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                    Hidronegócio 
Roberto Malvezzi (Gogó) 
Não é apenas um neologismo. Hidronegócio, 
  obviamente tem a inspiração no agronegócio. Literalmente, 
  o negócio da água. É a necessidade de criar uma expressão 
  que abrigue sob sua sombra todos os tipos de negócios que hoje surgem 
  a partir da água.  
O negócio da água é múltiplo, assim como seus usos 
  e valores. Hoje a água é negócio na água engarrafada, 
  no serviço de saneamento ambiental, no seu intenso uso na irrigação, 
  na pecuária, na indústria, assim por diante. O negócio 
  da água até pouco tempo era estimado como o mais promissor deste 
  início de milênio.  
“Existe uma oligarquia internacional da água”, denunciou 
  Ricardo Petrella na conferência “Água – bem comum”, 
  realizada no Fórum Social Mundial de 2001, em Porto Alegre. Segundo Petrella, 
  essa oligarquia está privatizando e mercantilizando a água em 
  todo o planeta. Ela se subdivide em vários ramos, conforme o uso múltiplo 
  das águas. Esse fenômeno aumentou muito nos últimos anos. 
  Essa oligarquia produz conhecimento, dá a direção do discurso, 
  tem o poder da narrativa, influencia a mídia e determina a agenda mundial 
  da água. Porém, essa oligarquia tem enfrentado percalços 
  que não estavam em suas projeções. Um dos principais obstáculos 
  é a resistência popular, em várias partes do mundo, a qualquer 
  princípio de mercantilização e privatização 
  da água.  
O Brasil e o hidronegócio 
O Brasil possui em seus rios, segundo dados mais recentes, 13,8% das águas 
  doces dos rios do planeta. Temos ainda grande abundância de águas 
  subterrâneas e somos o único país de dimensões continentais 
  em que chove sobre todo território nacional. Por todos esses dados, é 
  considerado a maior potência mundial em volume de água doce do 
  planeta. Por razões óbvias as águas brasileiras são 
  objeto de cobiça nacional e internacional. 
A nova política mundial da água doce chegou ao Brasil na década 
  passada pelas mãos do Banco Mundial. Uma série de estudos sobre 
  as águas brasileiras foi implementada para diagnosticar a situação 
  de nossas águas, resultando em quatro volumes de texto. Esses estudos 
  influenciaram a elaboração da nossa Lei Nacional de Recursos Hídricos 
  de 1997 que instituiu o Sistema Nacional de Recursos Hídricos e a Política 
  Nacional de Recursos Hídricos, agora em franca implementação. 
 
Porém, a lei que tem sua ideologia baseada no valor econômico 
  da água, além de outras contradições, tem o mérito 
  de tentar disciplinar o uso de nossas águas de forma racional, a partir 
  das bacias hidrográficas. Na sua contradição interna, propõe 
  a gestão democrática das águas, com participação 
  de toda sociedade.  
O Brasil tem a maior rede de bacias hidrográficas do planeta, agrupadas 
  em 12 regiões hidrográficas por proximidade geográfica, 
  semelhanças ambientais, sociais e econômicas . Essa questão 
  é essencial porque é pelos caminhos das águas que avança 
  o capital no campo, interferindo, ocupando e remodelando o espaço antes 
  de comunidades indígenas e tradicionais. A forma como se ocupa os solos, 
  como se devasta a vegetação, repercute diretamente no assoreamento 
  dos rios e na contaminação dos corpos d’água.  
As múltiplas faces do hidronegócio 
Energia hídrica: 
  A esmagadora energia brasileira é de origem hídrica. As centenas 
  de barragens espalhadas pelo território brasileiro são responsáveis 
  por aproximadamente 90% da energia consumida no Brasil. O processo de construção 
  dessas barragens impacta violentamente o meio ambiente e as populações 
  atingidas por barragens. Agora, com a escassez de energia, a construção 
  de barragens tornou-se ainda mais polêmica. O primeiro grande exemplo 
  do que não deve ser feito foi a barragem de Sobradinho, no médio 
  São Francisco, relocando 72 mil pessoas e inundando quatro cidades. A 
  partir de Sobradinho, os atingidos por barragens de outras regiões puderam 
  organizar-se melhor para defender seus interesses, inclusive, inviabilizando 
  a construção de algumas, principalmente na bacia do Rio Uruguai. 
  Dessa luta que surgiu o MAB (Movimento de Atingidos por 
  Barragens), ainda hoje enfrentando a construção dessas construções 
  por todo Brasil. O governo brasileiro não investe em fontes alternativas 
  de energia e sobrecarrega os rios brasileiros com a construção 
  das barragens. A energia de origem hídrica que move nosso país 
  é um mega ramo do hidronegócio para empreiteiras, corporações 
  técnicas, indústria de turbinas, geradoras e distribuidoras de 
  energia – essas últimas praticamente privatizadas. Em decorrência, 
  vê-se a enorme dificuldade de implementar um “mixer” de outras 
  fontes de energia, mais sustentáveis, mais limpas, assim como a solar, 
  eólica e biomassa. 
   
