Festa ou festejo? Quando as palavras carregam preconceito

Pesquisadores demonstram como a terminologia pode reforçar ou combater exclusões

Por Lívia Mendes Pereira

Na vida cotidiana, certas palavras parecem inofensivas, mas escondem visões de mundo que reforçam desigualdades sociais e culturais. Termos como “festa” e “festejos” ou “ciência” e “saberes” revelam como a língua pode expressar hierarquias simbólicas.

Segundo o linguista Marcos Bagno, esse mecanismo é típico do preconceito linguístico. “Toda manifestação linguística só pode ter seus sentidos apreendidos em função do contexto de uso. A interação verbal – falada ou escrita – está sempre enraizada na realidade social. E ainda assim, obviamente, não existem sentidos prontos e definidos. A linguagem é opaca, o discurso é uma construção conjunta dos interlocutores e também uma disputa”, comenta Bagno. Ou seja, não se trata apenas de palavras diferentes, mas de quem as pronuncia e do espaço que ocupam na sociedade.

A pesquisadora Maria Hermínia Vieira, em sua tese de doutorado “Preconceito linguístico e divulgação científica”, lembra que as distinções terminológicas estão ligadas a relações de poder, intimamente conectadas a aspectos de natureza social, cultural e política. Quando chamamos uma celebração comunitária de “festejo”, muitas vezes estamos atribuindo a ela um caráter menor, em comparação à ideia de “festa”, associada ao lazer urbano ou ao entretenimento de prestígio.

Na prática, o termo “festejo” passa a carregar uma marca de “popular”, de tradição vinculada a grupos menos escolarizados ou afastados do centro do poder. É um exemplo de como o vocabulário cristaliza preconceitos que atravessam a história brasileira, reforçando a oposição entre o “culto” e o “popular”. A mesma lógica aparece quando colocamos “ciência” em oposição a “saberes”. A primeira é vista como legítima, produzida em universidades e institutos de pesquisa; a segunda, muitas vezes, é reduzida a um conhecimento menor, para denominar aquilo que não é científico.

Para a linguista Sabrina Martins “a associação entre popular e inculto está ancorada em processos históricos de hierarquização social e cultural”. Se retomarmos ao dicionário, que tem tradicionalmente a função de ditar o que é certo ou errado na língua, veremos que a palavra “popular” recebe, entre outros, o seguinte significado: “Que é vulgar, de má qualidade, trivial; Plebeu”.  Sabrina explica que essa definição da palavra remete à Roma antiga, em que os cidadãos comuns, chamados de plebeus, não tinham os mesmos privilégios da elite aristocrática, os patrícios. Ou seja, sua cultura e sua maneira de expressão eram vistas como vulgar, de mau gosto, inculta.

“Dito isso, entende-se o conceito de valor. Certas variedades, de caráter urbano, escolarizado e próximo da norma-padrão, adquirem prestígio e recebem maior valor. Enquanto outras variedades, tais como as das periferias, as rurais, ou as faladas em comunidades indígenas e quilombolas são deslegitimadas. Isso é fruto de um julgamento socialmente construído que diz: tudo o que é diferente do ‘bom uso’ não é digno de receber valor, logo, é errado”, explica Sabrina.

A construção dos significados deveria ser orientada pelo contexto e não pelos dicionários. Em cada situação de comunicação, os falantes levam para a linguagem diferentes sentidos. Os significados das palavras não são estáticos, mas construídos nas práticas sociais, nas mais variadas esferas da atuação humana. Isso envolve relações de poder e ideologias.

“O subcomandante Marcos, do movimento zapatista mexicano, tratou disso muito bem quando lembrou que os da elite têm ‘arte’, ‘cultura’ e ‘religião’, enquanto os subalternos têm ‘artesanato’, ‘folclore’ e ‘crendices’. As características próprias de quem não pertence às elites são sempre qualificadas com termos que depreciam essas características, o que equivale a depreciar as pessoas que pertencem a essas camadas sociais”, completa Bagno.

O papel da divulgação científica

Pesquisadores apontam que a própria linguagem acadêmica, quando excessivamente técnica, pode afastar a sociedade e reforçar hierarquias. O mesmo vale para os saberes, que quando são desqualificados, seus portadores também são.

Por isso, iniciativas de popularização da ciência procuram estabelecer pontes entre os dois mundos. Na Rede Cuca, em Fortaleza, jovens participaram de oficinas sobre língua, identidade e ciência, e produziram programas de rádio sobre preconceito linguístico.  A pesquisadora Maria Hermínia Vieira, que realizou as oficinas, reforçou que a divulgação científica pode ajudar a dialogar com jovens da periferia, “percebemos que reconhecer o valor de seus modos de falar e de pensar fortalece sua autoestima e sua voz política”, comenta Vieira.

Os estudos de terminologia também têm se debruçado sobre as dimensões textuais e discursivas da linguagem. Essa área do conhecimento leva em consideração que as variações linguísticas podem acontecer em diferentes graus, desde o grau mínimo até o grau máximo e isso depende do contexto e do nível de especialização da comunicação.

Para demonstrar esses graus de variação, a linguista Sabrina Martins tem trabalhado com terminologias do campo da biodiversidade, com terminologias da fauna e da flora. Os nomes científicos de plantas e animais apresentam grau máximo de especialização e são utilizados entre os especialistas. Já os falantes, em interações cotidianas, criam novas denominações, gerando os nomes populares das espécies.

Como exemplificação, a pesquisadora utilizou o nome científico Pteroglossus aracari (L., 1758), que é criado a partir de uma sistematização científica com uso da língua latina. Essa mesma ave, em uma gradação de especialização para comunicação, recebe quatro nomes populares, cada um deles marcando uma característica específica da ave: araçari-de-bico-branco, araçari-minhoca, tucano-de-cinta e araçari-da-mata. Sabrina enfatizou que os nomes populares permitem a comunicação entre especialistas e leigos e, além disso, impulsionam determinadas ações, como o engajamento na preservação do meio ambiente. Para a pesquisadora, é fundamental combater preconceitos derivados das oposições popular versus sofisticado e inculto versus culto e lembrou que a sociolinguística tem se dedicado para que isso aconteça.

Lívia Mendes Pereira é doutora em linguística (Unicamp) e especialista em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp