses desafios, desde o mês de março começamos a nos organizar para um possível auxílio emergencial a mulheres em situação de violência doméstica durante a quarentena. Transformamos as atividades presenciais do então recente projeto “Clínica Feminista na perspectiva da Interseccionalidade” em atividades remotas, e, junto à ONG Themis – Justiça de gênero e Direito Humanos – disponibilizamos canais de escuta sistemática – tanto em grupos como individualmente – às mulheres que trazem marcas desta desigualdade.

Através dos canais no Facebook e Instagram oferecemos espaços de acolhimento e promoção de saúde mental, e também orientações elementares (como o funcionamento dos canais de acesso à justiça e dos serviços da rede pública de atendimentos na área de saúde e justiça), dicas culturais e possibilidades de encontros remotos. É importante que as mulheres em situação de vulnerabilidade por violência doméstica não confundam o isolamento físico com isolamento afetivo e busquem contatos sociais que rompam seus sentimentos de solidão e sofrimento individual.

Tipos de violência doméstica sofrida por mulheres brasileiras durante a pandemia. Fonte: Relatório Pesquisa Sem Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia

A dificuldade da mulher na obtenção de reconhecimento, títulos e postos semelhantes aos dos homens é histórica. Essa invisibilidade tem sido atribuída ao preconceito, machismo e poder controlador. Qual o impacto da pandemia na vida da mulher-mãe quanto à produtividade e progressão da carreira?

Simone Paulon: O que temos percebido é a repetição de uma condição histórica, num contexto atípico. Com a pandemia, a tendência é que este quadro se agrave e isto já tem aparecido, por exemplo, na diminuição do número de artigos científicos submetidos por mulheres em relação àqueles submetidos por homens nesse período. Levantamento recente do projeto brasileiro Parent in Science indica que 40% das mulheres sem filhos e 52% das mulheres com filhos não concluíram seus artigos neste período, contra 20% e 38% de homens na mesma situação. A média de manuscritos tendo mulheres como primeira autora foi de 37% entre 2016 e 2020, mas caiu para 13% neste 1º trimestre de 2020.

Vivemos em uma sociedade na qual as mulheres ainda recebem, em média, 30% a menos que os homens para desempenho de uma mesma função de trabalho, e que ocupam menos de 1/4 de cargos de liderança ou chefia, seja no serviço público ou privado.

Outro indicativo da cultura colonial-racista-patriarcal no mundo do trabalho, diz respeito às crescentes desigualdades observadas em carreiras que já foram tradicionalmente masculinas. Um exemplo clássico é a carreira jurídica. Quando se avalia a distribuição de bacharéis de direito na magistratura, os números são assustadoramente desiguais. As mulheres são apenas 35,9% dos membros da magistratura, percentual que diminui nos cargos mais altos do Poder Judiciário: no estágio inicial da carreira (juiz substituto) 42,8%, Juízas Titulares diminui para 36,6%, Desembargadoras 21,5% e Ministras de tribunais superiores somente 18,4%.

Todos esses dados indicam que as desigualdades que já existiam no campo de trabalho se agravaram com a crise econômica resultante da pandemia.

Muitas mulheres abandonaram o trabalho ou os estudos por não terem ajuda no cuidado com filhos ou porque passaram a ser cuidadoras de familiares idosos. Nesse contexto, que marcas a pandemia deixará nessas mulheres?

Marília Jacoby: Este é um ponto muito importante que ratifica a necessidade imperiosa de que nossa leitura e estratégias de intervenção estejam pautadas pelo reconhecimento das desigualdades sociais e das desigualdades de gênero que nos atravessam de forma tão contundente enquanto sociedade. É preciso que exercitemos cotidianamente o reconhecimento de nossa ‘localização’ no social e o modo como se conformam os marcadores de raça, gênero e classe em nossas realidades pessoais e nas realidades das mulheres que escutamos.
Assim como assinalamos anteriormente preocupações com os impactos da sobrecarga nas mulheres em trabalho remoto e circunscritas ao circuito das demandas domésticas e familiares, também não podemos deixar de enxergar os privilégios que se escancaram no contexto da pandemia (privilégios que operam como construção histórica e social de longa data). Para muitas, infelizmente, a proteção do isolamento não foi opção. As urgências do cotidiano e das necessidades básicas imperaram, expondo-as de variadas formas, reiterando para essas mulheres a marca do desamparo, da ausência de proteção social e de políticas públicas efetivas.
O racismo é uma marca histórica pungente no Brasil e temos nas mulheres negras sua face mais atroz, estando elas na condição de maior vulnerabilidade social e psíquica. Construir frentes de trabalho que atuem de modo incisivo no enfrentamento ao racismo deve ser condição primária de uma atuação clínica feminista.

Baseado no trabalho da Clínica Feminista é possível inferir as perspectivas que as mulheres têm sobre a vida e os espaços que elas ocuparão após a pandemia? E o que as mulheres podem fazer coletivamente para enfrentar as dificuldades que o futuro pós-pandêmico reserva?

Simone Paulon: O que mais têm nos impactado desde que iniciamos os grupos com mulheres em situação de vulnerabilidade é a capacidade organizativa e solidária que elas rapidamente desenvolvem para lidar com as inúmeras adversidades. Contrariando a caricatura competitiva, o que vemos são mulheres aprendendo a cuidarem de si para se fortalecerem mutuamente e seguirem cuidando de quem depende delas. Mulheres inventando formas de sobrevivência cotidiana que vão desde a troca de farinha nas janelas até movimentar redes imensas de doações de cestas, confecção de máscaras e busca de conexões com gente do país todo para ampliarem seus limites de cuidar.

Essa generosidade e capacidade de organização podem ser os mais importantes aprendizados que a pandemia nos trará. Mas isso precisa ser potencializado, apoiando coletivos feministas, transformando concretamente os espaços de representação política em espaços de todos, apoiando candidaturas de mulheres negras – as mais atingidas pelas desigualdades do país – e cobrando das instituições públicas o devido investimento nas políticas sociais que vêm sendo violentamente desmontadas.

