A bioquímica dos venenos nas obras de Agatha Christie

Kathryn Harkup, que é formada em química, detalha a ação das substâncias no organismo, sua história e dá exemplos de casos reais

Por Mayra Trinca

ODicionário Agatha Christie de venenos, publicado no Brasil em 2020 pela editora Darkside, é resultado de duas pesquisas intensas. Uma é a de Kathryn Harkup, que uniu seus conhecimentos da graduação e pós-graduação em química à leitura cuidadosa dos romances policiais da rainha do crime. A outra é da própria Christie, que baseou seus assassinatos em venenos reais e não deixou de lado detalhes de como esses tóxicos agem e podem (ou não) ser descobertos. 

Agatha Christie ganhou uma posição no Guinness Book como a autora de ficção mais vendida no mundo, com mais de 80 romances publicados. É criadora de dois grandes detetives: Hercule Poirot e Miss Maple, e especialista em utilizar venenos como armas nos crimes investigados por eles. 

Sua predileção passa pelo interesse pessoal e pela oportunidade. Como descrito por Harkup, nascida na Inglaterra, Christie foi enfermeira voluntária durante as duas guerras mundiais. Acabou se especializando como assistente de farmácia e passava muito tempo nos dispensários, preparando e distribuindo medicamentos. A partir do conhecimento adquirido, criava casos elaborados nas obras de romance policial. 

A trajetória de Harkup apresenta alguma semelhança. Depois de concluir o doutorado em química, decidiu investir na comunicação de ciência em vez da carreira acadêmica. O Dicionário foi sua primeira obra publicada. Nele, detalha o uso de 14 venenos em livros de Christie: acônito, arsênico, beladona, cianureto, cicuta, digitalina, eserina, estricnina, fósforo, nicotina, ópio, ricina, tálio e veronal. 

A cada capítulo, um resumo da história de cada substância – sua origem, como foi descoberta e aplicações iniciais. Depois, conta como as moléculas interferem no funcionamento do organismo, explicando seus efeitos e sintomas. A linguagem é simples e precisa, a autora descreve os processos de forma clara e didática, sem muitos meandros. 

Harkup escolhe como exemplo um livro para cada veneno e detalha como a substância foi usada pelos personagens. A análise descreve se os sintomas, o modo de administração e a descoberta do uso do veneno são plausíveis. Na maioria das vezes, revela que os casos inventados eram coerentes com os conhecimentos da época. Como na frase de Shakespeare usada como epígrafe na introdução do livro: “Ela investigou um número infindo de modos de morrer”.

Claro que a ideia de que a diferença entre o remédio e o veneno é a dose aparece no livro. Principalmente indicando efeitos terapêuticos reais de algumas substâncias. Mas há um caso curioso: a interação entre a atropina e a morfina, que são substâncias antagônicas. Em um capítulo, a atropina é apresentada como veneno e, em outro, como antídoto em um caso de envenenamento por morfina. 

Aparecem também casos reais de envenenamentos com cada substância – ornamentados em páginas coloridas e estilizadas características da editora – que podem ter inspirado algumas das tramas de Christie. O livro conta com ilustrações que remetem aos venenos, incluindo desenhos das plantas que os produzem. Ao final, para os mais interessados em química, aparecem as estruturas das moléculas citadas. 

O livro acaba de ganhar uma continuação, em junho de 2025, com mais 14 venenos utilizados pela autora. Por enquanto sem tradução no Brasil, V is for venom: Agatha Christie’s chemicals of death” saiu pela editora Bloomsbury Sigma.

Mayra Trinca é bióloga, mestre em divulgação científica (Unicamp) e especialista em jornalismo científico (Labjor/Unicamp).