A arte de traduzir, por Vladimir Nabokov

O pior grau de torpeza é atingido quando uma obra-prima é aplainada e moldada até assumir uma forma odiosamente embelezada de maneira a se adequar às noções e preconceitos de um determinado público.

Este texto corresponde à primeira parte de artigo originalmente publicado em 4 de agosto de 1941 na revista New Republic

Podem-se distinguir três graus de maldade no estranho mundo da transmigração verbal. O primeiro, e menos importante, engloba erros óbvios devidos à ignorância ou ao conhecimento equivocado, o que é mera fragilidade humana, sendo, portanto, uma maldade desculpável. O passo seguinte para o inferno é dado pelo tradutor que intencionalmente omite palavras ou trechos que não se importa em entender ou que poderiam parecer obscuros ou obscenos para leitores que ele vagamente imagina. Aceita o olhar vazio que seu dicionário lhe lança sem qualquer escrúpulo. Submete a inteligência à afetação, pois está tão pronto para saber menos que o autor quanto está para achar que sabe mais. O terceiro passo e pior grau de torpeza é atingido quando uma obra-prima é aplainada e moldada até assumir uma forma odiosamente embelezada de maneira a se adequar às noções e preconceitos de um determinado público. Esse é um crime que merece ser castigado no pelourinho como eram os plagiadores nos tempos de antanho.

Os que cometem erros incluídos na primeira categoria podem por sua vez ser divididos em duas classes: familiaridade insuficiente com o idioma estrangeiro envolvido pode transformar uma expressão comum em uma afirmação surpreendente que o autor real nunca pretendeu fazer. Bien être général” (bem-estar geral) se torna a afirmação máscula que “é bom ser um general”. Sabia-se que um tradutor francês de Hamlet queria agradar a esse bravo general. Da mesma forma, em uma edição alemã de Tchékhov, certo professor, assim que entra na sala de aula, vê-se descrito como absorto em “seu jornal”, o que levou um pretensioso crítico a comentar sobre a triste condição da instrução pública na Rússia pré-soviética. Porém, na realidade, Tchékhov estava simplesmente se referindo ao diário de classe que um professor abre para verificar as aulas, notas e faltas. Inversamente, termos inocentes em um romance inglês como “first night” e “public house” (pub, bar inglês) em uma tradução para o russo se tornaram “noite nupcial” e “bordel”. Esses exemplos simples são suficientes. São ridículos e gritantes, mas não contêm finalidade perniciosa e, com frequência, a frase distorcida ainda faz sentido no contexto original.

A outra classe de asneiras na primeira categoria inclui um tipo de erro mais sofisticado, um erro que é causado por um ataque de daltonismo linguístico que repentinamente cega o tradutor. Seja porque foi atraído pelo rebuscado quando o óbvio estava à vista (O que um esquimó prefere comer, sorvete ou sebo? Sorvete), ou porque está baseando sua interpretação em algum significado falso que repetidas leituras imprimiram em sua mente, ele consegue distorcer de uma maneira inesperada e às vezes bastante brilhante a palavra mais honesta ou a metáfora mais banal. Conheci um poeta muito meticuloso que ao lutar com a tradução de um texto extremamente atormentado traduziu “is sicklied o’er with the pale cast of thought” (“se transforma no doentio pálido do pensamento”) de tal maneira que transmitiu uma impressão de luar pálido. Ele fez isso supondo que “sickle” se referia à forma da lua nova. Um senso de humor nacional provocado pela semelhança entre as palavras em russo que significam “arco” e “cebola” levou um professor alemão a traduzir “a bend of the shore” (uma curva da margem) (em um conto de fadas de Pushkin) por “mar de cebola”.

O segundo e muito mais grave pecado de deixar de fora trechos complicados ainda é desculpável quando o próprio tradutor fica perplexo por eles. Mas como é desprezível a pessoa presunçosa que, embora entenda muito bem o sentido, teme que possa confundir um tolo ou debochar de um príncipe! Em vez de se aninhar alegremente nos braços do grande escritor, ele fica se preocupando com o pequeno leitor que brinca em um canto com algo perigoso ou sujo. Talvez o exemplo mais encantador de modéstia vitoriana com que eu já me deparei foi em uma das primeiras traduções para o inglês de Anna Karenina. Vronsky havia perguntado a ela se estava com algum problema. “Estou beremenna” [itálico do tradutor], respondeu Anna, fazendo com que o leitor estrangeiro ficasse se perguntando de que estranha e terrível doença oriental se tratava; tudo porque o tradutor achou que “estou grávida” poderia chocar alguma alma pura e que uma boa ideia seria deixar a palavra como estava em russo.