É uma verdadeira reprodução da violência que o patriarcado já imputa às mulheres, ao longo da história, que segmentos estatais responsáveis pelos direitos da mulher, pela defesa de direitos humanos, de saúde pública e de educação inclusiva, incluindo as políticas afirmativas, venham sendo sistemática e planejadamente desconstituídos no processo de recuo democrático que vivemos no Brasil. O enfrentamento às violências de todas as ordens, marcadamente as violências de gênero, não se dará sem uma ruptura radical com a lógica colonial, racista e machista que estrutura nossa sociedade. Contudo, os pilares dessa sociedade estão tardiamente abalados, pois quando as mulheres vão às ruas é a potência da criação que pede passagem. E como nos ensinou Angela Davis: “Precisamos nos esforçar para erguer-nos enquanto subimos”. Em outras palavras, devemos subir de modo a garantir que todas as nossas irmãs e irmãos subam conosco.

Eliane Comoli é bióloga, mestre e doutora em Neurociência pela USP, docente da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP e aluna do curso de especialização em jornalismo científico Labjor/Unicamp.

Karen Canto é graduada e mestre em Química pela UFRGS, doutora em Ciências pela Unicamp, aluna do curso de especialização em jornalismo científico Labjor/Unicamp e bolsista Mídia Ciência (Fapesp).

Inserção da ciência na mídia revela incertezas da produção científica

Por Oscar Freitas Neto

A pandemia de Covid-19 tem dominado a produção científica mundial, e não poderia ser diferente, mas a severidade da situação impõe um ritmo acelerado sem precedentes. Enquanto a ciência se aproxima do feito inédito de desenvolver uma vacina em tempo recorde ou um possível tratamento para a doença causada pelo novo coronavírus, também soma uma série de erros. Torcendo por respostas rápidas e definitivas, muitos olhos se voltam à ciência, deixando suas falhas e incertezas à mostra como nunca estiveram.

Depois que falhas em estudos sobre o novo coronavírus ganharam o noticiário, levantou-se a questão se o grande volume e a produção acelerada são condizentes com os tempos e processos da ciência. Dois importantes periódicos, The Lancet e The New England Journal of Medicine, retrataram em junho artigos que foram criticados por inconsistências nos dados e falta de transparência. Antes, em abril, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), conselho que tem a atribuição de avaliar aspectos éticos das pesquisas que envolvem seres humanos, suspendeu o estudo da Prevent Senior após verificar que haviam iniciado testes sem receber o autorização da comissão.

Segundo o boletim do dia 04 de agosto da Conep, foram aprovados 634 protocolos de pesquisas sobre Covid-19. Dessas pesquisas, 165 são estudos experimentais, ou seja, testam terapias para a doença. Para comparação, uma busca por Zika na plataforma Brasil, base nacional que organiza pesquisas com seres humanos, entre 2015 e 2016, anos do agravamento da epidemia da doença, retorna apenas 87 registros.

Em documento que orienta pesquisadores e comitês de ética, a Conep escreve que “tem observado falhas metodológicas com implicações éticas que comprometem a segurança dos participantes de pesquisa ou a validade do estudo”. Segundo Jorge Venancio, coordenador da Conep, 90% dos ensaios clínicos aprovados são de instituições nacionais e esse esforço gigante é relevante levando em conta o recente corte de verbas e bolsas para a ciência e tecnologia. Por outro lado, isso traz por vezes pesquisadores ainda sem uma grande experiência na área.

O coordenador da Conep afirma que estão sendo rigorosos em relação aos critérios estabelecidos, reforçando também a orientação aos pesquisadores. “Nossa atuação tem sido de fazer o debate ético em nossos pareceres para aproveitar ao máximo o esforço dos pesquisadores, garantindo a segurança e o direito dos participantes”, conclui.

Tempestade perfeita

“O maior problema tem recaído na divulgação de resultados de pesquisas sem reprodutibilidade”, explica Silvia Galleti, pesquisadora do Instituto Biológico (IB-APTA), da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. Ela ressalta que a boa ciência é caracterizada pela possibilidade de ser reproduzida, ou seja, que pesquisadores independentes consigam verificar o resultado repetindo um estudo.

A impossibilidade da reprodução foi o caso, por exemplo, dos artigos retratados em junho na The Lancet e The New England Journal of Medicine. Especialistas levantaram inconsistências nos dados fornecidos pela empresa Surgisphere, que se negou a abri-los para uma auditoria. A falta de transparência foi determinante para que os autores pedissem a retratação do artigo.

“Uma tempestade perfeita de erros, ambições, pressas, azares e desacertos” é como descreve essas falhas, Ivan Domingues, professor do departamento de filosofia da UFMG, que ainda lembra da contaminação do ambiente e do debate pela política. Para que os erros cheguem ao ponto da retratação, falhas têm de ocorrer em diversas instâncias, de autores do estudo a editores e revisores. Entram também na conta jornalistas que, confiando na autoridade da The Lancet, divulgaram resultados que pareciam definitivos à questão da hidroxicloroquina.

Em situação de produção normal, a acadêmicos já sofre por pressões de produtividade, que é sumarizada na expressão “publicar ou perecer”. “Na tentativa de não perecer, alguns pesquisadores podem, durante a sua vida acadêmica, já terem publicado resultados passíveis de serem falhos”, diz Silvia.

Ivan utiliza outro termo para isso: taylorismo acadêmico. A ênfase que se dá muitas vezes na quantidade sobre a qualidade gera diversos problemas, sendo as fraudes e plágios suas consequências mais sérias. “A pressa, a corrida para chegar primeiro, o requentamento das publicações e o seu fatiamento, com os males e os estragos que isso gera, constituindo uma distorção sistêmica”, explica.

Esse fenômeno só tem a se intensificar ao adicionar as milhares de vidas perdidas, o sofrimento, assim como as implicações econômicas e sociais a uma situação tão incerta como da pandemia. “Daí a urgência, a quebra dos protocolos e a ânsia por resultados, em meio a muita angústia, a muitas incertezas e a muita dor e sofrimento”, afirma Ivan.

Todos os olhos na ciência

Pelo lado da população, a expectativa também é alta por uma solução rápida e direta. Contudo, o cenário não é dos melhores ao juntar a divulgação precipitada de alguns resultados de pesquisa. “Quando esses dois fatos se encontram, certamente, não se tem qualquer benefício: a sociedade não tem a resposta necessária, e merecida, e a ciência não tem o avanço esperado”, avalia Silvia Galleti.

A percepção que se tem normalmente da ciência de construir verdades e certezas pode ser também fonte da expectativa. O antropólogo e filósofo da ciência, Bruno Latour, em entrevista ao Correio do Povo antes da pandemia, em 2017, resume a questão: “o objetivo da ciência não é produzir verdades indiscutíveis, mas discutíveis”.

