Informação digital, memória analógica

Por Caroline Roque e Leonardo Fernandes

Com a crescente quantidade de informações produzidas na era digital, a preservação de arquivos será um desafio. Há o risco de que boa parte dos conteúdos digitais se percam, assim como parte da história que construímos enquanto sociedade digital, afinal, incompatibilidade de formatos de gravação, arquivos corrompidos ou não encontrados e a descontinuidade de serviços de armazenamento são algumas dificuldades que centros de arquivo enfrentam.

Enquanto a maioria dos museus tenta arranjar maneiras de se aproximar do visitante, o Museu da Pessoa foi além: transformou o próprio público em acervo. Nada é mundano demais para ficar fora dos depoimentos: Quem foi seu grande amor? Como foi sua infância, na sua cidade natal? Houve uma partida de futebol que te marcou? Cada experiência individual ajuda a integrar a memória social da nossa época.

A premissa é simples, mas ambiciosa. Ele conta com uma coleção composta por 18 mil entrevistas, reunidos ao longo de 25 anos, completados em dezembro de 2016. Grande parte desses relatos pode ser acessada on-line, já que o Museu da Pessoa é um projeto pensado para a internet: o internauta é convidado a escutar sobre o outro e a participar falando sobre si.

São histórias de anônimos como José Celso da Cunha, que trabalhou nos anos 1950 como comandante do Juraci Guimarães, um enorme navio a vapor com o qual navegava as águas do rio São Francisco. Outro caso comovente é o de Elenilde Dias Fernandes que, após ser enganada por um “gato” e trabalhar em condições de escravidão contemporânea, conseguiu ter uma vida nova. Hoje é trabalhadora cooperada da fábrica de brinquedos artesanais Codigma (Cooperativa para Dignidade), em Açailândia (MA).

“Nosso objetivo como museu é justamente prestar atenção ao que todos têm a dizer, sem exceções. E se engana quem acha que a sua história de vida só interessa a você. Você impacta a vida da sua família, das pessoas com quem estuda, com quem trabalha, seus amigos. É uma forma de pensar a história por outra perspectiva, mais humana”, define Felipe Rocha, coordenador de acervo da instituição.

Existem duas formas de se tornar peça de museu: direto pelo site ou através de uma entrevista com a equipe técnica. As gravações geralmente acontecem na sede da instituição, localizada no bairro de Vila Mariana, em São Paulo. Durante as conversas, os entrevistadores usam um formulário com questões que vão formar uma linha do tempo da vida do depoente. Também se pede que o sabatinado leve fotos marcantes. As mais comuns são de casamentos ou retratos de família. Atualmente, há mais de 60 mil imagens digitalizadas. É muita informação, mas ainda não é o suficiente na avaliação da instituição.

O Museu da Pessoa foi criado em 1991 pela historiadora Karen Worcman, inspirado em uma pesquisa sobre a história oral dos imigrantes judeus que chegavam ao Rio de Janeiro.  Como surgiram antes da internet, cerca de 10 mil histórias ainda não podem ser acessadas on-line. Agora o museu se prepara para ter todo o acervo digitalizado nos próximos três anos. O arquivo conta com uma coleção de 25 mil mídias, em formatos como betacam, vhs, hi-8, dvcam, mini-dv, mini-disc, cd e dvd.

“O Museu é um projeto interativo e colaborativo, e a internet é uma parte essencial da nossa proposta. Mesmo sendo um espaço virtual, é imprescindível a manutenção do acervo físico”, ressalta Rocha.

Acervo do Museu da Pessoa

Todas as mídias originais são mantidas em uma sala climatizada, com desumidificador. Limpezas periódicas são feitas nas fitas, que correm o risco de embolorar sem o procedimento. Para manter as cerca de 8 mil fitas de mini-dv, o Museu da Pessoa também dispõe de três leitores do formato, garimpados em lojas de segunda mão.

“A manutenção periódica garante a preservação, mas também temos que contar com a sorte. Já não encontramos mais esses equipamentos em loja. Ninguém sabe se no futuro será possível repor”, atenta Rocha.

