Impactos da microbiota intestinal na saúde do lactente e da criança em curto e longo prazo

Por Tadeu Fernando Fernandes

A composição da microbiota intestinal do recém-nascido é influenciada por uma complexa variedade de fatores fisiológicos, culturais e ambientais incluindo tipo de parto, idade gestacional na data do parto, ambiente familiar, estilo de vida da família e higiene ambiental, dieta materna e do recém-nascido, nível do estresse materno, doenças maternas e neonatais, e uso de antibióticos durante a gravidez ou no período neonatal. Imediatamente após o nascimento, bactérias pioneiras são introduzidas no corpo do bebê e um novo ecossistema microbiano começa a ser estabelecido no intestino.

Em primeiro lugar, a nomenclatura, não tem mais lugar para o leigo termo “flora intestinal”, uma descrição pouco adequada para descrever o microbioma (coletivo de genomas de microorganismos) composto por quase 100 trilhões de bactérias, de aproximadamente mil espécies distintas que o corpo humano abriga, em sua grande maioria colonizando o intestino e criando a notável microbiota intestinal.

Para contextualizar a importância da microbiota intestinal na saúde do homem, precisamos levar em conta alguns fatos: 70 a 80% das células de nosso sistema imune estão concentradas no intestino; cerca de 100 milhões de neurônios estão conectados no intestino através de sinapses que produzem vários neurotransmissores que regulam várias funções intestinais, como absorção, secreção, excreção e sensibilidade, principalmente à dor; e 95% da serotonina total do organismo é produzida na região intestinal, fato que explica os vários estudos mostrando a influência dos circuitos intestinais no comportamento, humor e na saciedade.

Esses dados ampliam nossa visão do sistema digestório, mostram que ele não é simplesmente um canal de trânsito alimentar. Pelo contrário, é uma complexa entidade funcional do sistema imune, executa funções metabólicas e coordena uma interessante comunicação entre a microbiota intestinal e o cérebro através de caminhos imunológicos, endócrinos e nervosos, referido como eixo intestino-cérebro.

Assim, podemos dizer que o sistema nervoso intestinal é o nosso “segundo cérebro”. Diante desses dados e evidências, fica clara a importância da microbiota intestinal, desde a primeira infância. Sua colonização inicial e posterior diversidade é fundamental para prevenir doenças em curto e longo prazo, promover um crescimento e desenvolvimento saudável, abrindo janelas de oportunidades para intervenções na microbiota intestinal, visando a modulação e harmonização dos complexos circuitos envolvidos.

A colonização do intestino do feto
A influência dos padrões da primeira colonização microbiana intestinal na saúde futura é evidente. O desenvolvimento do intestino na vida intrauterina sofre influência de fatores genéticos, ambientais e nutricionais. Entretanto, o paradigma do “útero estéril”, postulado por Henry Tissier há mais de um século, ditando que o feto estéril adquire suas primeiras bactérias através da passagem pelo canal do parto, tem sido desafiado por relatos recentes documentando que as crianças adquirem um microbioma inicial antes do nascimento. Aagard e colaboradores publicaram um artigo em 2014 relatando a presença de DNA bacteriano no cordão umbilical, líquido amniótico, placenta e no mecônio (a primeira matéria fecal) do recém-nascido, sugerindo uma colonização intestinal antes do nascimento. Esse DNA bacteriano também foi detectado no mecônio de prematuros nascidos entre a 23ª e a 32ª semana de gestação.

Diferenças na microbiota das primeiras fezes têm sido associadas com partos prematuros e, nos bebês nascidos a termo, têm-se relatos da associação de diferentes microbiomas com sintomas alérgicos. Um estudo com 29 gestantes mostrou que o DNA bacteriano foi detectado em todas as amostras de placenta colhidas durante o parto cesariana. O gênero Lactobacillus predominou em 100% das amostras, seguido das bifidobactérias em 43% e os bacteroides em 34% das placentas. Recentemente, esses resultados foram corroborados em um outro estudo com 320 gestantes, utilizando uma técnica mais apurada de pesquisa de DNA bacteriano.

É interessante o modo como as bactérias atingem a placenta e as glândulas mamárias: começa com o achado de material genético das bactérias intestinais maternas em células mononucleares do sangue e no leite de mulheres grávidas. A mudança de posição bacteriana a partir do intestino materno para os gânglios linfáticos da membrana que sustenta o intestino e para as glândulas mamárias teve ocorrência demonstrada durante a gravidez e a lactação tardia. A barreira do tecido que reveste o intestino impede a entrada no sistema circulatório de bactérias da cavidade intestinal; entretanto, as células do sistema nervoso intestinal capturam ativamente bactérias da cavidade e as transportam, via sanguínea, para as glândulas mamárias e a placenta.

