Comida e cultura: cresce o resgate de práticas alimentares durante a pandemia

Por Adilson Roberto Gonçalves [imagem: Dessoragem de queijo. Cristina Leme/Iphan]

O resgate do preparo do alimento em casa como prática artesanal tem aumentado devido à quarentena imposta pela pandemia do novo coronavírus.

Mais do que sobrevivência, a alimentação tem se mostrado um vetor cultural importante. A história da busca e preparo de alimentos se confunde com a própria história da civilização. No dossiê da ComCiência sobre Comida foram apresentados vários aspectos cruciais sobre o domínio do fogo, o uso do frio, a seleção de sementes e de animais. Especialistas apontam que, no atual momento de maior presença em casa, intensifica-se a busca por práticas culinárias, especialmente pela parcela da população que estava distante desses costumes, mesclando a necessidade com o resgate de características culturais.

Patrícia Merlo é doutora em história social pela UFRJ e docente da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), especializada em patrimônio alimentar e história da alimentação. Patrícia lembra que as histórias do homem e da alimentação se confundem, sendo que os rituais de comensalidade – a partilha de alimentos – são práticas características de nossa espécie desde os tempos de caça e coleta. O papel fundamental da alimentação é fornecer energia e, a partir disso, foram constituídos grupos que conseguem manipular a produção do alimento. “O domínio do fogo permitiu a cocção dos alimentos, dando origem à cozinha, o primeiro laboratório humano, possibilitando o processo de passagem do homem da condição biológica para a social”, diz a especialista.

Professor de gastronomia na Faculdade Novo Milênio em Vila Velha/ES, com mestrado em história pela Ufes, Fernando Santa Clara aponta na mesma direção, dizendo ter sido essencial “que a humanidade rompesse com a necessidade primária de buscar o alimento e pudesse dar atenção a questões relacionadas à convivência”.

“O comportamento alimentar passa a adquirir uma função social, favorecendo as interações, e o entretenimento esteve presente nesse longo processo de humanização”, complementa Patrícia.

Fernando Santa Clara avança um pouco mais nessa conceituação, considerando a conformação de um processo de gestão de valores das práticas alimentares, ou seja, “elegem-se quais são os alimentos a serem consumidos no cotidiano, ajustam-se as técnicas de cocção consideradas melhores para dados alimentos por meio da experimentação, marcam-se horários para refeições, e a culinária passa a ganhar contornos de especialidades, ficando a cargo de determinados grupos”.

Patrícia Merlo afirma ainda que “ao longo da história de nossa espécie os alimentos sempre foram parte fundamental das diferentes formas de divertimentos ou espetáculos: rituais religiosos, mágicos ou festivos”. Os rituais se revelam como entretenimento à medida que as produções culinárias se especializam. Chefes de cozinha, programas televisivos e redes sociais passam a difundir segredos, provocando a curiosidade das pessoas. Esses programas de culinária migraram da simples apresentação da receita de como elaborar um prato para uma disputa entre concorrentes, vista como uma forma de capitalizar o conhecimento.

Há ressalvas quanto ao caráter de competição, mas Patrícia é da opinião de que tais programas “impactam o comportamento alimentar das famílias na busca por alimentos que representem seus valores e a comida se converte em uma forma de expressão”. Já Fernando Santa Clara não é favorável a esse tipo de programa, dada a competitividade “grotesca” que ali se desenvolve. No entanto, indica que podem despertar o interesse pela cozinha e pela produção culinária, além de propiciar a elaboração do conhecimento por meio dos relatos da relação dos participantes com o alimento, mostrando como cada um conheceu e utilizou cada alimento para desenvolver um prato.

Produção artesanal

A palavra artesanal invadiu os cardápios e as gôndolas dos supermercados, se transformando no termo gastronômico do momento, segundo Patrícia, que realça o aspecto afetivo e de memória da forma de cozinhar, com resgate de cadernos de receitas familiares, por exemplo. Mas também contrapõe que isso indica uma evolução do paladar do consumidor médio, mais atento para a diferença entre o sabor do que é massificado e do que não é. Um produto industrializado raramente mantém o respeito pelos ingredientes ou pela receita. A busca pelo reconhecimento de sabores e ingredientes locais era uma tendência que se fortalecia antes da pandemia. De qualquer forma, é a constituição de um mercado com custo mais alto, em franco crescimento. O consumidor do alimento passa a ser também um devorador de mais informações sobre os alimentos e amplia seu entendimento de resgate de valores. Otimista, ela sorri: “receitas antigas estão voltando à mesa do consumidor com produtos de verdade”.