“A ciência não é lugar para dogmas ou verdades ditadas por um oráculo, mas um processo de descobertas e de correções de rumo. Sobre muita coisa sabemos hoje mais do que ontem, mas menos do que amanhã: então, o entendimento da falibilidade como algo positivo é o que nos possibilita distanciar a ciência de todas as formas de dogmatismo”, explica Ivan Domingues.

O trabalho do cientista não é desprovido de dúvidas e incertezas, e com um novo vírus que sobre pouco se sabe, isso se acentua. Novas evidências surgem, o ambiente se altera e novos conhecimentos vão sendo produzidos. Soma-se a isso o fato de que a ciência vem tendo grande inserção na mídia e, dessa forma, falhas, erros e correções que antes ficavam apenas na comunidade científica agora estão a mostra para todos.

“A falibilidade e, junto com ela, a retificação não devem ser vistos como coisa ruim, mas como a sua chancela e o crédito de confiança que podemos dar à ciência, ao que ela faz e ao que ela promete”, conclui.

Avanços

A pandemia ajudou a intensificar um processo de maior abertura e transparência da ciência, movimento esse que já vinha acontecendo. A produção científica, muitas vezes fechada em periódicos que cobram pelo acesso, com o movimento da Ciência Aberta, passam a ser de acesso público o que agiliza o processo da ciência.

Os preprints, artigos que ainda não passaram por revisão de especialistas, são um exemplo desse processo que ganhou relevância no atual momento. A prática proporciona uma comunicação mais rápida de resultados entre grupos de pesquisa, além de permitir que pesquisadores recebam contribuições antes do término do estudo. Em contrapartida, a divulgação dos resultados, por ainda não terem passado pela avaliação de um periódico, demandam mais cuidado.

O SciELO Brasil, biblioteca eletrônica de periódicos científicos brasileiros, iniciou em abril seu serviço de preprints, dedicando-se inicialmente às produções relacionadas à Covid-19. Para que o manuscrito seja aceito na plataforma, deve seguir critérios como comunicar resultados de pesquisa original, todos os autores contarem com afiliações institucionais e o autor principal ter um histórico de artigos indexados. De acordo com Silvia Galletti, que é também editora de preprints da SciELO na área, apesar de não haver endosso implícito pelo SciELO, caso seja detectado violações éticas, a plataforma removerá o manuscrito.

“O movimento do Ciência Aberta veio para favorecer a cooperação nas pesquisas, bem como democratizar o acesso e uso do conhecimento científico. É um caminho sem volta. Precisamos apenas de um tempo para que todos os atores envolvidos nesse cenário aceitem esse novo modo de se fazer ciência”, afirma Silvia.

Podcast Oxigênio traz série sobre ciência, sociedade e pandemia

Quarentena, série dedicada a cobrir a Covid-19, chega a sua quarta edição com episódio sobre os bastidores da ciência

Por Carolina Sotério

Estreado em 16 abril como parte dos esforços do projeto Lab-19 na cobertura da Covid-19, o Quarentena é uma série mensal do Oxigênio podcast, produzida e apresentada por Carolina Sotério sob orientação de Simone Pallone de Figueiredo, pesquisadora do Labjor. No dia 23 julho, a série publicou seu quarto episódio com o tema “Os bastidores da ciência” e participação da bióloga Natalia Pasternak, pós-doutoranda na Universidade de São Paulo e presidente do Instituto Questão de Ciência, Altay Lino de Souza, estatístico, apresentador do Naruhodo Podcast e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Rafael Izbicki, estatístico e professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). O diferencial da produção é, além da pitada literária, o fato de ser integralmente produzida em período de distanciamento social.

O fenômeno do podcasting tem se intensificado nos últimos anos e, de acordo com a Associação Brasileira de Podcasters (ABPod), se resume a uma forma de publicar arquivos de áudio ou vídeo por meio de um feed RSS, o que permite um acompanhamento instantâneo das produções na Internet além de downloads automáticos. Agora com a pandemia, produções que cobrem o cenário inédito têm surgido para transmitir informações por meio de um formato semelhante ao rádio.

Os bastidores da ciência

O episódio recém publicado traz para discussão o trabalho do cientista, seus impactos na sociedade, no estudo sobre o novo coronavírus e a forma como a ciência tem se adaptado ao mundo remoto. Com o intuito de “revelar” o pesquisador por trás dos feitos científicos, muito dos estereótipos são desconstruídos. A visão dos cientistas como pessoas geniais e solitárias que trabalham apenas com cérebro e papel está bem longe da realidade. “Não adianta você ser brilhante e você não ter uma boa equipe pra trabalhar, você não vai conseguir fazer nada sozinho”, diz Natalia.

Ainda, na contramão do ideal popular, o episódio também revela os cientistas que não necessariamente precisam de uma bancada e jaleco para trabalharem. Rafael, por exemplo, revelou detalhes da profissão de estatístico, que compreende desde o desenho de experimentos e coleta de dados até a transformação destes em informação útil. “recisamos criar métodos novos para resolver esses problemas e isso envolve muita matemática e muita computação”, reitera.

Altay, por sua vez, fez colocações sobre o método científico e o fato de que diferentes áreas do conhecimento produzem ciência de diferentes formas. Segundo o professor, o método é uma forma de testar as hipóteses que são levantadas. “Você não trabalha com a certeza, você reduz a incerteza.” Após discutir diferenças entre métodos indutivos e dedutivos, o entrevistado faz críticas aos métodos e colocações sobre as dificuldades que diversas áreas de estudo lidam para efetivamente fazer pesquisa. “Nenhuma área está incólume a esses problemas de crítica epistemológica de como o conhecimento é construído em cada uma delas”, enfatiza.

Com a pandemia, o trabalho dos cientistas ficou em evidência, assim como as dificuldades inerentes. Frente a falta de oportunidades, infraestrutura e as bolsas de pesquisa com valores não atualizados desde 2013, entre outras coisas, têm motivado a fuga de cérebros no país. Para Natalia, se continuarmos nesse ritmo, as consequências serão nefastas. “O futuro promete muito pouco para a ciência brasileira se a gente não mudar de atitude e se não tivermos um governo mais favorável também”, diz.

