Mercadores da dúvida: cientistas contra a ciência

Por Camila P. Cunha

O livro Merchants of doubt: how a handful of scientists obscured the truth on issues from tobacco smoke to global warming descortina as táticas de poucos e renomados cientistas, que emprestaram fama para, com apoio de empresários, lobistas e políticos, semear dúvidas e postergar ou evitar medidas regulatórias que impactariam a qualidade de vida. Os cientistas, nesta história, são salvação e vilão; uma leitura obrigatória para pesquisadores, divulgadores de ciência e espectadores pegos no fogo cruzado.

Os historiadores da ciência Naomi Oreskes e Erik Conway, autores do livro Merchants of doubt (Mercadores da dúvida) revelam como cientistas influentes foram capazes de voltar-se contra a ciência e suas evidências para desinformar formadores de opinião e o público em geral. Os temas controversos versavam sobre fumo ativo e passivo, armamento nuclear, chuva ácida, buraco na camada de ozônio e aquecimento global.

Para cada tópico, um capítulo elaborado por Oreskes (Universidade da Califórnia e do Instituto Scripps de Oceanografia) e Conway (Instituto de Tecnologia da Califórnia) desnovela histórias reais de conspiração e manipulação das massas. O fio da meada é traçado na coincidente e reiterada aparição de poucos personagens: cientistas respeitados que emprestaram sua reputação para arquitetar um verdadeiro “mercado da dúvida”, moldado no fundamentalismo de livre mercado (total aversão a regulação governamental) e interesses políticos e econômicos obscuros. Entre eles estão os físicos Frederick Seitz Robert Jastrow, William Nierenberg e Fred Singer.

Camuflados em think tanks – organizações para análise e consultoria em pesquisas para fomento de políticas públicas (como o Instituto George C. Marshall) – e apoiados por grupos de empresários, lobistas e políticos, esses mal-intencionados cientistas ganharam espaço na mídia, disseminando dúvidas e inventando debates para temas já consolidados. Programas de financiamento de pesquisa de empresas com somas inimagináveis, até mesmo nos dias atuais, também foram usados para estimular pesquisas que corroborassem dúvidas, incertezas e o ceticismo, promovendo uma luta velada da ciência contra a ciência.

Um memorando de Frank Luntz, consultor do Partido Republicano, exemplifica bem as práticas usadas, testadas à exaustão e otimizadas inicialmente pela indústria do tabaco: não há provas (a ciência é incerta) nem consenso entre cientistas; se está ocorrendo, não é devido à ação do homem (a variação é natural); se é ação humana, então as mudanças não são necessariamente ruins ou nós poderemos nos adaptar (seja via seleção natural ou inovação tecnológica); e mudanças no status quo de empresas e do consumo podem gerar perda de empregos e abalar a economia. E, se a argumentação não funcionar, parte-se para o ataque pessoal.

De um lado, a apatia dos cientistas na fronteira do conhecimento em comunicar ciência em linguagem comum e se unir em uníssono para combater de forma sistemática o pequeno grupo de cientistas com poder e influência. De outro lado, a mídia encurralada na busca do contraditório frente à doutrina da imparcialidade (the fairness doctrine) e seus jornalistas, que esqueceram de checar os fatos: quem são as pessoas e quais instituições estão detrás das afirmações? O espaço aberto fez das táticas descritas acima bem-sucedidas por mais de meia década, prevenindo ou atrasando (até os dias atuais) a regulamentação de uma indústria pouco interessada na qualidade do meio ambiente e na saúde da população.

Os efeitos nefastos dessas práticas de manipulação ainda estão presentes. Para ilustrar, a enquete realizada pela empresa norte-americana Gallup em 2017 mostra que o público americano está mais consciente sobre o aquecimento global, pelo menos 62% das pessoas acreditam que seus efeitos já estão ocorrendo. Os números da enquete, apesar de altos, não são bons, dadas as dimensões dos fatos: o debate sobre o aquecimento global começou no final da década de 1850, atingindo status de consenso pela comunidade científica a partir de 1995 com a publicação do relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), um esforço conjunto de cientistas do mundo todo. As evidências profusas e cristalinas de que o aumento da temperatura média do planeta está ocorrendo e é resultado de maiores concentrações de dióxido de carbono e outros gases do efeito estufa, consequência das atividades humanas, parece estar longe ainda do grande público.

O livro Merchants of doubt não só se fia na trama investigativa, com uma riqueza de dados impressionante, mas é um guia do estado da arte das pesquisas que correlacionam o fumo e o câncer de pulmão, as armas nucleares e o inverno nuclear, a camada de ozônio e o efeito destrutivo dos clorofluorcarbonetos (CFC), o aquecimento global e os gases do efeito estufa. Uma excelente referência do histórico das pesquisas científicas que culminaram no que sabemos hoje, bem como dos principais nomes da ciência, que mudaram paradigmas. Sair da inércia e implementar ações que gerem mudanças reais, que beneficiem as futuras gerações, aumentando a eficiência das tecnologias atuais e estimulando inovações, passam inexoravelmente pela conscientização, o livro confirma “conhecimento é poder”.

O livro deu também origem a um documentário, dirigido por Robert Kenner (2014).

Merchants of doubt: how a handful of scientists obscured the truth on issues from tobacco smoke to global warming
Naomi Oreskes e Erik Conway

Bloomsbury Publishing
Estados Unidos, 2011

Camila P. Cunha é engenheira agrônoma (Esalq/Usp) e doutora em genética e biologia molecular (Unicamp). Atualmente é pós-doutoranda no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM).

Imagem de abertura: Camila P. Cunha