  Irrigação  
  A produção mundial de alimentos, sobretudo grãos, está 
  alicerçada não apenas na chamada revolução verde 
  – agora na biotecnologia –, mas também na irrigação. 
  Os dados mais recentes informam que a irrigação já consome 
  72% da água doce mundial. No Brasil é um pouco menor a utilização 
  da água em irrigação, cerca de 63%. Porém, o uso 
  é crescente e compete diretamente com os demais usos, principalmente 
  o consumo humano e a dessedentação dos animais. No Brasil a irrigação 
  está voltada para a produção de grãos, frutas para 
  exportação, mas também da cana irrigada para produção 
  de álcool e açúcar. A soja tomou conta dos cerrados, sobretudo 
  no oeste baiano. Agora a soja migra para o Norte, na direção do 
  Araguaia e Tocantins, também do Mato Grosso para Rondônia, sempre 
  em busca de água. Hoje, o entendimento é que, exportar grãos, 
  assim como exportar carne, significa, em última instância, exportar 
  água. Produzir grãos em território alheio é poupar 
  água no próprio território. Técnicas pesadas como 
  pivôs centrais, irrigação por sulco, consomem ainda mais 
  água que a micro aspersão. Essa é a verdadeira disputa 
  pela água que se materializa na transposição do Rio São 
  Francisco. A humanidade terá que rever seu consumo de água para 
  irrigação. Não existe água para que esse modelo 
  de produção continue ao infinito. 
Quantidade de água para produzir alguns alimentos 
  3 
  
    
         