Episódios anteriores

Neste mês de junho, o Quarentena fez o lançamento da edição “Envelhe(ser)”, abordando questões sobre velhice e pandemia. Com informações a respeito dos cuidados necessários e políticas públicas para esta parcela da população, o episódio contou a participação de especialistas no assunto, entre eles Karina Gramani Say, professora do Departamento de Gerontologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e Marco Túlio Cintra, médico geriatra, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) em Minas Gerais, além do relato de experiência de Maria Santos sobre sua relação com a mãe de 81 anos.

Em episódios anteriores, a série abordou a migração para o digital e o envolvimento da sociedade em projetos científicos que utilizam o computador na busca por tratamentos para a doença. Entre os entrevistados estão nomes como Christian Dunker, Bernardo Sorj, Sarita Bruschi e Benilton de Sá Carvalho. Também marcaram presença pessoas com histórias impactantes, entre elas Carolina Marangoni, estudante que estava na Itália – país considerado epicentro da doença na época – e Nicole Flores, que concilia o trabalho no IBGE/Minas Gerais, a faculdade EaD e a maternidade.

Para acompanhar o conteúdo nas redes sociais basta procurar por @castquarentena (Instagram e Twitter) e Quarentena Podcast no Facebook. Os episódios ficam disponíveis no site do Oxigênio, na Web Rádio Unicamp e nos principais agregadores de podcast.

Pandemia aumenta abandono, mas também adoção de pets

Especialistas temem que o abandono de animais de estimação cresça ainda mais no pós-pandemia, apesar do aumento de adoções para mitigar a solidão durante o isolamento social

Caroline Marques Maia e Roberta Bueno

Os animais de estimação, também chamados de pets, somam cerca de 139 milhões no Brasil, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2018. A pandemia do novo coronavírus expôs a relação das pessoas com os pets, sobretudo cães e gatos, os mais populares. Se, de um lado, o medo de contágio da Covid-19 aumentou o número de animais abandonados – mesmo não havendo evidências de que se contaminem ou que sejam transmissores do vírus – de outro, o distanciamento social tem levado à adocão de um pet para driblar a solidão.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que só no Brasil existam mais de 30 milhões de animais abandonados, sendo cerca de 10 milhões de gatos e 20 milhões de cães. Nas grandes cidades, a cada 5 habitantes há um cachorro, dos quais 10% estão abandonados. Mas na pandemia o número de animais abandonados vem crescendo e pode piorar quando a quarentena acabar. “Infelizmente, penso que há uma possibilidade maior dos animais adotados agora serem abandonados após a pandemia, pois o ser humano tende a se voltar para os seus próprios interesses  e se esquecer dos bons momentos vividos juntos com os seus animais”, enfatiza Stelio Pacca Loureiro Luna, médico veterinário e docente na Universidade Estadual Paulista (Unesp) que coordena um projeto de pesquisas sobre dor e qualidade de vida em animais.

Com a pandemia, o abandono de animais tem crescido. Créditos: Pixabay

Parte do abandono durante a pandemia pode ser consequência da desinformação. Muitas pessoas, com medo de que os animais sejam transmissores da Covid-19, acabam por abandoná-los sem antes buscar informações adequadas. De acordo com a Organização Mundial de Saúde Animal, não há justificativa para tomar medidas contra animais de companhia que possam comprometer seu bem-estar. Um artigo recente publicado na revista Journal of Travel Medicine traz um alerta sobre o abandono de animais domésticos em função do pânico. “Um problema são as informações errôneas de que cães e gatos podem transmitir o coronavírus. Certamente esse não é o caso para cães e ainda não há comprovação definitiva para gatos”, aponta Stelio.

Outra possível razão para o abandono dos pets na pandemia é que muitas famílias estão lidando com a instabilidade financeira. Conforme lembra o veterinário, antes de adotar é preciso ter noção do gasto envolvido no cuidado de um animal. “Nas devidas proporções, adotar um animal é a mesma coisa que ter um filho, ou seja, passamos a ser responsáveis por aquele animal”, conclui.

Para Eliana Ferraz Santos, bióloga que trabalha com resgate e adoção de gatos abandonados no Departamento de Proteção e Bem-Estar Animal (DPBEA) da prefeitura de Campinas (SP), a probabilidade de abandonar o animal após a adoção, mesmo na pandemia, depende muito do cuidado ao avaliar as pessoas que chegam com intenção de adotar. “É importante gastar tempo fazendo uma boa entrevista e avaliando bem os prós e os contras em cada caso; adoção precisa ser algo muito bem avaliado por quem faz a entrevista com o possível tutor”, destaca a bióloga.

A adoção

Por outro lado, felizmente, a pandemia fez com que mais pessoas quisessem adotar um animal de estimação. Isso reflete como os pets podem ajudar as pessoas a lidarem melhor com o isolamento. De acordo com Caio Maximino de Oliveira, psicólogo e professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), a solidão causada pelo isolamento social é dolorosa e pode impactar tanto a parte física quanto mental das pessoas, afetando negativamente a saúde e a qualidade de vida. “Muitas vezes, as pessoas procuram formas de resolver essa solidão; algumas o fazem com ligações frequentes para as pessoas queridas, outras adotam animais de estimação”, comenta o psicólogo.

Caio ainda pontua que os pets ajudam as pessoas a enfrentarem situações difíceis, que envolvem muito medo, como o momento que vivemos agora. “Os animais de estimação são importantes em momentos de crise e desastre. A educadora Holly Travis sugere que isso acontece porque a relação com os pets parece dar um senso de estabilidade quando outros aspectos da vida cotidiana estão além do controle individual”, explica. Nesse cenário, a adoção de animais na pandemia é uma atitude natural, mas as pessoas devem trabalhar a expectativa antes de realmente adotarem um animal. “A imagem que as pessoas transmitem dos pets nas redes sociais é muito diferente da realidade desses animais, e essa disparidade pode gerar muita frustração. Mas se essa expectativa for trabalhada, os animais de estimação podem atenuar de maneira muito significativa o sentimento de solidão”, destaca o psicólogo.

Esse alerta também faz parte do dia a dia de Eliana no DPBEA. “No departamento [Proteção e Bem-Estar Animal], sempre tivemos a preocupação de falar sobre a posse responsável, independentemente da pandemia. Adotar um animal é um ato de muita responsabilidade. Não é simplesmente chegar e adotar um bicho, levá-lo para casa, ‘usá-lo’, enjoar dele e aí querer jogar fora e abandoná-lo. A posse responsável é um ato que tem que ser muito pensado”, enfatiza.

