De pandemia, quarentena, virtualização e home office

Por Roger Modkovski

Em meio às incertezas da quarentena do coronavírus, lembrei de um episódio de meados da década de 1990.

Plantonista da madrugada da Folha de S.Paulo, o jovem jornalista aqui chegou para trabalhar numa noite qualquer e foi recebido pela chefe com uma nova incumbência:

– A partir de agora, vocês serão responsáveis por atualizar a homepage do portal durante a noite. Alguma dúvida?

– Duas. Primeiro, o que é homepage? Segundo, o que é portal?

Piada à parte, confesso que eu naquela época não vinha atentando muito para a revolução digital que batia à porta.

Na família, ninguém era muito ligado em tecnologia. Nos tempos da universidade, acompanhei o amigo Danilo Doneda – que depois se tornaria um respeitado especialista no direito relacionado à proteção de dados online – em navegações pelos BBS, mas aquilo não me interessou. Cheguei a entrevistar alguns visionários daquela internet em botão para reportagens no jornal da província em que trabalhei no quarto ano de faculdade, mas não percebi o potencial que ela teria para revolucionar o mundo e, no nosso caso particular ali, alterar a maneira como produzimos, distribuímos e consumimos notícia.

Em 1995, já em São Paulo para fazer o trainee da Editora Abril, vi palestras em que se especulava sobre o que vinha pela frente, mas, ainda acostumado com o compasso lento que caracterizara as mudanças tecnológicas até ali, achei que nada era para já… As preocupações centrais do “foquinha” ainda eram literatura, música e política, tudo no modo analógico.

Portanto, me surpreendi quando, já nos primeiros meses de trabalho em jornal impresso, chegou a internet comercial no país.

Lembro dos primeiros movimentos meio erráticos das empresas, das tentativas canhestras de criar bancos digitais e startups de vários setores (que só vingariam 15, 20 anos depois), lembro de amigos que trocaram de emprego e os perderam, e lembro do início de um processo rápido de mudanças de lá para hoje.

De repente, a minha geração e as adjacentes se transformavam em gerações de transição entre o pré e o pós-digital. Pessoas ainda com o mindset (para usar uma palavra hoje em voga) do analógico, mas ao mesmo tempo capazes de se inteirar de maravilhas hoje prosaicas ou arcaicas como o editor de textos, o pager, o ICQ, o Orkut e por aí afora.

Muito diferentes das gerações que vieram depois, dos chamados nativos digitais, para quem o conceito de “entrar online” já não existe, pois nunca se deixa de estar online.

Acredito que as mudanças neurológicas, linguísticas, comportamentais que estão ocorrendo nestas gerações ainda estão por ser entendidas e que a própria academia, pega como todos de surpresa por essa avalanche de novidades, não deu conta de descobrir para onde caminhamos. Mesmo o conceito de intimidade forjado no contexto da Revolução Francesa está virado de pernas para o ar e todos somos aprendizes de novos modos de convivência proporcionados pela comunicação instantânea.

Ao longo de 24 anos de internet comercial no país, vimos a lenta troca de guarda entre as gerações, vimos a cooptação de luditas (quem não tem aquele amigo ou parente que disse que jamais teria celular e depois virou um viciado?), vimos a virtualização tomar quase todos os recantos.

Em paralelo, vimos os efeitos que toda essa revolução provocou no trabalho e no emprego – e nossa incapacidade de lidar com as mudanças para torná-las inclusivas.

No jornalismo em particular, o ganho de produtividade com as novas tecnologias fez com que hoje um redator-repórter consiga produzir o que 4 ou 5 produziam há 30 anos.

Sim, claro, dirão, ainda não há nada que substitua o jornalismo de qualidade, a apuração, a análise, o acesso a boas fontes. E há todo um universo do jornalismo de dados que se começa a explorar.

Mas, no jornalismo, como em outras tantas áreas, a virtualização traz o fantasma da obsolescência humana e do desemprego estrutural. E me parece que não temos políticas públicas nem iniciativas privadas suficientes para resolver ou, mais realisticamente, amenizar esse problema.

E, em meio a essa longa transição entre analógico e digital, vem a pandemia.

É temerário dizer que há um “lado bom” na covid, pois ela apenas mata gente desnecessariamente e expõe nossa fragilidade humana, as desigualdades gritantes do país, a obtusidade e o egoísmo de certos setores e a incompetência bufona de quem deveria ser governo.

Mas a pandemia e a quarentena a que ela nos obrigou acabaram sendo aquele “empurrão à beira da piscina” que jogou mais gente, finalmente, por exemplo, no home office – um dos símbolos mais palpáveis (se é que a palavra ainda cabe) da virtualização.

Empresas que estavam recalcitrantes acabaram tendo que, às pressas, instituir o trabalho em casa nos setores em que isso era viável. Ouso dizer, de orelhada, que as experiências positivas superam as negativas, apesar de todas as questões paralelas – como, por exemplo, o fato de principalmente as mulheres continuarem sobrecarregadas com as demandas domésticas, sem falar no risco de serem vítimas de violência.

Pessoalmente, acho que o home office é positivo, mas ele ainda carece de ser testado em uma situação menos traumática, mais normal (se é que isso voltará a existir).

A pandemia, ao menos nas camadas privilegiadas, acelerou um processo que já existia, obrigando-nos a cada vez mais trabalhar, comprar, vender e nos relacionar à distância. Acredito que o entendimento desse ambiente ainda é muito incompleto, pelo fato de ele estar em curso e porque somos bastante influenciados por nossas situações particulares dentro da crise. Cada pandemia é uma pandemia, até mesmo para quem finge que ela não existe.

Mais uma vez, há aqui uma clivagem entre o trabalho qualificado, passível de ser feito de casa, e o trabalho braçal – e caímos de novo no problema da desigualdade.

Acredito que os entregadores, os motoboys, são alguns dos  heróis do isolamento social, que, por necessidade e falta de opção, estão se arriscando para abastecer quem pode ficar em casa. Quem consegue, se dá ao luxo de fazer trip office; quem não pode, se acotovela sem máscara nas portarias dos prédios das grandes cidades levando comida fria.

A pandemia ainda está em curso, apesar do senso comum muitas vezes acreditar no contrário.

E ela se desenrola dramaticamente em um mundo castigado por um mix de crises conjunturais e estruturais (e incluo aqui a crise climática) e por instabilidades políticas causadas pela radicalização induzida pelas redes sociais – um resultado bem distante do esperado, lá no começo dessa história, pelos visionários que sonharam com uma rede mundial de computadores libertária.

É muito difícil saber o que vem pela frente. Uma utopia igualitária com mais cooperação e cuidado mútuo? Uma distopia totalitária com 30% da população incluída (inclusive digitalmente) e movendo uma guerra discreta aos outros 70? Ou apenas vida que segue?

Pessimista, tendo a acreditar na segunda hipótese. Mas ainda estão rolando os dados…

Roger Modkovski é jornalista formado pela UFPR. Trabalhou na Folha de S.Paulo, Gazeta Mercantil, Terra, Zip.Net, Globonews.com, G1 e atualmente é editor de homepage do UOL.