Película: o futuro do cinema

Em se tratando do arquivo cinematográfico, o analógico continua a ser a forma mais confiável para preservar um filme ao longo do tempo. Um rolo de filme pode durar mais de 100 anos se armazenado em condições ideais, como é o exemplo do curta-metragem Os óculos do vovô, do diretor brasileiro Francisco Santos, de 1913, que integra o arquivo da Cinemateca Brasileira. A instituição tem um dos maiores acervos da América Latina, são cerca de 240 mil rolos de filmes, entre longas, curtas e cinejornais. Possui também um amplo acervo documental formado por livros, revistas, roteiros originais, fotografias e cartazes.

Por vezes, manter esses arquivos é um trabalho arriscado. Em fevereiro do ano passado, ocorreu um incêndio em uma das câmaras onde são guardados os rolos de nitrato de celulose, suporte em que foi filmado os primórdios do cinema. O material entra em combustão espontânea quando há calor. Cerca de 500 obras matrizes foram perdidas, mas quase a totalidade tinha cópias em tecnologias mais modernas.

A perda de materiais audiovisuais muitas vezes é algo inevitável e demanda ações contínuas de mudança de suporte. As películas cinematográficas em nitrato e acetato de celulose passam por um lento processo de deterioração. Mas, uma vez iniciado, ele não pode ser revertido. Quando chega a esse ponto, duas técnicas podem salvar o filme: a duplicação, que consiste em uma cópia analógica ou digital, e a restauração, que seleciona as melhores partes do rolo comprometido. O laboratório da Cinemateca Brasileira desenvolve ambos. Em 2016, foram confeccionadas 18 cópias em película e digital. Mas é insuficiente para dar conta da quantidade de obras recebidas.

Acervo da Cinemateca

O depósito legal, previsto na Lei do Audiovisual, tem como objetivo garantir que toda obra audiovisual resultante da utilização de leis de incentivo ou com prêmios em dinheiro concedidos pelo governo federal seja devidamente preservada e integrada ao patrimônio audiovisual da União. A Cinemateca Brasileira, órgão do Ministério da Cultura, é a depositária de todas as cópias dos filmes produzidos no Brasil.

Daí a importância da preservação digital para ampliar o acesso às obras audiovisuais, além de servir como uma forma indireta na preservação da película, uma vez que o acesso à versão digital diminui a demanda de manipulação dos materiais originais. Mas a tecnologia gera outros desafios. Os softwares e hardwares se modificam com grande velocidade, o que faz com que os arquivos em acervo precisem de uma constante atualização com o risco de se tornarem obsoletos.

“Por mais que o digital tenha se estabelecido como a forma de produção e exibição no mercado – há mais de dez anos o DCP (Digital Cinema Package) foi adotado como o formato de exibição comercial – o futuro da memória do cinema está diretamente ligado à película. Trata-se de mais de um século de produção neste suporte, em contraponto, há menos de duas décadas de produção digital. A película continuará como a melhor forma de preservação de imagens e movimento”, define, em comunicado, o setor de preservação de filmes da Cinemateca Brasileira.

Direito à memória

De acordo com o relatório Data age 2025: the evolution of data to life-critical, produzido pelo grupo de pesquisa IDC sob patrocínio da empresa Seagate, até 2025 o mundo irá produzir 163 zettabytes de informação (ou seja, trilhão de gigabytes). Isso é 10 vezes mais que os 16.1 ZB de dados gerados em 2016. Como iremos administrar essa enxurrada de informações no futuro?

Na busca por respostas, em novembro de 2017 foi realizada, na Cidade do México, a Conferência Anual da Associação Latinoamericana de Arquivos, órgão filiado ao Conselho Internacional de Arquivos da Unesco. No evento, o vice-presidente do Google, Vinton G. Cerf, alertou para a criação de uma norma internacional que permita a preservação e acesso ao vasto patrimônio de documentos digitais, que aumenta diariamente.