De acordo com Eliana, outra possibilidade para o aumento das adoções na pandemia é o ganho de tempo livre pela redução das atividades das pessoas na quarentena. “Acredito que muita gente, há muito tempo, estava querendo ter um animal de companhia mas, devido a vida ser muito corrida, as pessoas acabam sempre postergando isso. E agora, com as pessoas mais reclusas, talvez tenha dado ‘esse tempo’ para adotar um pet”, afirma. A bióloga aponta que as pessoas também tem indicado ou influenciado a adoção de pets. “As pessoas estão sendo multiplicadoras para que outros também tenham esse ato de adotar um animal”, comenta.

O gatinho Lilo foi adotado durante a pandemia por Jaqueline Messina no Departamento de Proteção e Bem-estar Animal (DPBEA) da Prefeitura de Campinas (SP). Créditos: Eliana Ferraz

Garantindo o bem-estar de todos

Para garantir uma convivência harmoniosa entre as pessoas e seus pets é importante levar em conta as necessidades de todos os envolvidos nessa relação. No momento, a maior preocupação com o bem-estar dos pets é quando a quarentena acabar. Eliana salienta que é preciso avaliar se aqueles que pretendem adotar terão disposição para dar a atenção necessária aos animais depois de um dia de trabalho ou estudos. Ela não recomenda a adoção de pets por pessoas que saem para trabalhar de manhã e que à noite ainda vão para a faculdade, porque vão chegar cansadas e, certamente, não terão disposição para interagir com o animal, que passou o dia sozinho. Nessa situação, o tutor pode até se irritar com o pet.

Quando os tutores precisam se ausentar em parte do dia, é necessário fornecer um ambiente adequado para que os animais não sofram com a separação. “Uma forma simples para melhorar o bem-estar animal é prover enriquecimento ambiental. Para os gatos, pode-se fornecer tecidos em que possam afofar os membros e tanto para cães e gatos, disponibilizar brinquedinhos como bolas de tênis”, orienta Stelio. Animais também precisam de companhia e distração.

Segundo a Lei Federal de Crimes Ambientais nº 9.605 (1998) e a Constituição Federal Brasileira (1988), o abandono de animais é considerado maus-tratos e é crime. As denúncias de abandono ou outros tipos de maus-tratos devem ser feitas junto ao órgão público competente do município, no setor de vigilância sanitária, zoonoses ou meio ambiente. No estado de São Paulo, também podem ser feitas pelo site da Delegacia Eletrônica de Proteção Animal (DEPA), um serviço da Secretaria de Segurança Pública criado para enviar denúncias de crimes ocorridos no estado.

A educação básica exige cuidados que vão muito além da quarentena

Enquanto assistimos à dança das cadeiras no Ministério da Educação, o cenário de desigualdade da educação brasileira é agravado pela falta de recursos e de planejamento. “É necessário que o Estado entenda e atue para diminuir o abismo”, afirma especialista

Por Luciana Rathsam

O Brasil ocupa hoje a segunda posição no ranking de países mais atingidos pela pandemia, o Ministério da Educação contou com duas demissões nos últimos 20 dias e o novo ministro já entra em confronto com a opinião pública, com depoimentos polêmicos nas redes sociais.  Enquanto isso, autoridades discutem a reabertura da economia e a volta às aulas para setembro próximo.

A suspensão das aulas presenciais e adoção de atividades pedagógicas remotas desde março esbarraram em inúmeros problemas, como dificuldades técnicas, limitações materiais e logísticas, despreparo de professores e de alunos. O prolongamento do isolamento e os desdobramentos socioeconômicos da pandemia colocam em xeque o acesso à educação com equidade e qualidade, e podem aprofundar as desigualdades sociais. Para enfrentar os impactos na educação pública será preciso enfrentar questões de ordem política e financeira, repensar o papel da escola e planejar as ações futuras.

“A pandemia criará novas perspectivas, ampliará as desigualdades e é necessário que o Estado, ator principal da política pública, entenda e atue para diminuir o abismo descoberto. Esse abismo é econômico, de infraestrutura, de condições humanas e sociais, tanto de professores como de alunos em qualquer nível ou modalidade”, avalia Luis Enrique Aguilar, professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Coordenador do Laboratório de Políticas Públicas e Planejamento Educacional (LaPPlanE) da mesma instituição.

Ações emergenciais e (ausência de) políticas públicas

Ainda que a formulação de políticas públicas seja uma atribuição do Estado, outros órgãos têm assumido o papel de planejar ações, buscar soluções, orientar e dar suporte aos dirigentes de escolas da rede pública. “Não temos um Sistema Nacional de Ensino e isso acaba dificultando ainda mais a articulação e a realização das ações em cada rede de ensino nesse momento. Também estamos sem políticas públicas vindas do Governo Federal para o enfrentamento à Covid-19 no caso da educação. Por conta disso, os Conselhos Municipais, os Conselhos Estaduais e o Conselho Nacional (de Educação) estão cada vez mais unidos e articulados e, juntos com outros órgãos e instituições e colegiados, estão se fortalecendo”, pondera a pedagoga Márcia Bernardes, presidente da União dos Dirigentes Municipais do Estado de São Paulo (Undime-SP) e Secretária Municipal de Educação de Atibaia.

As redes públicas de ensino adotaram diversas estratégias para manter as atividades pedagógicas durante o período de isolamento, como a distribuição de materiais impressos, a veiculação de aulas em canais de televisão ou rádio, o uso de plataformas e aplicativos digitais e o estabelecimento de acordos com operadoras de internet para garantir a conectividade à rede de internet. Sem preparação prévia, escolas e professores procuraram ajustar suas práticas pedagógicas ao ambiente virtual, buscando manter os vínculos da comunidade escolar. Apesar dos esforços emergenciais, aproximadamente um quarto (24%) dos estudantes de escolas públicas não teve acesso a nenhum tipo de atividade não presencial, conforme pesquisa realizada pelo Datafolha em junho de 2020. A falta de acesso a atividades remotas é maior entre estudantes de escolas de menor nível socioeconômico.