Podemos dizer que existe uma impressão epigenética no feto através do deslocamento bacteriano durante a gravidez, que fornece à prole um microbioma pioneiro intra-útero. Especula-se que a presença de componentes da microbiota materna no feto intra-útero, seja uma importante fonte de maturação do sistema imune fetal, levando à indução de tolerância a agentes causadores de alergias orais e respiratórias.

Muitas alterações metabólicas e no sistema imune ocorrem durante a gravidez, entre elas a “síndrome metabólica”. Está bem documentado que a microbiota intestinal alterada pode causar síndrome metabólica em não grávidas, mas um recente estudo mostra o seu papel na gravidez. Foram documentados o conjunto de bactérias fecais de 91 gestantes com IMC (índice de massa corporal) normal na pré-gravidez e a evolução dessa microbiota nos casos onde a gestação evoluiu para IMC gestacional de obesidade e status de diabetes gestacional documentada pela resistência à insulina no 3º trimestre da gravidez.

A microbiota intestinal mudou drasticamente do 1º trimestre para o 3º trimestre gestacional, com vasta expansão da diversidade microbiana. Uma análise geral mostra o aumento global de proteobactérias e actinobactérias, gêneros que caracterizam sinais de inflamação e perda de energia, quando se caminha em direção do 3º trimestre obeso e resistente à insulina. O surpreendente aconteceu quando os pesquisadores fizeram a transferência desse conjunto microbiano do terceiro trimestre para ratos saudáveis. Eles evoluíram para um quadro de maior adiposidade e insensibilidade à insulina, bem diferente quando a transferência é realizada logo no início do primeiro trimestre gestacional e os ratinhos têm crescimento e metabolismo normal. Esses relatos mostram como são significantes os impactos das interações da microbiota com seu hospedeiro, e as consequências metabólicas sobre a gestante e seu feto.

A colonização intra-uterina e pós-parto
A composição da microbiota intestinal do recém-nascido é influenciada por uma complexa variedade de fatores fisiológicos, culturais e ambientais incluindo tipo de parto, idade gestacional na data do parto, ambiente familiar, estilo de vida da família e higiene ambiental, dieta materna e do recém-nascido, nível do estresse materno, doenças maternas e neonatais, e uso de antibióticos durante a gravidez e/ou no período neonatal. Imediatamente após o nascimento, bactérias pioneiras são introduzidas no corpo do bebê e um novo ecossistema microbiano começa a ser estabelecido no intestino.

O tipo de parto afeta a composição da microbiota intestinal do recém-nascido. Entre aqueles nascidos de parto vaginal, predominam as bactérias do gênero Lactobacillus adquiridas no canal do parto e bifidobactérias, enquanto naqueles nascidos de parto cesariana a microbiota tende a ter altos níveis de Staphylococcus, Corynecaterium e Propionibacterium, com baixos níveis ou ausência de bifidobactérias.

Antibióticos utilizados profilaticamente em protocolos obstétricos para partos cesariana também alteram de modo significante a microbiota do bebê, deixando-a pobre em bifidobactérias. Antibióticos utilizados no período pós-natal também influenciam de modo significante na microbiota intestinal. Estudos mostram que um terço das espécies bacterianas é extinguido durante um curso de terapia por antibiótico, fato que promove grandes mudanças no equilíbrio da colônia, com redução dos gêneros Bifidobacterium e Lactobacillus com crescimento das proteobactérias.

Esses padrões aberrantes de microbiota durante esse período crítico de desenvolvimento imunológico e metabólico pode levar a consequências sérias em longo prazo como: asma, eczemas, alergias inespecíficas, obesidade, doenças autoimunes e diabetes tipo 1. Recentes evidências mostram que após um ciclo de antibióticos a microbiota ainda não está recuperada em quatro semanas, ficando parcialmente recuperada somente em oito semanas, e os efeitos em longo prazo ainda são desconhecidos.

Com relação ao tipo de alimentação, é bem conhecido que a microbiota intestinal de bebês alimentados exclusivamente com leite materno é diferente daqueles alimentados com aleitamento artificial. O leite materno é rico em fibras prebióticas do tipo oligossacarídeos que influenciam na composição da microbiota intestinal. O leite humano contém de 20 a 23 g/L de oligossacarídeos no colostro e de 12 a 13 g/L no leite maduro, e o perfil dessas fibras no leite materno não é igual em todas as mães, com variáveis dependentes da carga genética, ambiente e alimentação. Os oligossacarídeos do leite materno compõem um grupo de carboidratos com mais de mil diferentes estruturas moleculares. Eles promovem o crescimento específico de bactérias, particularmente as bifidobactérias.

As bactérias intestinais utilizam essas fibras prebióticas como fonte de energia. Através da fermentação da colônia, formam-se inúmeros produtos, com destaque para os ácidos graxos de cadeia curta, que conferem inúmeros benefícios para o ambiente intestinal: são fonte de energia para os colonócitos (células do cólon, no intestino grosso); inibem o crescimento de bactérias patogênicas; reduzem a atividade inflamatória intestinal, interagem com células imunológicas, auxiliando na regulação da imunidade intestinal, estimulam a autonomia de movimento intestinal, ajudando na prevenção da constipação e desconforto intestinal; aceleram o crescimento e diferenciação das células intestinais de revestimento, aumentando o efeito barreira; ajudam na absorção de nutrientes como o cálcio e ferro, por exemplo.

O colostro e o leite humano também são ricos em bactérias. Estima-se que 800 ml de leite materno podem conter de 105 a 107 unidades formadoras de colônias. As bactérias identificadas em amostras de leite materno pertencem principalmente aos gêneros Lactobacillus, Staphylococcus, Enterococcus e Bifidobacterium. A composição do leite materno é um processo muito dinâmico, e se modifica de acordo com a região onde a mãe vive, a duração do aleitamento, o momento do dia, e até mesmo durante uma única amamentação. Nunca será possível mimetizar esse processo dinâmico.

Devido a diferenças na composição entre o leite humano e a fórmula padrão para lactentes, há consenso de que a composição da microbiota intestinal também difere consideravelmente entre aqueles alimentados com leite materno e aqueles alimentados com fórmulas infantis. As bifidobactérias são as bactérias mais prevalentes na microbiota infantil e sua quantidade é significativamente maior nos lactentes alimentados com leite materno do que nos alimentados com fórmulas. Os lactobacilos são parte da microbiota subdominante, e estão sob o controle das bifidobactérias. Os lactobacilos e as bifidobactérias inibem o crescimento de bactérias exógenas e/ou nocivas, estimulam as funções imunológicas, auxiliam na digestão e/ou absorção dos ingredientes e minerais dos alimentos, e contribuem para a síntese de vitaminas.

Já em 1906, Tissier observou que a colonização fecal por bifidobactérias tinha ação protetora contra a possibilidade do desenvolvimento de diarreia. A quantidade de Escherichia coli e bacteroides é significativamente maior nos lactentes alimentados com fórmulas do que naqueles alimentados com leite materno. Os lactentes alimentados com fórmulas apresentam uma microbiota mais semelhante à do “tipo adulto”.

Depois do desmame e introdução de alimentos sólidos, a microbiota se torna mais complexa tanto nos lactentes alimentados com leite materno quanto naqueles alimentados com fórmulas. Com a introdução de alimentos complementares ao leite materno na dieta do lactente, observa-se um importante impacto sobre a microbiota intestinal, caracterizado pela diminuição da participação de bifidobactérias (que, no entanto, se mantêm predominantes) e aumento da diversidade com maior participação de bactérias dos gêneros Bacteroides e Clostridium.

Estudo feito com lactentes brasileiros em aleitamento natural exclusivo identificou seis filos na microbiota fecal: bacteroidetes, firmicutes, fusobactérias, proteobactérias, actinobactérias e verrucomicrobias. Aos três meses de vida, observou-se, predominantemente, Streptococcus e Escherichia; e aos seis meses, predomínio de Escherichia. No fim dos dois anos de vida, a abundância relativa dos constituintes da microbiota é semelhante tanto nos nascidos por parto normal como por cesárea.

Importância da primeira colonização após mil dias
A microbiota intestinal continua a se desenvolver e se estabilizar após os mil dias de vida, e, nessa etapa da vida, a alimentação é fator primordial e sua diversidade influencia diretamente no desenvolvimento da microbiota. Com aproximadamente três anos de vida, a diversidade e complexidade da microbiota intestinal está estabelecida e se assemelha mais à dos adultos.

Durante toda vida, a microbiota pode sofrer distúrbios temporários por doenças, dietas, medicamentos (principalmente os antibióticos) e pelo ambiente em que a criança está crescendo e se desenvolvendo. John Cryan, da University College Cork, na Irlanda, mostrou que uma microbiota bem estabelecida nos primeiros mil dias de vida tem grande poder de regeneração e recuperação. Cryan destaca que, através da vigilância em cada passo do crescimento, desde a fecundação, é fundamental para o pediatra poder intervir no momento adequado, para um bom desenvolvimento da microbiota da criança. Como vimos, fatores genéticos, nutricionais, ambientais e comportamentais influenciam no desenvolvimento da primeira colonização que serve de molde para toda a vida da criança. Ele mostrou que a microbiota intestinal impacta dentro e fora de seus limites. Cada vez mais emergem pesquisas na área do eixo cérebro-intestino, sistema imunológico-intestino, e intestino-intestino.