“É um sistema que é retroalimentado”, comenta Fernando, com o devido trocadilho. Na visão dele, o rótulo de artesanal tem atraído pessoas que sequer haviam adentrado suas cozinhas para ali descobrirem formas de preparar seus alimentos. A partir daí, há também o compartilhamento dos processos e resultados com amigos, familiares e mesmo desconhecidos por meio das redes sociais virtuais. Mas, novamente, ele contrapõe a questão da experimentação e necessidade de comer com a de “tornar-se um refém da produção e acumulação de seguidores em redes sociais”. Ele crê que “a linha que divide a produção alegre, experimentada, seja muito tênue quando falamos de uma produção vitrinista, expositiva, uma vez que a possibilidade de adquirir público por meio da confecção de um produto ganha espaço a passos largos”.

Cláudio Donato de Oliveira Santos, do Centro Universitário Teresa D’Ávila (Unifatea), em Lorena, possui doutorado em biotecnologia industrial pela USP e é um entusiasta da alimentação artesanal. Ele incentiva seus alunos à prospecção de receitas caseiras de bebidas e alimentos fermentados. Como exemplo, ele cita um refrigerante à base de soro de kefir e a pasta de abóbora fermentada, dentre outras iguarias, que foram apresentados em feira de alimentos realizada pela Unifatea. Cláudio ressalta que todos os alimentos se originaram em processos artesanais e posteriormente foram adaptados à produção em larga escala. Com o apelo ao consumo mais saudável e ao “faça você mesmo”, houve incentivo à população para produzir seu próprio alimento, resgatando técnicas milenares. O professor ressalta a distinção entre produção artesanal, que é aquela em que há a interferência humana em uma ou mais etapas da produção, independente da escala e a produção de micro ou pequenos lotes que, apesar de pequena, pode ser completamente automatizada, e não ser necessariamente artesanal.

Questões de segurança

No entanto, a questão da segurança deve ser devidamente abordada, como alerta Cláudio. Na fabricação de cerveja, por exemplo, não há o desenvolvimento de tantas substâncias tóxicas quanto na fabricação de cachaça – para citar um dos produtos que mais têm sido obtidos fora das grandes empresas. Ainda assim, requer cuidados. Um dos pontos críticos de controle é o resfriamento do mosto antes de sua transferência para o fermentador. Como esse processo deve ser feito o mais rapidamente possível, em grande escala, isso deve ser realizado em equipamentos bastante eficientes, que podem conter anticongelantes, como monoetilenoglicol ou dietilenoglicol, que apresentam riscos à saúde caso contaminem o produto final. Foi o que ocorreu no caso da cervejaria Backer em Minas Gerais em 2019, que utilizou o dietilenoglicol na sua linha de resfriamento e, por meio de fissuras no equipamento, essa substância acabou contaminando alguns lotes de cervejas produzidas pela companhia, o que causou a morte de 7 pessoas e deixou 22 com sequelas.

O hobby de fabricar cerveja em casa não traz esses riscos à segurança, segundo o entusiasta Cláudio, mas, pelos altos custos, é uma atividade que deve ser tomada sem pretensão comercial. Ele conclui, concordando com Patrícia Merlo, que “a busca pela produção artesanal de alimentos se traduz em uma forma de se conectar à simplicidade inicial dos processos, que resultam em produtos mais ligados às origens e à cultura de um povo, ao consumo de alimentos com um componente afetivo, de identidade, em contraponto à massificação dos alimentos industrializados, impessoais e ‘sem alma’”.

Adilson Roberto Gonçalves é pesquisador da Unesp-Rio Claro com especialização em jornalismo científico pelo Labjor-Unicamp.