Novos tempos, velhas desigualdades

Conforme o Censo Escolar 2019, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep), o Brasil tem 47,9 milhões de alunos matriculados na educação básica e 80,9% dessas matrículas se concentram na rede pública de ensino. Esse contingente imenso de alunos apresenta condições de vida muito diversas, o que afeta as suas oportunidades de aprendizagem, as possibilidades de enfrentamento da crise e até a vulnerabilidade à doença. Para calcular o peso das variáveis socioeconômicas que afetam a saúde, um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e do Hospital Albert Einstein desenvolveu o Índice Socioeconômico do Contexto Geográfico para Estudos em Saúde (GeoSES), um índice que incorpora sete dimensões: escolaridade, mobilidade, pobreza, riqueza, renda, segregação residencial e acesso a  recursos e serviços conforme artigo publicado em abril na revista científica Plos ONE.

“Estamos com um problema de baixa adesão dos alunos. Não só porque falta aparelho para acessar os conteúdos e fazer as atividades, mas porque eles não estão motivados. Muitos alunos estão perdendo parentes próximos, muitos passam necessidades ou estão com medo de perder os pais, de perder o referencial. O estudo fica em segundo plano diante dessas questões”, explica a pedagoga e historiadora Sandra Heráclia, que ministra aulas em escolas da Brasilândia, na zona norte de São Paulo. O distrito de Brasilândia apresenta alto percentual de favelas (30% dos domicílios) e é um dos mais afetados pela Covid-19 no município, conforme mostra o Mapa da Desigualdade, elaborado pela Rede Nossa São Paulo em junho deste ano.

Distribuição dos óbitos por Covid-19 nos distritos do Município de São Paulo até 29 de jun. 2020.   (Imagem: Divulgação/PMSP

O acompanhamento das atividades pedagógicas remotas depende ainda de outros fatores, como a etapa da aprendizagem e a autonomia dos estudantes. Na educação especial ou nos primeiros anos do ensino básico, o estudante precisa da mediação de um adulto para acessar os conteúdos e receber as instruções das atividades. “Muitos adultos não têm condições de ajudar a aprendizagem das crianças, por falta de recursos materiais, por não saberem como usar a ferramenta, ou até porque estão preocupados com a própria sobrevivência. Nesses três meses, da minha turma de 33 alunos, só dois acessaram as atividades. É muito pouco”, lamenta Sandra.

Ficar longe da escola não implica apenas em um déficit de conteúdos aprendidos. Isolados, os alunos serão privados de contato social e de uma série de vivências que contribuem para seu desenvolvimento. Muitos enfrentarão também privações materiais, violências ou luto. “Outro dia li um artigo que tratava a cabeça da criança como um hard disk onde o conhecimento defasado seria reposto. Isso é totalmente equivocado. Essa ideia de depositar o conhecimento na criança corresponde ao modelo de ‘educação bancária’ denunciado por Paulo Freire.”, destaca Miguel Thompson, diretor acadêmico da Fundação Santillana no Brasil.

Investir na educação ou aguardar o seu colapso

A reabertura das escolas não será um processo simples. As decisões devem ser tomadas de forma articulada com a área da saúde pública, considerando riscos e benefícios associados. Em que pesem os fatores econômicos, não se pode desprezar que o fator demográfico é uma variável central na análise do contágio, conforme pondera Luis Enrique: “As escolas somente podem ser abertas quando a análise científica (e não econômica), outorgue plenas condições de segurança sanitária”. Eventualmente o retorno às atividades escolares demandará a compra de equipamentos, a adequação de espaços físicos, a ampliação da carga horária ou a contratação de novos profissionais. “Posso afirmar que municípios hoje não têm condições financeiras de retornar às aulas seguindo um rígido protocolo sanitário e pedagógico”, assegura Márcia.

O cenário se torna ainda mais crítico pela ameaça de redução da verba disponível para educação. Os gastos realizados para garantir o ensino à distância durante o isolamento já somam R$2 bilhões, e  os impactos da crise econômica na arrecadação de tributos podem levar a perdas de até R$28 bilhões nas redes estaduais de ensino, conforme aponta o estudo do impacto fiscal da Covid-19 na Educação Básica em 2020, elaborado pelo movimento Todos Pela Educação e o  Instituto Unibanco. A recomposição do orçamento da educação é imprescindível, para evitar o colapso das redes públicas de ensino. A principal fonte de financiamento educacional, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), expirará em dezembro de 2020. A votação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC15/2015) que reformula o Fundeb foi adiada pela eclosão da pandemia e deve ser retomada com urgência. “Devemos evitar cair na falsa contradição entre economia x educação. A economia precisa da educação e é nesta ordem que devemos voltar”, lembra Luis Enrique.

Outro aspecto crucial a se considerar é o papel da escola na sociedade. Sandra observa que a discussão sobre a reabertura das escolas tem se pautado na necessidade de fornecer um local para os estudantes permanecerem enquanto os pais retomam seus trabalhos.  “A escola não é depósito. O cerne da questão não está sendo discutido, que é rever o papel da escola de formar cidadãos verdadeiramente conscientes do seu papel como sujeitos históricos”. Para Miguel, a escola também tem que se repensar enquanto agente social. “Vamos ter que rever aspectos emocionais, afetivos, trabalhar valores. Porque, além da pandemia, há uma crise política, uma crise econômica, uma crise ética, uma crise ambiental. E a nação precisa discutir a educação em uma sociedade do conhecimento”, enfatiza.

Plataforma agrupa reflexões de cientistas no Twitter para facilitar a divulgação do conhecimento

A ferramenta Science Pulse, desenvolvida pela parceria entre Volt Data Lab e Agência Bori, cria ponte entre cientistas e jornalistas

Por Camila Ramos e Júlia Ramos

Devido ao crescimento de movimentos de negação da ciência, principalmente durante a pandemia de Covid-19, e a busca por informações científicas relevantes, aumentou a necessidade de compreensão dos mecanismos da ciência. Neste contexto, acaba de ser lançada uma ferramenta gratuita que acompanha o debate e informações sobre ciência no Twitter, rede social chave para influenciadores e tomadores de decisão. Batizada de Science Pulse, a plataforma busca aproximar jornalistas e cientistas para acelerar a divulgação de informações de qualidade.

A ferramenta utiliza uma prática chamada de Social Listening, seu algoritmo acompanha tweets, retweets, comentários, palavras-chave e tendências para encontrar o debate na comunidade científica, de modo que o profissional de comunicação não precisa seguir milhares de perfis para acompanhar o que é dito nas redes sociais pelos pesquisadores. “O Science Pulse junta tudo isso de uma forma bastante fácil de visualizar e tem ferramentas que fazem uma pré-análise dessa discussão toda”, comenta Ana Paula Morales, fundadora e coordenadora da Agência Bori, colaboradora da iniciativa.