Porém mascarar e suavizar parecem pecadilhos em comparação com os da terceira categoria, pois aqui vem o tradutor se pavoneando e desfilando seus punhos cravejados de pedrarias –  tradutor escorregadio que enfeita o boudoir[1] de Scheherazade de acordo com seu próprio gosto e, com elegância profissional, tenta melhorar o aspecto de suas vítimas. Assim era a regra com as versões para russo de Shakespeare para dar a Ofélia flores mais ricas do que os pobres matinhos que ela encontrava. A interpretação russa de:

There with fantastic garlands did she come
Of crowflowers, nettles, daisies and long purples

(Ela surgiu com estranhas grinaldas de botões-de-ouro, urtigas, margaridas, e compridas orquídeas encarnadas)

Se fosse retrotraduzido para inglês ficaria assim:

There with most lovely garlands did she come
of violets, carnations, roses, lilies.

(Ela surgiu com graciosas grinaldas de violetas, cravos, rosas e lírios.)

O esplendor dessa exibição floral fala por si. Incidentalmente, expurgou as digressões da rainha, concedendo-lhe a aristocracia da qual tão tristemente carecia e dispensando os pastores liberais. Como qualquer pessoa poderia fazer tal coleção botânica perto de Helje ou Avon é outra questão.

Mas nenhuma dessas perguntas foi feita pelo solene leitor russo, em primeiro lugar porque não conhecia o texto original. Em segundo, porque não se importava com botânica e terceiro, porque a única coisa que o interessava em Shakespeare era o que os comentaristas alemães e radicais nativos haviam descoberto na linha de “problemas eternos”. Assim, ninguém se importou com o que aconteceu aos cãezinhos de Goneril quando o verso:

Tray, Blanche and Sweetheart, see, they bark at me

(Bandeja, Branco e Namorado – estão vendo? – ladram atrás de mim)

Foi sombriamente metamorfoseado para:

A pack of hounds is barking at my heels.

(Uma matilha de cães de caça está latindo nos meus calcanhares.)

Toda a cor local, todos os detalhes tangíveis e insubstituíveis foram engolidos por esses cães de caça.

Mas a vingança é doce — mesmo que seja vingança inconsciente. O maior conto russo já escrito é O capote de Gogol. Sua característica essencial, aquela parte irracional que forma a subcorrente trágica de uma narrativa que, de outro modo, não faria sentido, está organicamente conectada ao estilo especial no qual a história é escrita: há repetições estranhas do mesmo advérbio absurdo, e essas repetições se tornam um tipo de misterioso encantamento; há descrições que parecem suficientemente inocentes até que você descobre que o caos está à espreita na esquina e que Gogol inseriu nesta ou naquela sentença inofensiva uma palavra ou símile que faz o trecho explodir em uma selvagem exibição de fogos de artifício de pesadelo. Também há aquele desconforto tateante que, da parte do autor, é uma interpretação consciente dos gestos de nossos sonhos.

Nada disso permanece na versão inglesa afetada, empertigada e muito objetiva (consulte – e nunca mais consulte de novo – The mantle [O capote] na tradução de Claude Field). O exemplo a seguir me deixa com a impressão que estou testemunhando um assassinato e não posso fazer nada para impedir:

Gogol: …his [a petty official’s] third or fourth-story flat… displaying a few fashionable trifles, such as a lamp for instance – trifles purchased by many sacrifices…

(… seu apartamento [de um escrivão desimportante] no terceiro ou quarto andar… exibindo algumas quinquilharias que estavam na moda, como uma lâmpada, por exemplo – bugigangas que custaram muitos sacrifícios…)

Field: …fitted with some pretentious articles of furniture purchased etc…

(equipados com alguns móveis pretensiosos comprados etc. )

Adulterar obras primas estrangeiras, sejam menores ou maiores, pode envolver terceiros inocentes na farsa. Bem recentemente um famoso compositor russo me pediu para traduzir um poema russo para o inglês – que ele havia musicado quarenta anos antes. A tradução para inglês, ele indicou, precisava seguir de perto os sons do texto— e, infelizmente, o texto era a versão de K. Balmont do poema Sinos de Edgar Allan Poe. O que as inúmeras traduções de Balmont parecem pode ser prontamente entendido quando eu digo que suas próprias obras invariavelmente revelavam uma incapacidade quase patológica de redigir um único verso melodioso. Tendo à sua disposição um número suficiente de rimas banais e apanhando pelo caminho qualquer metáfora que por acaso ele encontrasse, transformou algo que Poe tinha feito esforço considerável para compor em versos que qualquer poeta russo de segunda classe poderia rabiscar de última hora. Ao reverter o poema para inglês, eu só estava preocupado em encontrar palavras em inglês que soassem como as russas. Se um dia alguém se deparar com minha versão para inglês daquela versão russa, essa pessoa pode tolamente tornar a traduzir para russo de modo que o poema “des-Poezado” continuará sendo “Balmontizado” até que, talvez, os Sinos se tornem Silêncio. Algo ainda mais grotesco ocorre com Convite à viagem, um poema deliciosamente sonhador de Baudelaire (Mon amie, ma sœur, connais-tu la douceur [Minha amiga, minha irmã, conheces a doçura]”). A versão em russo se devia à pena de Merejkovsky, que tinha ainda menos talento poético do que Balmont. Começava assim:

My sweet little bride.
Let’s go for a ride;

(Minha doce noiva, vamos dar uma volta)

Prontamente gerou uma alegre melodia que foi adotada por todos os tocadores de realejo da Rússia. Eu gosto de imaginar um futuro tradutor francês de cantigas folclóricas russas “reafrancesando-as” para:

Viens, mon p’tit,
A Nijni

E assim por diante, ad malinfinitum.

