Centros de informação e assistência toxicológica (Ciatox) estão espalhados pelo país e atuam nos mais diversos tipos de intoxicações, sejam picadas de animais peçonhentos, uso incorreto de drogas e medicamentos, contato com gases e plantas tóxicas e outros tipos de envenenamentos.
Lívia Mendes Pereira
Poucas pessoas sabem que há um serviço específico para assessorar tanto as equipes de saúde quanto a população em geral nos casos mais variados de intoxicações – sejam picadas de cobra ou escorpião, acidentes ocupacionais por agrotóxicos ou metais, uso indevido de medicamentos e até envenenamentos propositais, por exemplo. Esse serviço é feito pelos Centros de Controle de Intoxicação, os CCIs. No Brasil, os primeiros foram fundados na década de 1970 e, atualmente, são trinta e dois Centros espalhados pelos estados.
Segundo a OMS, cada CCI deve atender uma população de 5 a 10 milhões de habitantes. O de Campinas, por exemplo, atende em torno de 7 milhões de pessoas, funcionando como unidade de referência em toxicologia e toxinologia clínica numa região que compreende 90 municípios e funciona desde 1986 no Hospital das Clínicas da Unicamp. Fábio Bucaretchi, coordenador associado do Centro e professor do Departamento de Pediatria da universidade, lembra que, no início, o trabalho era praticamente voluntário – médicos vinculados ao centro assessoravam os casos que apareciam na urgência e emergência durante o plantão no hospital.
“Desde as primeiras reuniões surgiu o interesse em ligar o Centro à universidade, para que se propagassem aos alunos da medicina, enfermagem e farmácia as informações específicas sobre o atendimento de intoxicados, dos mais variados tipos”, conta o médico Ronan José Vieira, professor aposentado do Departamento de Clínica Médica da Unicamp e um dos criadores do Ciatox de Campinas. Para Bucaretchi, esse caráter multidisciplinar da unidade aprimora a função de assessoria, desde o diagnóstico até o tratamento, além do importante trabalho de prevenção às intoxicações.
Além do serviço telefônico, o Centro em Campinas conta também com atendimento presencial para pacientes graves. “Orientamos as equipes de saúde desde o pronto atendimento até os ambulatórios, do início ao final do tratamento. É uma prática no atendimento especializado. Boa parte dos intoxicados precisa de atendimento específico e imediato, por isso são critérios de atendimento e de internação diferenciados”, explica Ronan Vieira.
Facilidade de acesso aos dados nacionais e regionais
Desde 2014, os Ciatox do Brasil utilizam o sistema Datatox, desenvolvido pela parceria entre a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a unidade local e a Associação Brasileira de Centros de Informação e Assistência Toxicológica (Abracit), para gerar prontuários eletrônicos em tempo real e nutrir um banco de dados dos atendimentos. Os dados são atualizados diariamente e oferecem informações como: ano de atendimento, tipo de vítima e/ou solicitação e o grupo de agentes (agrotóxicos, alimentos, medicamentos, animais peçonhentos ou venenosos). Pelo sistema Datatox também é possível verificar o local, a quantidade de atendimentos por turno, a faixa etária e o sexo dos pacientes, as circunstâncias e vias de exposição, a classificação de gravidade e o desfecho dos casos, dividido por grupos de agente.

Pelos dados de Campinas, por exemplo, é possível saber que 38% das intoxicações atendidas foram por medicamentos e 16% por animais peçonhentos e venenosos. Dos casos, 53% foram leves e apenas 2% graves, com 0,6% de desfechos fatais. Bucaretchi enfatiza a importância desse sistema atualizado, tanto para a população quanto para as equipes de saúde, possibilitando uma visão geral dos casos e acesso aos prontuários em tempo real.