O Twitter foi escolhido como rede social inicial pois, apesar de não representar a população como um todo, é a rede social onde ocorre o debate entre influenciadores e tomadores de decisão, sejam eles jornalistas, cientistas ou políticos, especialmente no atual momento de pandemia em que as informações fluem de forma imediata. ”Muito das coisas que acontecem no Twitter repercutem na vida real, na política, em políticas públicas”, comenta Sérgio Spagnuolo, fundador e editor da Volt Data Lab, agência independente de jornalismo de dados que idealizou e desenvolveu a plataforma.

A função que torna o Twitter tão atrativo é sua instantaneidade. Para os jornalistas significa a possibilidade de divulgar notícias para um grande número de pessoas, a possibilidade de interagir com diversos interlocutores em tempo real e medir o impacto de notícias. Enquanto o uso de hashtags como #minhacienciaemumtweet e os Moments (um aglomerado de tweets sobre o mesmo assunto) permitem que cientistas e divulgadores compartilhem suas pesquisas, expliquem conceitos científicos e promovam debates na rede.

O Science Pulse conta com um banco de dados composto por mais de mil cientistas das áreas de exatas, biológicas e economia e por organizações de pesquisas que usam o perfil do Twitter principalmente para divulgação científica. A ferramenta monitora, analisa e agrupa as últimas discussões e assuntos levantados em contas da rede social e as torna disponível para busca de fontes e criação de pautas. Além de ser útil para os jornalistas, a ferramenta pode ser explorada por qualquer pessoa, já que o projeto filtra as últimas discussões com bases científicas.

Fonte: Reprodução da Plataforma Science Pulse com o rastreamento de debates no Twitter sobre Covid-19. Crédito: Science Pulse

No contexto da atual pandemia, a frequência de pesquisas e notícias aumentou, assim como a comunicação da ciência tanto por jornalistas quanto por cientistas. “Essa ferramenta [Science Pulse] é importante nesse aspecto, para ver o que está sendo discutido por fontes qualificadas, discussões em redes sociais baseadas em evidências científicas e que ainda não chegaram inclusive nos papers científicos”, afirma Ana Paula.

No começo do ano, trabalhos parecidos foram criados com o mesmo fim: dar mais visibilidade à produção científica nacional na mídia. A Agência Bori é um exemplo. A plataforma libera acesso antecipado (mas com política de embargos) aos artigos para jornalistas e sugere possíveis fontes especializadas para as matérias. Tudo isso para levar o conhecimento para fora da academia. Da mesma forma, o projeto Open Box da Ciência tem o objetivo de aumentar a seleção de mulheres cientistas como fontes para jornalistas.

Diante da grande demanda por entrevistas com especialistas, informações de qualidade e combate à desinformação sobre a Covid-19, iniciativas como essas aproximam ciência, mídia e sociedade trazendo benefícios que devem durar muito além da pandemia.

Sequelas em pacientes recuperados de Covid-19 podem persistir por longo período

De fadiga crônica a efeitos no sistema nervoso como dores de cabeça e problemas de memória, cerca de dois terços dos pacientes que tiveram a forma moderada da doença precisam de acompanhamento a longo prazo

Por Eliane Comoli

Desde o primeiro caso oficial de Covid-19 na China em dezembro de 2019 pesquisadores buscam desvendar o mecanismo de ação do Sars-CoV-2 (novo coronavírus) que ataca diversos órgãos além dos pulmões e provoca alterações na circulação, podendo levar à morte não apenas por insuficiência pulmonar. O Serviço Nacional de Saúde de países em estágios mais avançados da pandemia, como o Reino Unido, acredita que diversas sequelas físicas, cognitivas e psicológicas devem persistir em pacientes da Covid-19, principalmente as respiratórias se seguirem os padrões de SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) e MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio).

Publicações recentes nas revistas científicas New England Journal of Medicine e Brain documentam os sintomas neurológicos em pacientes com Covid-19. Variam de simples dificuldades cognitivas à confusão mental, além de dor de cabeça, perda de olfato e formigamento, assim como encefalites, hemorragia, trombose, AVC isquêmico, mudanças necróticas e Síndrome de Guillain-Barré, condições neurológicas nem sempre correlacionadas com a severidade de sintomas respiratórios. “O que mais impressionou os patologistas foram os sinais de isquemia e hipoxemia, mais que lesões inflamatórias. É extremamente intrigante e não sabemos porque o vírus causa tantos problemas neurológicos. A via olfatória é uma possível porta de entrada, mas não apenas ela justificaria os problemas psiquiátricos”, explica Clarissa Lin Yasuda, neurologista do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Patologistas avaliam lesões nos tecidos e órgãos e auxiliam no tratamento de casos graves. “Autópsias que realizamos nos últimos meses em pacientes diagnosticados com Covid-19 revelam que o vírus se espalha por vários órgãos como o coração e rins além dos pulmões e chega ao cérebro por meio do nervo olfatório”, disse Paulo Saldiva, patologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), durante a Reunião Anual Virtual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 13 de julho. Segundo Paulo em muitos casos as alterações cardiovasculares acontecem mesmo quando o pulmão está mais preservado.

O comportamento do Sars-CoV-2 a longo prazo é um enigma preocupante. O vírus varicella-zóster que causa a catapora, por exemplo, pode ficar inativo na medula espinhal por anos e reativar em situação de imunidade baixa provocando a herpes-zóster (cobreiro). Clarissa comenta dois casos de pacientes já recuperados da Covid-19, desde abril, que voltaram a ter sintomas em julho quando testaram novamente positivos no RT-PCR, teste usado ​​para análise da expressão gênica e quantificação do RNA viral. “Não estão com alterações neurológicas, mas com sintomas da Covid-19. Os infectologistas não sabem se eles se contaminaram novamente com o Sars-CoV-2 ou com outro vírus não detectado, ou se o Sars-CoV-2 ficou alojado no tecido. É impossível dizer pois não se sabe se as pessoas desenvolvem ou não imunidade a esse vírus”, alerta a neurologista.

Apesar do impacto do Sars-CoV-2 nos pulmões ser precedente e assustador, impactos duradouros no sistema nervoso podem ser maiores e até mais avassaladores devido à difícil regeneração do tecido nervoso podendo resultar em incapacidades gerais já que o sistema nervoso coordena as funções do organismo como um todo.