          Para produzir 1 Kg. 
             | 
          Quantidade de água (litros) | 
         
         
          | Arroz | 
          4.500 | 
         
         
          | Trigo | 
          1.500 | 
         
         
          | Pão | 
          150 | 
         
         
          | Batata | 
          150 | 
         
         
          | Cereal | 
          1.500 | 
         
         
          | Carne bovina | 
          20.000 | 
         
         
          | Verdura | 
          1.000 | 
         
        | 
   
 
Enquanto isso, os pequenos agricultores, principalmente dentro dos assentamentos, 
  às vezes não possuem sequer a água para beber. Compreender 
  que água é um meio de produção tão indispensável 
  quanto a terra ainda é um salto de qualidade que o movimento social apenas 
  começa a dar. Luta-se pela terra, ainda não se luta pela água 
  como meio de produção. Existem iniciativas nessa direção, 
  ainda incipientes, sobretudo no semi-árido, com a captação 
  de água de chuva para a chamada irrigação de salvação. 
  Capta-se a água de chuva em reservatórios pequenos e essa água 
  é usada nos momentos em que falta a chuva para complementar o período 
  de germinação das plantas. Dessa forma poupa-se água de 
  chuva e produz-se alimentos sem investir nos aqüíferos subterrâneos 
  ou nos rios. Essa irrigação, aliada à agricultura orgânica, 
  é ecologicamente sustentável e pode abrir um novo horizonte na 
  produção dos assentamentos e da pequena agricultura. Ainda mais: 
  se a captação de água de chuva para a pequena irrigação 
  é viável no semi-árido, pode ser muito mais em outras regiões 
  mais chuvosas. Não há motivos para que os assentamentos fiquem 
  aguardando apenas as chuvas, sem cooperar com a natureza, sem armazenar essa 
  água para os períodos de estiagem. O movimento social, a partir 
  da Conferência da Terra e da Água começa dar os primeiros 
  passos para assimilar o binômio terra-água como meios de produção 
  indissociáveis e indispensáveis.  
Carcinicultura 
  Um outro ramo do hidronegócio, muito mais específico, é 
  a carcinicultura, ou criação de camarão em cativeiro. Some-se 
  à criação de camarão também a de peixes em 
  cativeiro, assim como ostras e outros frutos do mar. É a chamada “revolução 
  azul”, a aqüicultura, quando se supunha que a produção 
  de alimentos iria se transferir da terra para a água. O nível 
  de degradação ambiental gerado por esse ramo do hidronegócio 
  já mostra seu impacto em nível mundial. Além de expulsar 
  os pescadores tradicionais dos mangues e provocar danos ambientais à 
  fauna local, é uma atividade que consome mais água doce que a 
  própria irrigação. Essa atividade econômica tem tomado 
  conta de todo litoral nordestino, incrementando a exportação, 
  gerando uma elite empresarial que se beneficia dessa atividade em detrimento 
  das comunidades tradicionais e do meio ambiente em geral.  
Saneamento ambiental 
  “As duas maiores corporações de recursos hídricos 
  no mundo são as multinacionais francesas Vivendi e Suez. Eleitas no 91o 
  e 118o lugares na lista dos 500 do mundo da Fortune, estes dois gigantes da 
  água capturam aproximadamente 40% do mercado de água existente, 
  fornecendo serviços de recursos hídricos para mais de 110 milhões 
  de pessoas cada. A Suez opera em 130 países e a Vivendi em mais de 100; 
  seus faturamentos anuais ficam acima de US$ 70 bilhões (incluindo US$ 
  19 bilhões em serviços de água e esgoto).....A alemã 
  RWE segue as duas primeiras, com a aquisição da gigante Britânica 
  Thames Water e completando com a compra da American Water Works, a maior empresa 
  privada de serviços de recursos hídricos dos EUA. Com isso a sua 
  base de clientes foi expandida de 43 milhões para 56 milhões de 
  pessoas.....Outras corporações importantes de recursos hídricos 
  são Bouygues/Saur, U.S. Water, Sevem Trent, Anglian Water e Kelda Group” 
  (Relatório das Organizações Mundiais que Defendem a Água 
  como um Bem Comum). 
Esse fenômeno, segundo Petrella, seria impossível sem a convergência 
  das autoridades públicas com o setor privado. O Banco Mundial, a OMC 
  e o FMI são os principais organismos a serviço dessa oligarquia 
  internacional da água. Através da chamada “condicionalidade 
  cruzada”, impõe a privatização e mercantilização 
  da água a troco de empréstimos. É uma corda posta no pescoço 
  de países pobres ou subordinados.  
   