“É mais importante do que nunca que saibamos o que estamos fazendo, porque temos que conseguir criar alguma norma para que o conteúdo de um arquivo seja acessível e interpretável por outro arquivo”, disse, ao ressaltar que, se o Google de alguma maneira deixar de existir, possa, ao menos, transferir seus arquivos a diversos locais, para que continuem disponíveis. Aliás, vale lembrar que nos últimos anos a empresa vem se envolvendo em casos sobre o “direito ao esquecimento”, sendo possível a cidadãos europeus, desde 2014, terem suas informações e história apagadas da plataforma de busca.

Durante a conferência, ainda na discussão sobre a preservação a longo prazo da informação digital, a professora da Universidade British Columbia do Canadá, Luciana Duranti, afirmou a importância do arquivismo para a história da humanidade. “Os documentos são fontes primordiais de herança e identidade, portanto, a confiabilidade é primordial para serem reconhecidos, assim como sua integridade por não terem sido alterados ao longo do tempo”.

Portanto, sim, é real o risco de que boa parte dos conteúdos digitais se percam, assim como parte da história que construímos enquanto sociedade digital, afinal, incompatibilidade de formatos de gravação, arquivos corrompidos ou não encontrados e a descontinuidade de serviços de armazenamento são algumas dificuldades que centros de arquivo enfrentam. Mas as tentativas para solucionar esses problemas já vêm sendo realizadas.

“As soluções de manutenção de documentos digitais passam por constituição e uso de repositórios confiáveis de armazenamento, sistemas de gerenciamento e acesso, estratégias de preservação que incluem migrações, reformatações contínuas e rigorosamente controladas de acervos”, explica Neire do Rossio Martins, diretora do Arquivo Central e coordenadora do Sistema de Arquivos (Siarq), da Unicamp.

Responsável pela gestão, preservação e acesso ao acervo histórico da Unicamp, o Siarq é o órgão que coloca em prática políticas arquivísticas que garantem a autenticidade, integridade e acessibilidade dos materiais, através dos anos e das mudanças tecnológicas. Preservando documentos dos mais diversos tipos, em formatos analógicos e digitais, o acervo do órgão é composto por fotografias, filmes e documentos textuais produzidos pela universidade nas áreas administrativas, acadêmica e da pesquisa.

Atualmente, o mesmo material pode ser armazenado em meio convencional e digital. É o caso, por exemplo, das atas do Conselho Universitário (Consu), já consideradas como documentos permanentes, que foram digitalizadas por estratégia de segurança das informações nelas contidas, e para a preservação dos originais. Outro exemplo é a Exposição Virtual Unicamp 50 anos, preparada para comemorar o cinquentenário da instituição, em 2016, com conteúdo preparado a partir de pesquisas em acervos digitais e físicos.

A área ocupada com arquivo digital é de 18 terabytes, número considerado pequeno pela instituição, levando em conta o tamanho da universidade. “A tendência é que o repositório digital cresça, uma vez que o acervo de documentos permanentes, mais conhecido como históricos, está sendo digitalizado visando a sua disponibilização para acesso remoto, para preservação de originais, ou, mesmo, para a garantia, em caso de obsolescência, da preservação das informações”, acrescenta a diretora do Siarq.

Enquanto instituições seguem estratégias e recomendações para o armazenamento e gestão de documentos, digitalizados ou não, o que almejam é preservar a história pelo maior tempo possível, ainda que seja impossível prever o futuro e as transformações que o acompanharão.

“A sociedade tem depositado suas memórias e lembranças, seja nas redes sociais ou em arquivos de dispositivos móveis. Quantos de nós já perdemos fotografias de família, de amigos, porque simplesmente perdemos a mídia, a deixamos em algum canto qualquer, sem possibilidade de acesso, ou porque ela foi duramente atacada por vírus? Os armazéns de redes também não se comprometem a manter suas lembranças para o tempo que a sociedade precisa, ou de acordo com o que poderão demandar os estudiosos, memorialistas e historiadores. Alguns preveem a total amnésia digital da sociedade. O papel da memória na cultura está mudando, isto é certo, mas para onde vai e se será bom ou ruim, difícil responder”, finaliza Martins.

Caroline Roque é jornalista (PUC-Campinas) e aluna do curso de especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.

Leonardo Fernandes é jornalista (UFPA) e aluno do curso de especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.