A arte pode melhorar estados emocionais em períodos de isolamento social

 Por Caroline Marques Maia e Rafael Revadam

 “Toda obra de arte é filha de seu tempo e, muitas vezes, mãe dos nossos sentimentos”. Wassily Kandinsky (Do espiritual na arte, 1912)

De acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), estima-se que mais de 300 milhões de pessoas sofram com depressão ao redor do mundo, sendo a principal causa de incapacidade das pessoas. Além da depressão, a ansiedade também é comum. No Brasil, a prevalência desses transtornos é alta. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 5,8% e 9,3% da população brasileira tem depressão e ansiedade, o que corresponde a mais de 11,5 milhões de pessoas depressivas e 18,5 milhões de ansiosos no país.

Com a atual pandemia, esses dados podem ficar ainda piores, com as pessoas isoladas e o medo constante de contaminação. Uma pesquisa publicada na revista Brain, behavior, and immunity investigou o impacto psicológico da covid-19 nas primeiras três semanas após o surto da pandemia na Espanha. Entre os resultados, 18,7% das pessoas entrevistadas apresentaram sintomas de depressão, 21,6% de ansiedade e 15,8% sintomas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Esse mesmo artigo ainda identificou que o bem-estar espiritual foi o fator que mais protegeu as pessoas dos sintomas desses transtornos. E algo que pode contribuir para um melhor estado espiritual durante a pandemia é a arte.

“A gente busca viver com os conflitos, suportá-los, e a arte tem esse papel porque nos ajuda a elaborar os significados. A arte produz novas formas de ver e pensar a vida, ela é uma transformação da realidade. E, nesse sentido, é fundamental para todos”, explica o psiquiatra e fundador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Fiocruz, Paulo Amarante. “A arte é, fundamentalmente, diálogo, uma forma de conversar e de falar. Por isso eu acho muito importante neste momento de pandemia vermos como as pessoas trocam informações: elas mandam músicas que gostam, acham vídeos interessantes, e fazem isso no sentido de expressar diálogo”.

Com o isolamento social causado pelo novo coronavírus, a internet se tornou a principal ferramenta de diálogo e entretenimento, e o consumo de produções artísticas ficou mais amplo. Entre diversas iniciativas, filmes e séries foram liberados na pandemia, juntamente com transmissões de orquestras, apresentações musicais ou mesmo releituras de clássicos da música especialmente para o ambiente virtual. Além disso, novas obras artísticas produzidas durante a pandemia têm, inclusive, refletido o impacto da nova doença no mundo. Até um museu dedicado ao coronavírus, com um acervo de obras virtuais sobre a pandemia, foi criado. A arte está tão envolvida com o estado mental das pessoas na pandemia, que alguns se inspiraram em reproduzir quadros de pintores famosos com detalhes notáveis e até cômicos.

Para o psiquiatra Paulo Amarante, a relação entre arte e saúde mental é mais comum do que se imagina. “Poucas pessoas sabem, mas o surrealismo foi criado por um psiquiatra, André Breton.  A ideia do surrealismo era propiciar a emergência do inconsciente sem as limitações impostas pela sociedade, deixar aflorar os sonhos, pesadelos e desejos mais profundos. E a arte foi um dos grandes pontos do movimento surrealista, na pintura, no cinema, no teatro. Ela tem a capacidade de se aprofundar na alma das pessoas, nos desejos, nos instintos, no que há de mais obscuro e dar luz, e isso é profundamente criativo”.

Obras artísticas produzidas durante a pandemia muitas vezes refletem o que as pessoas estão vivendo. Algumas estão expostas no museu sobre o coronavírus, criado recentemente. Créditos: Pixabay

Diversos músicos vêm produzindo lives com apresentações artísticas, que ajudam como distração do público em meio ao isolamento social. Mas o próprio estado mental dos artistas por trás dessas produções também está em jogo. “No começo da pandemia eu não me sentia estimulada a pegar o violão, tocar alguma música ou compor. Com o passar do tempo, ao me acostumar com o isolamento, comecei a pegar o violão e tocar uma música aqui e outra ali. Foi quando resolvi fazer a primeira live em abril”, comenta Sara Fernandes, cantora solo e vocalista da banda Saribando, que se apresenta em bares e pubs de Botucatu, interior de São Paulo.

Lives beneficentes podem funcionar como um estímulo a mais, tanto para os artistas quanto para o público, num momento em que apresentações artísticas são tão relevantes para a saúde mental. “A primeira live que eu fiz na pandemia foi beneficente, em prol dos animais resgatados. Acredito que a finalidade acabou me incentivando a continuar fazendo música, mesmo nesse período”, destaca Sara. Apresentações online solidárias podem até alcançar um público maior. “As pessoas que se solidarizam com a causa participam para dar corpo ao projeto, fazer doações e compartilhar para dar mais engajamento”, pontua a cantora.

Percepção de arte como cultura

Em tempos de pandemia, a cultura está auxiliando pessoas a lidarem com seus conflitos internos, além de ajudar no convívio em coletivo. Créditos: Pixabay

Para a psicanalista Rosana Teresa Onocko Campos, da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, a pandemia tem proporcionado reflexões sobre a percepção da cultura e seu consumo. “Há uma parte grande da sociedade brasileira que não tem o hábito de consumir cultura porque não consegue. Porque é caro, porque a cultura nem sempre está ao acesso, não está disponível em todos os bairros. A grande questão é como vamos aproveitar esse momento. E também temos que entender que tem gente que não está consumindo cultura neste momento, não porque não gosta ou não sabe, mas simplesmente porque está em uma situação muito difícil para sobreviver”.

A pesquisadora aponta que é importante questionar não só o consumo cultural, mas o que é oferecido à sociedade. “Hoje se oferta como cultura, entre aspas, muitas coisas que não têm a função de cultura. Porque a cultura permite algo que chamamos de simbolizar: apreciar o que seja belo, que seja bonito, mas que ao mesmo tempo entra em contato com afetações sentimentais e emocionais das pessoas. Então, esse momento é uma chamada para também analisar que tipo de ensino cultural estamos oferecendo nas escolas, que tipo de estímulo estamos dando para as crianças pequenas aprenderem. Acho que existe um grande déficit sobre estimular a cultura no Brasil”, pontua.

Sanidade e sociedade

Para o psicólogo e doutor em saúde coletiva da Unicamp, Bruno Emerich, a arte tem feito um papel de conexão na pandemia. “Estamos vivendo um momento de incertezas e inseguranças, em que muitas pessoas estão entrando em contato com dimensões da sua própria vida, da sua história e do seu próprio sofrimento, sem necessariamente ainda ter construído estratégias para lidar com isso. É algo bastante complexo, tem diferentes perspectivas mas, de certa forma, a cultura ou a conexão com algo artístico que faça sentido para a pessoa pode ajudar”. Além do impacto pessoal, a arte também é importante para o convívio em coletivo, detalha o especialista: “Podemos pensar na dimensão cultural como algo que aproxima, apesar da distância, e que conecta, apesar das diferenças. É uma forma de ampliar a compreensão e o sentimento desse momento para todo mundo”.

A psicanalista Rosana Teresa Onocko Campos reforça também que é importante cada pessoa compreender que a pandemia tem variados impactos. “Não se cobre para estar muito bem porque ninguém está muito bem. Aceitar que não está bem, às vezes, é o melhor que se pode fazer. Converse com alguém, ligue para um amigo ou para um parente, aproveite algum desses momentos de divulgação cultural, se permita estar um pouco mais calmo, com um ritmo um pouco mais lento, um pouco mais consigo mesmo. E não precisa se cobrar uma felicidade ou uma euforia. Não é um momento para estar eufórico e feliz”.

Caroline Marques Maia é bióloga e doutora em zoologia (Unesp). É gestora-diretora do Clube Ciência do Instituto GilsonVolpato de Educação Científica, e comanda o blog ConsCIÊNCIA Animal. Cursa especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.

Rafael Revadam  é jornalista formado pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul, pós-graduado em estudos brasileiros pela Fundação-Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Atualmente, cursa a especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.