Rastros da Covid-19

No Brasil há mais de 1,6 milhão de recuperados da Covid-19. O Sistema de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde aponta que 50% dos pacientes mais graves sobrevivem. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) a chance de sequelas aumenta em pacientes graves que tiveram permanência prolongada em UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e necessidade de usar aparelhos respiradores. A recuperação pode levar de três a seis semanas ou mais.

Muitas podem ser as complicações pós-intubação decorrentes da intubação (respiração artificial) prolongada seguida de traqueostomia (procedimento que facilita a chegada de ar aos pulmões quando há obstruções), sendo os mais comuns danos laríngeos como lesões nas cordas vocais e estreitamento da laringe, e traumas nas vias aéreas. Podem causar prejuízos à vocalização, à respiração e à deglutição.

Luciana Castilho de Figueiredo, supervisora da fisioterapia da UTI do Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp, enfatiza a necessidade de reabilitação multiprofissional e interdisciplinar dos pacientes pós-Covid-19 graves, envolvendo fisioterapeutas, fonoaudiólogos, médicos, nutricionistas e outros. “Sintomas como a perda de paladar e olfato já eram sinais de algo muito sério em relação ao hábito alimentar e agrava-se mais por causa da disfagia (dificuldade de engolir) decorrentes da intubação prolongada e traqueostomia”. Alterações da deglutição não tratadas adequadamente; podem acarretar em desnutrição, desidratação, broncopneumonia e até levar à morte. “Falar e comer fazem parte de hábitos de felicidade, faz parte do que é digno para as pessoas”, salienta a fisioterapeuta.

Processos embólicos podem ocorrer no desmame da ventilação mecânica ou devido à resposta inflamatória exagerada. Pequenos coágulos se desprendem e são transportados pelo sangue até vários órgãos onde podem obstruir vasos e impossibilitar a oxigenação das células. As consequências podem ser embolia pulmonar, tromboses, ataques cardíacos e AVC isquêmico (acidente vascular cerebral). “Um AVC isquêmico pode gerar uma infinita quantidade de comprometimentos como a paralisia de movimentos e perda da fala”, enfatiza Luciana.

“Percebemos uma polineuropatia (distúrbio dos nervos) que aparece de forma muito aguda, rápida e grave englobando fraqueza muscular e perda muscular e da motricidade”, comenta a fisioterapeuta. Pacientes menos graves estão manifestando desenvolvimento gradativo de sinais da polineuropatia: sensação de formigamento e dormência, dor semelhante à queimação e incapacidade de sentir vibrações ou a posição dos membros e das articulações. Foi o que relatou Alessandra Alday, 48 anos. “Há dois meses tive os primeiros sintomas da Covid-19 e ainda sinto fraqueza, dores musculares no corpo e forte indisposição, como uma fadiga crônica. Só depois vieram as sensações de formigamento e peso nas pernas. O médico suspeita de desordem neurológica periférica semelhante à Síndrome de Guillain-Barré”, revela Alessandra que testou positivo para a doença em maio.

Luciana salienta que a intervenção fisioterapêutica tem um impacto muito grande na reabilitação do paciente Covid-19 grave. “Visa fazer o paciente reaprender a respirar sozinho de forma espontânea e segura, pois só assim ele poderá sair da UTI para a enfermaria. Auxilia na mobilização precoce ao longo da internação com finalidade de auxílio no deslocamento. Nas sequelas respiratórias persistentes e que não evoluírem para fibrose (substituição do tecido pulmonar funcional por tecido não funcional, cicatriz) acentuada com dependência de oxigênio, a fisioterapia na reabilitação cardiovascular que envolve uma adaptação fisiológica ao exercício é fundamental”.

Por quanto tempo persistirão?

O cenário ainda é obscuro e será necessário o monitoramento das complicações nas vítimas da Covid-19. O HC-Unicamp avalia implementar um programa de telemedicina e telereabilitação. “O primeiro passo seria avaliar o prejuízo respiratório demonstrado pela fadiga na prova de função pulmonar, seguido de um programa de reabilitação individualizado em que o paciente pudesse receber um kit com um dispositivo de comunicação, um exercitador respiratório e um programa de atividade que ele possa fazer em casa”, informa a fisioterapeuta.

Dados preliminares coletados pela neurologista Clarissa através de questionário on-line apontam que cerca de 67% dos pacientes recuperados da Covid-19 sem internação apresentam algum sintoma neurológico persistente: fadiga crônica (30%), problemas de memória (25%), perda de olfato (20%), dores de cabeça (15%) e perda de paladar (10%). Apenas 33% se consideram sem sintomas. “É muito grave dizer que apenas 33% se consideram saudáveis e sem sintomas, sendo que nenhum desses pacientes foi internado. Imagine a situação dos pacientes graves como será”, enfatiza Clarissa.

O Laboratório de Neuroimagem do HC-Unicamp, associado ao Cepid Brainn (Instituto Brasileiro de Neurociência e Neurotecnologia vinculado ao programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fapesp) realizará um estudo de ressonância magnética em pacientes com quadros neurológicos pós-Covid-19 e que tiveram alterações neurológicas na fase aguda, em pacientes com poucas alterações neurológicas ou apenas alterações do olfato e paladar, e nos assintomáticos do ponto de vista neurológico. “No processamento de imagem conseguimos detectar alterações cerebrais sutis. Minha hipótese é que o vírus poderia causar alterações estruturais ou mesmo da função cerebral, ou até algum grau de atrofia”, explica a neurologista. O acompanhamento desses pacientes permitirá avaliar o impacto do Sars-CoV-2 no sistema nervoso a longo prazo.

Atualmente, o Brasil perdeu mais 82 mil brasileiros para a Covid-19 e há mais de 1,6 milhão de recuperados, dos quais boas parte poderá ainda precisar de cuidados médicos. “É difícil falar sobre as marcas da Covid-19. A quantidade de mortes é um impacto que não tem tamanho. O negacionismo da ciência e descuido com as vidas me impressiona. Senti tristeza, desânimo, medo de transmitir o vírus para a minha família, medo de morrer ou ter sequelas. Estou aprendendo uma nova forma de viver curtindo minhas flores e redescobrindo pequenas coisas que me dão alegria. A perspectiva de ressignificação me dá esperança. Aqui tem vida e ela está florescendo”, refletiu esperançosa Alessandra Alday.