Descontando farsantes evidentes, imbecis leves e poetas impotentes, existem, grosso modo, três tipos de tradutores – e isso não tem nada a ver com minhas três categorias de maldade; ou melhor, qualquer um dos três tipos pode errar de modo semelhante.

São eles: o intelectual que está ansioso por fazer o mundo apreciar as obras de um gênio obscuro tanto quanto ele mesmo aprecia; o amador bem intencionado e o escritor profissional relaxando na companhia de um colega estrangeiro. O intelectual será, eu espero, exato e pedante: as notas de rodapé na mesma página que o texto (e não enfurnadas no fim do volume) nunca podem ser demasiadamente abundantes e detalhadas. A senhora laboriosa traduzindo na última hora o último volume da coletânea de obras de alguém será, eu temo, menos exata e menos pedante; mas a questão não é que o intelectual comete menos erros do que um amador; a questão é que, via de regra, tanto o intelectual quanto o amador são irremediavelmente desprovidos de qualquer semelhança com gênio criativo. Nem a aprendizagem nem a diligência podem substituir imaginação e estilo.

Agora vem o poeta autêntico que tem as duas últimas vantagens e que encontra lazer em traduzir um pouco de Lermontov ou de Verlaine nas pausas enquanto escreve seus próprios poemas. Ou ele não conhece o idioma original e tranquilamente confia na tradução assim chamada “literal” feita para ele por uma pessoa muito menos brilhante, mas um pouco mais culta ou então, conhecendo o idioma, carece da precisão do intelectual e da experiência profissional do tradutor. No entanto, o principal inconveniente nesse caso é o fato que, quanto maior seu talento individual, mais apto estará para afogar a obra-prima estrangeira debaixo das borbulhantes ondas de seu próprio estilo pessoal. Em vez de se vestir como o autor real, veste o autor como ele próprio.

Agora podemos deduzir os requisitos que um tradutor precisa ter para produzir uma versão ideal de uma obra-prima estrangeira. Primeiro de tudo deve ter o mesmo talento, ou pelo mesmo o mesmo tipo de talento que o autor escolhido. Nesse sentido, embora somente nesse sentido, Baudelaire e Poe ou Joukovsky e Schiller eram parceiros ideais. Em segundo lugar, deve conhecer plenamente as duas nações e os dois idiomas envolvidos e estar perfeitamente familiarizado com todos os detalhes referentes à maneira e métodos do autor. Além disso, o tradutor precisa estar familiarizado com o contexto social das palavras, as modas, história e associações históricas e da época dessas palavras. Isso leva ao terceiro ponto: embora tendo gênio e conhecimento, precisa possuir o dom da imitação e ser capaz de representar o papel do verdadeiro autor, imitando seus trejeitos de conduta e discursos, suas maneiras e sua mente, com o mais alto grau de verossimilhança.

Vladimir Nabokov (1899-1977), escritor russo de origem aristocrática, abandonou o país após a Revolução Bolchevique de 1917 e viveu na Inglaterra, Alemanha e França até se radicar nos Estados Unidos em 1940. Escrevendo fluentemente em inglês e russo, encontrou na vida acadêmica seu ganha-pão em solo americano, lecionando principalmente na Universidade Cornell e no Wellesley College — atividade que só abandonaria no final da década de 1950, quando o êxito de Lolita — um dos mais relevantes romances do século 20 — lhe garantiu independência financeira. Durante duas décadas, Nabokov realizou uma série de cursos em universidades americanas sobre alguns dos pilares da literatura de seu país: Gógol, Turguêniev, Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov e Górki. Em 1981 as aulas foram reunidas em livro nos Estados Unidos e publicadas no Brasil em 2014 pela Três Estrelas — Lições de Literatura Russa.

[1] “Boudoir” significa uma pequena sala elegante muitas vezes relacionada com o local onde as aristocratas francesas podiam receber pessoas íntimas enquanto descansavam ou terminavam de se vestir após o banho. Sugere portanto a ideia da mulher que ainda não se encontra totalmente vestida ou arrumada. Por isso, no início do século XX o termo foi apropriado pelos fotógrafos para classificar um determinado gênero de fotografia realizada em cenários que sugerem um ambiente íntimo feminino.