A curiosa história de um livro que demorou 7 décadas para ser concluído

Por Bianca Bosso

Filme O gênio e o louco põe em xeque a concepção de loucura e genialidade e celebra a paixão pelas palavras ao contar a história do Dicionário Oxford da língua inglesa.

A loucura e a genialidade, que por vezes carregam nuances tão intrincadas que as tornam difíceis de discernir, se entrelaçam em uma trama baseada em fatos reais (O gênio e o louco, 2019, 124 minutos, direção de Farhad Safinia) quando o professor e filólogo escocês James A.H. Murray, interpretado por Mel Gibson, assume a pretensiosa missão de elaborar o mais complexo e completo panorama da língua inglesa: o Oxford English Dictionary (OED).

A história, baseada no livro O professor e o louco de Simon Winchester, se passa em 1857 na Inglaterra. Murray, um homem que apesar que não ostentar formação acadêmica era dotado de um profundo conhecimento linguístico, abriu mão de sua carreira como professor e mudou-se com a família para Oxford quando foi incumbido de produzir um dicionário da língua inglesa. Sua ambição era documentar toda a língua, incluindo não só as definições das palavras, mas também suas origens, seus significados nos mais diversos contextos e também seus usos ao longo da história da literatura. Ciente de que seria uma tarefa árdua e que não haveria acadêmicos suficientes para auxiliá-lo, o filólogo propôs que a obra fosse feita a partir da colaboração de pessoas “comuns”, falantes cotidianos da língua inglesa. Escreveu então uma carta e a distribuiu por onde pôde, convidando os populares a enviar contribuições para o dicionário em produção.

Com a equipe reduzida e com o sucesso insuficiente em seu pedido de cooperação popular, a empreitada de Murray não se mostrava muito promissora até que recebeu, por correio, a colaboração excepcional de William Chester Minor, interpretado por Sean Penn, que enviou, de uma só vez, mil verbetes completos para serem incluídos na obra.

A grande contribuição de Minor poderia não ser motivo de grande alarde, visto que se tratava de um cirurgião e ex-capitão do exército dos Estados Unidos, mas a história se torna inusitada na medida em que nos aprofundamos no personagem. Sequelas psicológicas do tempo em que serviu na guerra civil norte-americana são claramente apresentadas no filme, uma vez que o personagem demonstra traços de esquizofrenia ao se mostrar paranóico com a perseguição de um inimigo que, ao que tudo indica, morreu durante o conflito. Sua obsessão o faz ser trancafiado em um sanatório: em meio a seus delírios, perseguiu e assassinou um pai de família, confundindo-o com seu rival. E é de dentro do manicômio que Minor fica sabendo do pedido de Murray, através de uma carta do professor encontrada em um livro que ganhara de presente. Ele passa a sistematicamente pesquisar e escrever, de lá de dentro, suas contribuições para o dicionário.

A partir de então, a história se desenvolve em torno da inusitada amizade que nasceu entre Minor e Murray, que apesar de suas notáveis diferenças, compartilham o amor pela língua. Isso fica evidente quando, em suas visitas ao sanatório, Murray instiga Minor em diferentes jogos com as palavras, aguçando a mente do cirurgião e lhe propiciando momentos de lucidez.

Até mesmo em um romântico pano de fundo a magnitude da língua é explorada: Eliza Merrett (interpretada por Natalie Dormer), viúva da vítima do cirurgião, aprende a escrever e passa a mandar bilhetes para Minor.

Em uma de suas facetas, o filme explora como a detenção de conhecimento é presumidamente restrita ao público acadêmico. A capacidade tanto de Murray como de Minor de produzir um livro, sendo o primeiro um outsider e o segundo um personagem deveras desviado do mundo acadêmico, são questionadas em alguns momentos por não fazerem parte do núcleo intelectual britânico. A ideia de Murray, de convidar “pessoas comuns” para auxiliar na produção do dicionário também é ridicularizada. Apesar de se passar no século XIX, esse ponto mostra como a sociedade atual ainda é um reflexo dos costumes e crenças de nossos antepassados, uma vez que, até hoje, a divulgação e produção de conhecimento além dos muros das universidades é um tema bastante debatido. Propostas como as de Murray, além de servirem como uma prova de que o conhecimento também é detido pela comunidade externa à academia, ainda hoje contribuem para diversos campos de pesquisa, como no caso dos projetos de ciência participativa (que talvez possam ser mencionados como réplicas da proposta de Murray, aplicadas nos mais diferentes contextos atualmente).

No entanto, o preconceito que imperava (e ainda impera) sobre o conhecimento popular, ainda mais ao se saber que um colaborador essencial era um “louco-assassino” trouxe imediata oposição, uma vez que a credibilidade de suas contribuições e a imagem da instituição teria sido colocada em risco. Nesse momento, o filme levanta uma discussão em torno da definição de lucidez e loucura – até que ponto Minor realmente não estava lúcido? Se era considerado louco e estava em um sanatório, como pôde ser consciente o suficiente para contribuir tão grandemente com a produção de um projeto tão complexo? Quais são os limites entre a genialidade e a loucura? Seria injusto rotular moralmente Minor, um veterano de guerra que carrega consigo as sequelas dos tempos de exército, como  louco, uma vez que sua genialidade e sua sagacidade foram responsáveis por definir cerca de 10 mil verbetes para o dicionário. Ao mesmo tempo, o papel de gênio atribuído à Murray pode ser questionado, levando em conta suas motivações e os sacrifícios a que se dispôs para alcançar seus objetivos. Assim, como ilustrado no primeiro encontro entre Minor e Murray, a história é sobre um gênio e um louco – só não se sabe ao certo quem é quem.

O Dicionário de Língua Inglesa de Oxford foi finalizado em 1928, anos após a morte de Murray e Minor e mais de sete décadas após o início de sua produção. O filme ilustra não só a complexidade da produção de uma das obras mais importantes da língua inglesa, mas também o quão profundas podem ser as relações interpessoais que permeiam o trabalho de escrita, nos fazendo refletir e chegar à conclusão de que por trás de cada história contada há dezenas de outras vividas.

Bianca Bosso cursa graduação em ciências biológicas na Unicamp e é colaboradora regular da revista ComCiência e do Jornal da Unicamp.