Sobre anjos e fugitivos

Por Peter Schulz

Na virtualização total criada por Adolfo Bioy Casares em 1940 no romance A invenção de Morel, um fugitivo, injustiçado, que precisa esconder-se de todo o mundo, refugia-se em uma ilha, onde a invenção que dá nome à obra cria ali um mundo com personagens virtuais. A profusão de seminários e encontros virtuais, às vezes quase simultâneos,  aos quais podemos comparecer, faz lembrar o anjo Damiel no filme As asas do desejo: observador presente a tudo, não pode interagir fisicamente com os humanos e para isso escolhe deixar de ser anjo.

Virtualização é um termo utilizado há tempos – e vastamente – em computação. Uma consulta rápida pelo mundo das páginas virtuais ensina que essa virtualização mais frequente se refere a, por exemplo, emular diferentes sistemas operacionais em um mesmo computador. Você usa um computador como se fosse outro. E não nota a diferença. Por outro lado, colocando a palavra virtualização com, por exemplo também, covid-19, outro significado começa a ser usual: é o mundo com o prefixo “tele” e complemento “remoto” ao que até agora era definido de preferência presencialmente. Seja o ensino, a consulta médica, o escritório doméstico (home office) e até a hora feliz (happy hour). Mas há uma diferença crucial entre a primeira e a segunda acepções do substantivo. A primeira é uma ferramenta, que permite que um aplicativo de um celular seja usado em outro de outro tipo, sem que se perceba a diferença. Na segunda, temos a mudança do real para o muitas vezes festejado, mas outras tantas mal emulado: os aplicativos no lugar de já não sabemos o quê. Na profusão de novas expressões e novos significados, a virtualização primeira não é nova, mas já muito normal. A segunda virtualização parece recente, mas muitas das suas novidades são antigas (e o seu tantas vezes alegado normal eu deixo de lado). A reflexão é importante em relação a essa palavra homônima perfeita, como o é para a manga – não podemos correr o risco de trocar a fruta pela parte da camisa.

A virtualização segunda já foi teorizada antes da atual pandemia, que apenas a colocou em maior evidência e alvoroço com a ressalva do emergencial nem sempre lembrada. Ossi Olinaho proclamava em 2018[i] que “nós não podemos mais equiparar a realidade como a zona de relevância primordial”. Deixo a leitura do sociólogo finlandês para outra hora para sublinhar outros momentos.

Há alguns meses, muitos começamos a ter o cuidado de chamar o isolamento social como distanciamento físico e o que é batizado de virtualização parece suprir o contato nessa distância. A solução, no entanto, carrega uma armadilha. John Durham Peters, em seu livro Speaking into the air: A history of the idea of communication[ii], declara:

“A falha em comunicar é o ponto de partida para a real comunicação. O fato de não podermos nos comunicar como anjos (isto é, perfeitamente) é um fato trágico, mas também uma benção.”

O rápido sublimar da virtualização pode inverter a frase: o fato de podermos nos comunicar como anjos é uma benção, mas também uma tragédia. A profusão de seminários e encontros virtuais, às vezes quase simultâneos,  aos quais podemos comparecer, faz lembrar o anjo Damiel no filme As asas do desejo: observador presente a tudo, não pode interagir fisicamente com os humanos e para isso escolhe deixar de ser anjo, ou, como na frase de Peters, abdicar da comunicação tida como perfeita.

O dilema do anjo interpretado por Bruno Ganz no filme de Wim Wenders pode ser invertido: o humano que observa o mundo virtual perfeito, mas não consegue interagir com ele. É o que acontece na virtualização total criada por Adolfo Bioy Casares em 1940 no romance A invenção de Morel. Um fugitivo, injustiçado, que precisa esconder-se de todo o mundo, refugia-se em uma ilha, onde a invenção que dá nome à obra cria ali um mundo com personagens virtuais. O fugitivo, sem nome, apaixona-se pela inalcançável e virtual Faustine. Resta-lhe esperar a morte real para ser virtualizado. No âmago da ideia do virtual da ficção, novamente a questão que se impõe hoje: “as tecnologias são para suprir ausências”. Mas ausências de quem para quem?

No prólogo ao romance, Jorge Luís Borges, amigo do autor, confessa: “Julgo-me isento de qualquer superstição de modernidade, de qualquer ilusão de que o passado difere intimamente do presente e de que esse diferirá do amanhã”. Curioso pensamento de ontem (meados do século passado). Que significado traria hoje, que não seria essencialmente distinto?

As facilitadas trocas remotas de discursos e imagens pelas tantas plataformas, que permitem palestras de pijama, têm origens remotas. Numa época de difícil mobilidade entre novos centros de cultura ainda incipientes ou não consolidados, as cartas manuscritas em papel antecederam o Zoom e o Google Meets na construção da “República das Letras”, expressão surgida em 1417 quando o humanista italiano Francesco Barbaro escreveu longa e caprichada carta a Poggio Bracciolini, relatando a descoberta de manuscritos antigos. O uso da expressão se intensificou nos séculos XVI e XVII. Era o equivalente ao que hoje chamamos de rede social, mas tecida por cartas trocadas entre professores, filósofos, médicos, advogados e diletantes. As temáticas das cartas foram se modificando ao longo do tempo, sendo que a do século XVII centrava-se nas nascentes ciências naturais. A importância dessa república sem território vem sendo investigada curiosamente por ferramentas típicas da era das redes sociais digitais, como pelo projeto “Circulação de conhecimento e práticas eruditas na república holandesa no século XVII”[iii], que analisa um corpus de mais de 20 mil cartas da época; ou pelo “Mapeando a república das letras”[iv], exatamente como analisamos hoje a ação de robôs reverberando fake news nas redes de hoje.

A diferença essencial é que as redes materiais circulavam ideias lentamente, enquanto as redes virtuais de hoje lembram um antecessor passível, o sr. Chance, circunscrito apenas a um jardim, tendo contato do mundo apenas pela televisão. O título do romance de Jerzy Kosinski, lançado em 1970 e que virou filme na mesma década, foi traduzido cirurgicamente como “Videota”. O sr. Chance, interpretado por Peter Sellers no filme, abandonou o jardim quando o dono dele morreu. O acaso fez com que as frases feitas, decoradas de tanto assistir à televisão e repetidas pelo videota, fossem tomadas como profunda sabedoria, embalada pela simpatia do personagem.

Há mais uma diferença: hoje os robôs das redes repetem frases também sem a menor sabedoria, mas cheias de truculência. Talvez Borges não estivesse certo, mas precisamos estar atentos para que o futuro difira sim do presente que nos cerca.

Em tempo: o texto foi digitado em um notebook, entre uma e outra reunião virtual, e enviado por WhatsApp ao editor da revista.

Peter Alexander Bleinroth Schulz foi professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em física e cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010). É secretário de comunicação da Unicamp.

[i] Ossi. I. Ollinaho, 2018, Virtualization of the life-world, Hum. Stud, vol. 41, p. 193-209.

[ii] John Durham Peters, 1999. Speaking into the air: A history of the idea of communication. Chicago: University of Chicago Press

[iii] http://ckcc.huygens.knaw.nl/

[iv] http://republicofletters.stanford.edu/