  A política mundial que transfere os serviços de saneamento para 
  o setor privado dá-se hoje principalmente pelas PPPs (Parcerias Público 
  Privadas), agora também lei no Brasil. Um serviço público 
  que passa a ser gerido pelo setor privado e que se torna um dos mais cobiçados 
  e lucrativos ramos do hidronegócio. 
Água engarrafada 
  Outro ramo fantástico do hidronegócio é a água engarrafada. 
  Hoje, em média, a água comprada em copo nos bares está 
  por R$ 2,00 o litro, isto é, praticamente o preço de um litro 
  de gasolina. As empresas que mais trabalham o ramo da água engarrafada 
  – mineral ou não – são a Coca-Cola, Nestlé 
  e outras que vão se apoderando desse ramo do hidronegócio. 
Um dos exemplos da luta pela água engarrafada, mineral ou não, 
  é o que a Nestlé tem feito com os mananciais da região 
  hidromineral de São Lourenço, Minas Gerais. Ao adquirir o direito 
  de lavra dessas águas, pressionou de tal forma certos mananciais que 
  acabou por eliminá-los. A partir daí a Nestlé adotou uma 
  série de procedimentos de desmineralização de um tipo de 
  água, inclusive de forma ilegal. O que se revela mais a fundo nessa atitude 
  é a relação puramente mercantil com a água. O hidronegócio, 
  como qualquer negócio, visa exclusivamente o lucro.  
A resistência 
  A resistência à privatização das águas vem 
  de todos os cantos do mundo, o que tem dificultado a estratégia das empresas, 
  da OMC, do FMI e do Banco Mundial. Um dos exemplos é a resistência 
  boliviana à privatização das águas. A lei de águas, 
  privatizando o serviço em Cochabamba, já estava aprovada. A população 
  cercou Cochabamba. A cidade permaneceu em estado de guerra. Uma pessoa foi morta 
  e várias feridas. A batalha urbana durou sete dias. Mas a lei de privatização 
  foi revogada. Podem ser citadas também as resistências de Tucumán 
  (Argentina), Vancouver (Canadá), África, Índia, etc. Nesse 
  contexto foi possível lembrar a reação da população 
  à privatização da Empresa Baiana de Águas e Abastecimento 
  (Embasa), na Bahia, com forte participação da Igreja Católica, 
  obrigando o governo estadual a recuar de sua decisão de privatizar os 
  serviços de água do estado. Ainda no Brasil, a reação 
  ao projeto de lei 4147 do governo federal, que pretendia abrir caminhos para 
  a privatização dos serviços básicos de abastecimento 
  e saneamento.  
O modelo civilizatório e a água 
  As contradições do modelo civilizatório estão nos 
  seus próprios fundamentos. O atual modelo civilizatório, embora 
  tenha avançado na imaterialidade, na virtualidade, não modificou 
  os fundamentos energéticos da revolução industrial. Ainda 
  consome água, petróleo, florestas e a biodiversidade em geral 
  de modo devastador. Polui o ar, as águas, devasta os solos de forma quase 
  que irrecuperável. Por isso, pela primeira vez, a humanidade toma consciência 
  dos limites do planeta. A escassez dos recursos colocou a elite mundial numa 
  encruzilhada: ou modifica os fundamentos predadores do modelo civilizatório, 
  ou exclui grande parte da humanidade de seus benefícios, reservando para 
  si os bens antes destinados a todos. Por isso, a luta pela terra, pela água, 
  toda luta ambiental, vincula-se ao destino final da humanidade. Pensar os destinos 
  do planeta a partir da água é pensar os destinos da humanidade. 
Roberto Malvezzi (Gogó) é membro da Coordenação 
  Nacional da Comissão Pastoral da Terra. 
Referências Bibliográficas 
  Ministério do Meio Ambiente: “Plano Nacional de Recursos Hídricos”. 
  Site do MMA 
  Lei Nacional de Recursos Hídricos, n. 9.433, 8 de janeiro de 1997. 
  Lei de Criação da Agência Nacional de Águas (ANA), 
  n. 9.984, 17 de julho 
  de 2000. 
  BOFF, Leonardo. Saber cuidar. Petrópolis, Vozes, 2001. 
  CÁRITAS/CPT. Água de chuva. 2a ed. São Paulo, Paulinas, 
  2001. 
  ________ . Bendita água. Goiânia, Terra, 2002. 
  COSTA, Ayrton. Introdução à ecologia das águas doces. 
  Recife, Imprensa 
  Universitária da UFRPE, 1991. 
  MÉRICO, Luiz Fernando Krieger. Introdução à economia 
  ecológica. 
  Blumenau, Edifurb, 2002. 
  MILARÉ, Edis. Direito do ambiente. São Paulo, Revista dos Tribunais, 
  2000. 
  MORELLI, Leonardo. Grito das águas. Joinville, Letradágua, 2003. 
  NOVAES, Washington. A década do impasse: da Rio-92 à Rio + 10. 
  São 
  Paulo, Estação Liberdade/Instituto Socioambiental, 2002. 
  PETRELLA, Riccardo. O manifesto da água. Petrópolis, Vozes, 2002. 
  REBOUÇAS, Aldo C. et al. Águas doces no Brasil: capital ecológico, 
  uso e 
  conservação. São Paulo, Escrituras, 1999. 
  Artigos do autor na internet: “Geografia da sede e hidronegócio”. 
  “Direito humano à água como alimento”. “Transposição 
  do São Francisco: mito e realidade”, etc. Obs.: Procurar pelo nome 
  do autor.  
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