Neil Shah, da Catholic University Leuven, na Bélgica, destaca o impacto da nutrição na primeira infância e na tolerância alimentar. Ele acredita que o estabelecimento de uma microbiota saudável inicial pode ser a chave para o combate do “tsunami” atópico (hipersensibilidade) que estamos enfrentando em nosso dia a dia. Ele ressalta que recentes estudos em humanos mostram que, se utilizarmos de modo correto a janela de tolerância imunológica que se abre na primeira infância, podemos prevenir doenças atópicas em idades tardias.

Erika Isolauri, da Turku University Central Hospital, na Finlândia, relata que as interações entre a microbiota e o intestino podem trazer benefícios em curto e longo prazo, principalmente quando se fala de doenças atópicas e obesidade, patologias nitidamente ligadas a aberrações da microbiota intestinal. Ela reafirma em seus estudos tudo o que relatamos durante este artigo, destacando a importância do acompanhamento desde a fecundação e posterior desenvolvimento e início da programação metabólica fetal. Ela cita que distúrbios na composição taxonômica da microbiota intestinal durante os estágios críticos de seu desenvolvimento induzem alterações no fenótipo imune e metabólico.

De acordo com essa linha de raciocínio, intervenções no ecossistema intestinal através do uso de prebióticos e/ou probióticos podem ser a chave para profilaxia e tratamento de doenças crônicas não transmissíveis. Isolauri advoga que acima do impacto na microbiota intestinal, o uso de intervenções com probióticos específicos podem restaurar ou incrementar a permeabilidade intestinal, reforçando as funções da barreira imunológica intestinal, aliviando a resposta inflamatória local com redução de citocinas inflamatórias e proinflamatórias. Ela mostrou também outras evidências que se acumulam a favor do aumento das bifidobactérias na infância, que pode levar a uma maior proteção contra as doenças alérgicas.

Recentes evidências mostram que intervenções na microbiota intestinal podem também controlar o ganho de peso e o metabolismo energético, influindo diretamente em um de nossos maiores problemas nutricionais atualmente: a obesidade. Ferdinand Haschke, do Departamento de Pediatria da Paracelsus Medical University, em Salzburg, na Áustria, apresenta dados mostrando que a prevalência de sobrepeso e obesidade no mundo aumentou em 27,5% em adultos de 1980 para 2013 e 47,1% em crianças. Ele revisou as principais causas desse aumento e destacou que a obesidade materna pode resultar em um desfavorável fator epigenético pré e pós-natal, programando importante genes na descendência.

Está claro e evidente que crianças filhas de mãe obesas têm maior e acelerado ganho de peso durante o período fetal e após nascimento. Existe uma forte correlação entre o IMC da mãe e seus filhos até os cinco anos de idade. Haschke mostra também a forte correlação entre excessivo ganho de peso da criança no primeiro ano de vida e seu IMC aos cinco anos de idade.

É grande a importância do pediatra no acompanhamento do desenvolvimento da microbiota intestinal da criança desde a vida intrauterina. Devemos aproveitar as várias janelas de oportunidade que se apresentam para intervirmos na programação metabólica da criança que terá repercussões em curto e longo prazo. O aumento nas evidências indica que uma ótima composição e função da microbiota intestinal pode repercutir nos processos digestórios, absorção de nutrientes, defesa contra enteropatógenos, desenvolvimento de uma boa resposta imune, saúde biopsicossocial, controle metabólico e prevenção das doenças crônicas não transmissíveis.

A modulação da microbiota intestinal com intervenções utilizando prebióticos e/ou probióticos poderão prevenir e tratar uma variedade de patologias incluindo as atopias, infecções, desordens gastrintestinais, alterações no humor e doenças metabólicas como a obesidade. Apresentamos, aqui, apenas um resumo das milhares de publicações que se multiplicam nas bases de dados, mostrando que a microbiota humana abre horizontes para uma nova medicina preventiva.

Tadeu Fernando Fernandes é especialista em pediatria pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), pós-graduado em nutrologia na Boston University School, presidente do Departamento de Pediatria Ambulatorial da SBP e presidente da Regional-Campinas da Sociedade de Pediatria de São Paulo.