O flerte da comédia com a tragédia

Por Laura Segovia Tercic

Documentário advoga pelo uso de humor em situações de crise humanitária, explora os limites do “cedo demais” para piadas e expõe, ainda que não propositalmente, que o considerado fácil de se produzir no mundo das risadas varia entre as gerações e entre culturas.

O humor está ligado à sociabilidade, joga com perspectivas, expectativas e símbolos culturais, sendo das distrações mais procuradas como mecanismo de escape. Talvez por isso tenha rendido ditados como “rir é o melhor remédio” ou ” riu para não chorar”.

Na era do consumo digital, o humor, que talvez seja o rei das distrações na internet, vem em formato de uma enxurrada de memes e piadas que ajudam as pessoas a conversar, inclusive sobre assuntos graves, políticos ou pandêmicos. Lançado em 2016, o documentário The last laugh se propôs a debater a licença moral e a aptidão de uma boa risada ao tocar em temas sérios, focando, para isso, em um dos maiores eventos de sofrimento e horror na memória coletiva: o holocausto.

O filme, dirigido por Ferne Pearlstein e escrito por ela e por Robert Edwards, conta com entrevistas de famosos do stand-up comedy, como Sarah Silverman, Gilbert Gottfried, Judy Gold e Jeffrey Ross, e com comediantes da velha-guarda do humor americano, com destaque para Mel Brooks e Rob Reiner – escritores e diretores de clássicos cinematográficos que satirizavam nazistas ainda durante a Segunda Guerra – e Robert Clary, francês que fazia números de entretenimento em campos de concentração. A maior parte dos entrevistados é de origem judia.

No entanto há uma participante central nas entrevistas, que não é comediante, mas em cujas história e reflexões sobre a vida o filme vai se desenrolando. Trata-se de Renée Firestone. Sobrevivente de Auschwitz e Liebau, Renée se mudou para os Estados Unidos em 1948 e desde então tenta aproveitar o melhor que a vida pode lhe apresentar de forma bem-humorada, mas sem nunca se esquecer do que viveu e viu na Europa.

Imagens antigas de filmes desde os anos 1940 e pequenos trechos atuais de talk shows e apresentações de comediantes fazendo piadas com assuntos considerados tabu permeiam o documentário, enquanto assistimos a rotina de Renée e sua perspectiva sobre a vida e sobre o que acha engraçado ou não em relação ao holocausto.

Alguns clássicos de discussão ética sobre quem caça risadas como profissão aparecem no filme, com os entrevistados mostrando divergência em suas opiniões e um ponto de convergência comum a todos: o humor é uma forma de sobrevivência.

Um dos pontos de divergência é em relação à autoria. A maior parte, inclusive a sobrevivente Renée, concorda que é desagradável quando quem conta a piada não é um representante da comunidade judaica, o que é comparado no filme também com protagonismo em piadas sobre negros e sobre outros grupos que tenham sofrido alguma espécie de injustiça histórica. 

No entanto, essa questão é colocada como relativa até pelos próprios defensores do lugar de fala, pois outro ponto muito tocado pelos participantes é o de o tempo transformar a adequabilidade ética do humor. Usando exemplos do próprio filme, ninguém se choca quando piadas sobre a Inquisição são feitas (ou com parques de diversão temáticos com uma seção sobre tortura medieval). Mas não é tão fácil encontrar quem queira fazer rir, pelo menos em veículos oficiais, do holocausto ou dos costumes do islã, como o incidente no jornal francês satírico Charlie Hebdo em 2015 pareceu mostrar.

Talvez a maior discussão que apareça em The last laugh seja a velha questão da “prostituição pela risada”, questionando se vale tudo desde que seja engraçado. Diferentemente do documentário brasileiro O riso dos outros (2012), percebe-se uma grande defesa para que se toquem em tópicos considerados polêmicos, com o argumento de que essa é uma forma de não esquecer o passado. Por outro lado, também há espaço para o argumento de que há maneiras mais respeitosas de fazer esse exercício de memória com humor, como diz um dos participantes entrevistados, Abraham Foxman, da Liga Antidifamação nos Estados Unidos, sobre o repertório de Sarah Silverman: “Isso não é trazer em pauta o holocausto, isso é como você o transforma em ‘nada’”. 

O que é tabu ou não também varia entre culturas. Piadas sobre o ataque às torres gêmeas de 09/11 não são bem vistas pelos americanos, mas há certa tranquilidade em esquetes com o tema em outros países, como o Brasil. La vita è bela (1997), um sucesso do cinema italiano e internacional, não recebe boas críticas dos humoristas americanos nem de muitos sobreviventes do holocausto. Ou seja, os limites do “tabu”, do “cedo demais” e, consequentemente do que é engraçado, são maleáveis com o tempo, com a cultura e com o protagonismo.

Um outro exemplo disso é que no documentário percebe-se que há uma linha que separa os dois tipos principais de piadas com o evento do holocausto: o que é feito sobre os nazistas (geralmente pelos comediantes mais antigos) e o que é feito sobre os judeus (geralmente os mais novos). Os mais novos consideram humor com os nazistas fácil de fazer, que não quebra limites. Por sua vez, esse tipo de piada também já foi considerado polêmico e muito criticado algumas décadas atrás. Mesmo os que já fizeram dizem no filme que não se atreveriam a fazer piadas com o sofrimento dos judeus, como acontece em alguns shows de stand-up de hoje.

O final do filme tenta concluir a discussão principal com uma mensagem sobre empoderamento. A felicidade de Renée Firestone com a vida e com os filhos depois de uma crise mundial seria sua “vingança contra Hitler”- como ela mesma diz. Daí o título do documentário, que se traduz como A última risada.

Mas talvez haja uma correlação espúria nessa mensagem, já que ser capaz de rir na vida que se segue, ou até mesmo durante os piores momentos, não significa a validação de se rir em qualquer formato que a piada se apresente.

Zdenka Fantlova, artista de cabaré que se apresentava em alguns campos de concentração, fala no filme sobre o contexto nessas apresentações: “É claro que as pessoas presentes estavam rindo. Nós estávamos a nos imaginar vivendo em um tempo normal”.

A risada, ao mesmo tempo em que relaxa a tensão de uma situação, permitindo um olhar mais leve sobre ela, anestesia a realidade das emoções.

Laura Segovia Tercic é bióloga formada pela USP e cursa a especialização em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp.