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                    Rio 
  Grande 
Carlos Vogt 
Aqui, aquém, agora deste rio caudaloso de 
  insignificâncias,  
  deposito a espada de criança. 
  Aqui, onde se agitam emblemas fortalecidos e sujos 
  do sangue dos combates duros, 
  aqui deposito a hora, o cavalo de pau, a armadura de minhas lembranças. 
Aqui, neste rio que não lembra o Tejo 
  e que não é maior que o rio que passa pela minha aldeia,  
  neste rio feito de imagem, celulóide, projeção e luz, 
  rio de batalhas memoráveis pelos feitos heróicos de generais 
  quiméricos, 
  divisor conspícuo de províncias convictas, 
  águas virgens de realidade 
  rios de bêbados em barcos sérios. 
Aqui, como se conta, quase por nada 
  naufrágios rasos obstruíram o curso de históricas descobertas, 
  meninos proibidos de assistir ao filme impróprio 
  tomaram de assalto na noite erma o alçapão do assoalho 
  por trás da tela, na popa da aventura extrema, 
  fizeram correr, com a cena nua da atriz francesa d’A Chicotada, 
  rios infantes de esperma. 
 
  Rio Grande, não destes de fronteiras territoriais, 
  este de Minas e São Paulo, entre Igarapava e Minas Gerais, 
  tampouco o que corria caudaloso no Cine Santa Rita, 
  aquele que não dividia Sales de Oliveira de Orlândia 
  mas separava bandidos e mocinhos, 
  a linha de cima e a linha de baixo pelos trilhos da Mogiana 
  e, pelo mesmo leito seco de máquinas, passageiros, comboios e 
  litorinas, 
  heróis e mexicanos, os Estados Unidos e o México, 
  o México da Hispano-América 
  o Brasil da América Latina 
  São Paulo das treze listas 
  Sales de nunca mais. 
Rio Grande, contudo, 
  feito das erosões da infância, 
  dos cursos caudalosos das enchentes de março 
  e dos outros meses anônimos em que houve cheias. 
  Rio teimoso 
  como o poema, às vezes, corre do mar para a terra 
  e na terra se embrenha 
  claro, poluído, claro 
  contraste de vida e de morte, 
  rio corrente, rio parado, rio de beleza feia. 
Rio onde nunca vi boi morto nem outro cão emplumado, 
  rio que não corre da serra nem para ela se oferece, 
  rio em cinemascope, branco e preto, rio em cores, 
  águas prenhes do espanto da fruta que amadurece, 
  rio que vi com meu pai na roda dos pescadores 
  no bar do seu Armando. 
  Rio sem águas, rio de temas, 
  rio do não retorno, 
  roteiro de minhas noites, 
  eu menino, 
  eu meu pai, meu pai menino 
  córrego de interiores 
  curso de cinemas 
  rio de morros. 
 
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