Atendimento amplo
O Ciatox Campinas realiza cerca de 8 mil atendimentos por ano. O serviço telefônico é realizado por alunos da graduação em medicina da Unicamp, que recebem bolsa do Programa de Bolsas de Incentivo em Toxicologia da universidade, e são coordenados por médicos, enfermeiros e farmacêuticos. O atendimento remoto (telessaúde) auxilia no diagnóstico, na triagem de gravidade e no manejo terapêutico, indicando o uso mais eficaz de antídotos. O trabalho é fundamentado em bases internacionais de informações toxicológicas (Toxbase e Poisindex), além de artigos da literatura nessa área de conhecimento, incluindo diretrizes nacionais e internacionais, principalmente dos EUA e da Inglaterra.
Além do apoio remoto, que atualmente é responsável por 70% dos serviços realizados, o Centro também oferece atendimento presencial, na Unidade de Emergência Referenciada e nas unidades de internação do Hospital das Clínicas da Unicamp.
O Ciatox-Campinas é um dos poucos no Brasil que contam com um laboratório de toxicologia. “Os exames imediatos e as coletas específicas de materiais fazem com que os atendimentos sejam mais seguros e eficientes”, explica Ronan. O laboratório possui um dos únicos aparelhos na América Latina ligado à Centros de Intoxicações que identifica elementos em pequenas quantidades e auxilia na identificação de novas substâncias químicas que surgem.
SUS – público, gratuito e universal
Aproximadamente 90% do atendimento dos Ciatox no Brasil é feito para os serviços de saúde – e não para a população em geral. Eduardo Capitani, professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Unicamp e integrante do Ciatox-Campinas destaca que essa é uma característica brasileira, também presente na América Latina e em muitos países da Europa.
“Nos Estados Unidos e Canadá quem mais acessa os centros de intoxicação é o público em geral – muito por conta da estrutura de saúde desses países, onde a prestação de serviço é majoritariamente privada. A população até tem o atendimento de urgência, ele é garantido, mas até um certo ponto. Depois que o paciente está estabilizado, ele precisa de um seguro de saúde. Então, quando as pessoas têm algum quadro suspeito de intoxicação, elas ligam imediatamente para os Centros, porque querem saber se precisam ir até um serviço de saúde, onde muito provavelmente serão cobrados”, explica Capitani.
Esse fato destaca a importância do serviço oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No Brasil, os pacientes seguem diretamente para o atendimento de urgência, onde são atendidos por médicos não necessariamente especialistas em intoxicação – que ligam, então, para os centros de intoxicações para receber informações mais eficazes e as diretrizes mais atualizadas em cada caso.
Desde 2015, por meio de uma portaria do Ministério da Saúde, os Ciatox foram reconhecidos como estabelecimentos de saúde integrantes da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no SUS. Em 2023, a Lei nº 14.715 incluiu no escopo de atuação do SUS a formulação e execução da política de informação e assistência toxicológica, abarcando a logística de antídotos e medicamentos para tratamento de intoxicações. Ela foi proposta após o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), que resultou na morte de centenas de pessoas, com intuito de fortalecer e agilizar a resposta do sistema de saúde a casos de intoxicação por substâncias químicas, medicamentos, toxinas de animais e plantas.
Há, porém, dificuldades para manter o nível de atendimento. “O reconhecimento alcançado pela portaria foi importante, mas não suficiente. Apesar de ser um estabelecimento de saúde integrante da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no SUS, o funcionamento do Centro não consegue ser independente das pressões orçamentárias da instituição”, pondera Bucaretchi, que elenca falta de liberação de recursos para pagamento dos procedimentos remotos e suporte das atividades rotineiras.
Há uma portaria em discussão que prevê recursos para custeio mensal, de acordo com a população atendida pelo Ciatox. “Nós já temos o reconhecimento dos profissionais e redes de saúde. Com o aumento do investimento financeiro iremos aumentar o atendimento consideravelmente, além de expandir o quadro de colaboradores e pesquisadores. Isso vai fortalecer o entendimento da importância dos Ciatoxs também entre a população, que utiliza os nossos serviços”, completa Bucaretchi.
Lívia Mendes Pereira é doutora em linguística (Unicamp) e especialista em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp