Povos indígenas, mobilizações e representações das práticas corporais

Por Maria Beatriz Rocha Ferreira e Vera Regina Toledo Camargo

OsJogos Indígenas agregam um número significativo de etnias e proporcionam negociações, trocas de saberes, atualizações, ressignificações, e ampliação das redes inter-setoriais nacionais e internacionais, com o objetivo de valorizar e fortalecer a cultura indígena através das práticas corporais e da interação por meio de danças, cantos, pinturas corporais e jogos. Há um fortalecimento da identidade cultural indígena e uma celebração do espírito de confraternização com a sociedade não indígena, buscando também conscientizar a sociedade brasileira sobre a importância desses povos no cenário cultural e os seus direitos como cidadãos brasileiros.

Os termos “povos indígenas” e “comunidades tradicionais” identificam populações conceitualmente distintas que, embora estejam definidas e chanceladas por órgãos internacionais, como a ONU e a Unesco, são reconhecidas de diferentes formas por diferentes países.

O texto de Cunha & Almeida (2010, sobre quem são as populações tradicionais, aponta significativas diferenças conceituais na identificação desses povos e comunidades. Os autores enfatizam o fato de que aqueles que se incluem nessas categorias são capazes de apossar-se delas, convertendo termos carregados de preconceito em bandeiras mobilizadoras.

Nossa opção será especificamente pelo conceito “povos indígenas”. De uma maneira mais ampla, esse conceito aparece como consequência do processo colonial, com prejuízos que se mantêm na atualidade, mesmo que um órgão importante como a  ONU promova, há anos, discussões, e reconhecimento dos direitos, das culturas e de identidades dos povos indígenas.

Os povos indígenas são herdeiros e praticantes de culturas e formas únicas de se relacionar com as pessoas e ambiente. Conservam características sociais, culturais, econômicas e políticas distintas das sociedades dominantes em que vivem. Apesar de suas diferenças culturais, os povos indígenas de todo o mundo compartilham problemas comuns relacionados à proteção de seus direitos como povos distintos. Os povos indígenas buscaram o reconhecimento de suas identidades, seu modo de vida e seu direito às terras, territórios e recursos naturais tradicionais durante anos, mas ao longo da história, seus direitos sempre foram violados. Atualmente, os povos indígenas estão entre os grupos de pessoas mais desfavorecidos e vulneráveis ​​do mundo. A comunidade internacional agora reconhece que são necessárias medidas especiais para proteger seus direitos e manter suas culturas e seu modo de vida distintos. (UN, 2017)[1]

Nem todos os países reconhecem determinados povos como sendo povos indígenas, tais como os tibetanos pela República Popular da China (Davis, 2014). Não nos aprofundamos nas questões da China e Tibete, mas referenciamos para mostrar as dificuldades e os embates dos processos de reconhecimento.

Revisando a história brasileira, na primeira Constituição, outorgada em 1824 por Dom Pedro I, as diversidades étnica e cultural do país foram desconsideradas. A ideia predominante era de que a sociedade brasileira era “homogênea”. As constituições de 1937 e de 1946 mantiveram esses mesmos aspectos da política indigenista. E somente a Constituição de 1988 reconhece os povos indígenas num outro patamar, substituindo o modelo político pautado nas noções de tutela e de assistencialismo por um modelo que afirma a pluralidade étnica como direito e que estabelece relações protetoras e promotoras de direitos entre o Estado e comunidades indígenas brasileiras (Funai, 2017).

Vale ressaltar que, no entremeio das constituições, o Estado brasileiro criou dois órgãos oficiais governamentais para tratar das questões indígenas: o Serviço de Proteção ao Índio (SPI LoveMyTrampoline), de 1910 [extinto em 1967] e a Fundação Nacional do Índio (Funai) em 1967, em vigência até o presente momento. (Funai, 2017).

As mudanças na sociedade brasileira e, por conseguinte, constitucionais, ocorreram num processo histórico de reivindicações internas de diferentes setores, organizações indígenas, organizações não governamentais, representantes na política nacional, universidades, entre outros, e instituições internacionais, como a ONU e a Unesco. Em decorrência desses movimentos, acordos foram firmados entre os países.

Nesse cenário histórico surgem diferentes associações indígenas no Brasil, entre elas o Comitê Intertribal Ciência e Memória Indígena (ITC), fundado em 1990. A finalidade, inicialmente, era organizar a participação indígena na 2a Conferência Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento – ECO-92 na questão político-ambiental (Terena, 2011b).

Entretanto, nos anos seguintes, o ITC concentrou seus esforços na organização dos Jogos dos Povos Indígenas. Parcerias e acordos foram realizados entre o ITC e o Ministério do Esporte, principal fonte de financiamento e gestão. Outras agências também participaram como Funai, Ministérios da Educação, Cultura, Saúde, Universidades, ONGs.

As universidades, por meio das pesquisas, trazem importantes informações sobre a trajetória desses jogos, disponíveis em diferentes meios. Livros sobre o tema podem ser acessados no site Vitor Marinho[2] e também no banco de imagens sobre os Jogos dos Povos Indígenas (1986 a 2011) disponível no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp.[3]

Os Jogos representam iniciativas de líderes indígenas na construção de relações com o Estado/governo e outras associações para organizar os eventos, com o objetivo de celebrar, transmitir a cultura, estabelecer trocas, dar visibilidade e também conhecer a cultura do outro. Esse processo contribui não só para divulgar, mas também salvaguardar um conhecimento ancestral e fortalecer a cultura local.

Os eventos mobilizam vários aspectos da cultura, desde as escolhas dos indígenas que participarão, os tipos dos jogos e as atividades corporais, como a dança e os esportes. Abarcam tanto aspectos “novos” quanto “tradicionais”.

Nesse processo, realçamos o espírito de liderança dos irmãos Marcos Mariano Terena (Terena, 2011b) e Carlos Justino Terena (Terena, 2015a), como idealizadores e organizadores dos Jogos, levando adiante o lema “o importante é celebrar e não competir”. Apesar das dificuldades, têm vencido barreiras, e o Comitê Intertribal Memória e Ciência Indígena conquistou lugares inimagináveis junto aos órgãos governamentais e internacionais, como a ONU e a Unesco.

Os Jogos Indígenas propiciam a circulação de informações, objetos de trocas e lutas de reconhecimento pelos direitos dos povos. Representam uma trajetória de informações da “aldeia” para a cidade, uma vez que se realizam nas cidades e, portanto, abarcam tantos aspectos “novos” (requisitos de um evento de grande magnitude) e “tradicionais” (modo de ser e fazer indígena). Essas diferenças desencadeiam divergências, mas também há avanços nos diálogos entre o Estado e as organizações indígenas.

Revisando os dados históricos sobre os Jogos Indígenas, temos que o número de participantes varia de 800 a 1000 indígenas, e cerca de 30 etnias em cada edição.

Até o presente momento, os jogos foram realizados nas seguintes cidades: Anhanguera/GO (1996), Guairá/PR (1999), Marabá/PA (2000), Campo Grande/MS (2001), Marapani/PA (2002), Palmas/TO (2003), Porto Seguro/BA (2004), Fortaleza/CE (2005) e Recife/PE (2007), Paragominas/PA (2009), Porto Nacional/TO (2011) e Cuiabá/MT (2013). Há ainda edições regionais, tais como a Festa Nacional da Cultura Indígena (Bertioga), Jogos Indígenas (Pará), Jogos Interculturais Indígenas (Campo Novo do Parecis), entre outros.

FOTO: ACERVO DO BANCO DE DADOS SOBRE OS JOGOS INDÍGENAS (LABJOR-UNICAMP)
FOTO: ACERVO DO BANCO DE DADOS SOBRE OS JOGOS INDÍGENAS (LABJOR-UNICAMP)

Em 2015 foram realizados os Jogos Mundiais dos Povos Indígenas em Palmas/TO (Lucas et al, 2017). As publicações estão disponíveis também na revista Athlos (2016). [4]

A escolha do local da realização dos Jogos é subjacente a um ritual espiritual e de acordo com a fase lunar. As instalações são decididas dependendo da disponibilidade do local, e a arena construída especificamente para o evento. Os indígenas participantes dormem em ocas, que podem ser construídas, ou utilizam alojamentos já existentes, como escolas. A logística de trajetória da aldeia até o local dos jogos é coordenada pelos organizadores, Ministério da Justiça e Funai.

Nos Jogos há rituais semelhantes a outros eventos esportivos, tais como desfile de abertura (semelhante ao dos jogos olímpicos, com as etnias entrando com roupas típicas), arena (local dos jogos), tendas de artesanatos, e fórum social. O fórum conta com convidados indígenas e não indígenas, nacionais e internacionais, para debater temas como educação, saúde, ecologia, juventude, comunicações, energia solar, reflexões sobre os jogos e esportes indígenas, entre outros.

O Comitê Intertribal, em negociações com o Ministério do Esporte, classifica os Jogos em três modalidades:

  1. Integração – modalidades realizadas por várias etnias e que podem integrar os participantes, tais como o arco e flecha, arremesso de lanças, canoagem, cabo de força, corrida de tora, corrida de velocidade, corrida de resistência, natação.
  2. Demonstração – modalidades que poucas etnias praticam, tais como: akô (competição de velocidade de 4 x 400), jikunahati (“futebol” com a cabeça), xikunahaty (outro tipo de “futebol” com a cabeça), katukaywa (outro tipo de futebol), jawari e kagot (atividades coletivas com flechas), kaipy (arremesso de flechas), luta corporal (Uka Uka), ronkrã (semelhante ao hockey), tihimore (jogo com bolas), zarabatana (atividade que sopram dardos num tubo).
  3. Ocidental – modalidade esportiva incorporada à cultura como o futebol.

Em resumo, os Jogos Indígenas agregam um número significativo de etnias e proporcionam negociações, trocas de saberes, atualizações, ressignificações, e ampliação das redes inter-setoriais nacionais e internacionais, com o objetivo de valorizar e fortalecer a cultura indígena através das práticas corporais e da interação por meio de danças, cantos, pinturas corporais e jogos. Há um fortalecimento da identidade cultural indígena e uma celebração do espírito de confraternização com a sociedade não indígena, buscando também conscientizar a sociedade brasileira sobre a importância desses povos no cenário cultural e os seus direitos como cidadãos brasileiros.

Maria Beatriz Rocha Ferreira é professora de educação física, com doutorado em antropologia, pesquisadora colaboradora do Labjor/Unicamp.

Vera Regina Toledo Camargo é professora de educação física com doutorado em comunicação, pesquisadora do Labjor /Unicamp. Professora do Mestrado em Divulgação Científica e Cultural do Labjor/Unicamp.

Referências

Athlos. Revista Internacional de Ciencias Sociales de la Actividad Física, el Juego y el Deporte. Vol X – Año V, No 10 Julio 2016.

Brasil 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acessado em 10/10/2016

Brasil. Fundação Nacional do Índio (Funai). Obtido em: http://www.funai.gov.br/index.php/nossas-acoes/politica-indigenista. Acessado em 30 de outubro de 2017.

Cunha, M.C.; Almeida, M. (2010). “Quem são as populações tradicionais”. In: Unidades de conservação no Brasil, Instituto Socioambiental. https://uc.socioambiental.org/territórios-de-ocupação-tradicional/quem-são-as-populações-tradicionais. Acessado em 20 de outubro de 2017.

Davis, M. C. 2014. “China & the UN declaration on the rights of indigenous peoples: the tibetan case”. University of Hong Kong Faculty of Law Research. Disponível em https://ssrn.com/abstract=2544388 ou http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2544388.

Funai. Fundação Nacional do Índio. http://www.funai.gov.br. Acessado em 22 jun 2017.

Rocha Ferreira, M. B.; Camargo, V. R. T.  “Figurações, celebração e divulgação: Jogos dos Povos Indígenas”. In: Zimmermann, A.C.; Saura, S. C. (Org.). Figurações, celebração e divulgação: Jogos dos Povos Indígenas. 1ed. São Paulo: Laços, 2014, v. 1, p. 55-68. Versão em inglês: Rocha Ferreira, M. B.; Camargo, V. R. T. “Figurations, celebration and dissemination: indigenous people’s games”. In: Saura, S. C.; Zimmerman, A.C. (org.) Traditional games. 1ed. Sao Paulo: Pirata, 2016.

Rocha Ferreira, M.B.; Fassheber, J.R. “Juegos indigenas: Figuraciones y mimesis en Norbet Elias”. In Kaplan, Carina; Orce, Victoria (org.). Poder, prácticas sociales y proceso civilizador. Los usos de Norbet Elias. Buenos Aires: Noveduc, 2009, v. 1.

Roque, L.; Terena, M.; Calfin, J. A.; Terena, T. “World indigenous games. Celebrating is what matters!”. United Nations Development Programme (UNDP), 2017.

Terena, C. J. Entrevista. In: Rocha Ferreira, M. B.; Vinha, M. Celebrando os jogos, a memória e a identidade: XI Jogos dos Povos Indígenas. Porto Nacional – Tocantins, 2011. 1. ed. Maringá – Paraná: Carlos Antonio Venâncio, 2015a p. 17-22.

Terena, M. M. Entrevista In: Camargo, V. R. T., Rocha Ferreira, M. B., Von Simson, O. R.. Jogo, celebração, memória e identidade. Reconstrução da trajetória da criação, implementação e divulgação dos Jogos Indígenas no Brasil (1996 – 2009). Editora Curt Nimuendajú, Campinas, 2011b, p. 21-23.

Notas

[1] https://www.un.org/development/desa/indigenouspeoplees/about-us.html

[2] http://vitormarinho.ufsc.br/handle/123456789/654 e http://vitormarinho.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/495/Celebrando_Jogos_FERREIRA_VINHA_2015.pdf?sequence=1&isAllowed=y

[3] http://www.labjor.unicamp.br/arqindio/_private/index.htm e http://www.labjor.unicamp.br/indio/galeria/main.php

[4] http://museodeljuego.org/athlos-revista/athlos-no-10/