Por Luis Felipe Miguel
Iustração de Cristiano Siqueira instagram @crisvector twitter @crisvector
O mundo que sairá da crise será, como sempre, resultado da luta política. Se de fato valorizamos um ordenamento político democrático, será preciso investir na redução das desigualdades, na ampliação da educação política, na desprivatização do poder de influência e na desmercantilização da vida, sem as quais uma democracia autêntica não pode florescer. São lições que a crise atual parece nos ensinar. Mas, como sempre, uma coisa é o que a história ensina. Outra é o que a humanidade aprende.
The Midwich cuckoos, de John Wyndham, publicado em português na lendária coleção “Argonautas” com o título A aldeia dos malditos, é um clássico da ficção científica da Guerra Fria. Num vilarejo da Inglaterra, todas as mulheres em idade fértil descobrem estar grávidas ao mesmo tempo – e dão à luz bebês misteriosamente idênticos. Depois do estupor inicial, as crianças recebem o amor de suas famílias, crescem e acabam revelando (é tão óbvio que nem chega a ser spoiler) serem a vanguarda de uma força alienígena destinada a dominar a Terra. Trata-se de uma metáfora nada sutil da “infiltração comunista” que preocupava o Ocidente naqueles anos 1950.
Mais para o final do livro, o leitor fica sabendo que um fenômeno semelhante ocorreu na União Soviética. Mas, lá, a aldeia foi isolada – e, quando se comprovou que havia perigo, simplesmente destruída, sacrificando sem hesitação tanto alienígenas quanto humanos. Há, aqui, um misto de horror pela crueldade e fascinação pela eficácia dos regimes “totalitários” na solução dos problemas. É a tradução ficcional da eterna ambiguidade dos cold warriors, para quem a democracia, ideal que tudo justificava, era nociva a si mesma; em suma, a defesa da democracia estava sempre exigindo sua destruição.
A humanidade vive hoje uma batalha não contra invasores alienígenas, mas contra um inimigo bem terráqueo: o novo coronavírus. Nela, como no romance de Wyndham, é tentador ver a democracia como menos capaz de enfrentar situações críticas. De fato, num dos best-sellers sobre a crise corrente dos regimes liberal-democráticos, How democracy ends, David Runciman observa que as democracias não conseguem lidar com questões de vida ou morte – o exemplo que ele dá, daqueles tempos pré-pandemia, é o aquecimento global. É uma afirmação curiosa, em uma obra que se coloca ostensivamente como uma defesa da democracia. Afinal, o mundo contemporâneo é caracterizado, por muitos teóricos sociais, como uma sociedade de gestão do risco, em que “questões de vida ou morte” estão colocadas cotidianamente. Se a democracia não serve para isso, qual seu espaço na organização da vida social? E que tipo de organização política tomará as decisões sobre tais questões?
Talvez seja o caso de pensar na contramão de Runciman. Ecossocialistas como André Gorz argumentavam que é necessário banir sistemas complexos demais para serem geridos de forma democrática. Esse era um dos argumentos mobilizados contra o uso da energia nuclear. É possível estender o raciocínio para toda a nossa relação com o mundo natural. O desequilíbrio ecológico – que, tudo indica, está na raiz da eclosão da pandemia do novo coronavírus – precisa ser contido também para que as decisões a serem tomadas pelas sociedades permaneçam na escala humana que é compatível com o funcionamento da democracia.
No caso do coronavírus, é a China que aparece como contraponto aos regimes liberais democráticos. Há bons motivos para duvidar dos números divulgados pelo governo chinês, mas parece claro, também, que a doença foi contida no país – e que as medidas draconianas de isolamento social, cuja implementação foi facilitada pelo regime autoritário, cumpriram um papel importante na obtenção desse resultado. Na Europa Ocidental, em que restrições severas tiveram que ser impostas por governos formalmente democráticos, as políticas propostas para saída do confinamento namoram com um incremento do controle estatal sobre as pessoas: vigilância contínua com redução ainda maior da privacidade e uma restrição mais ou menos perene ao direito de ir e vir. Na Inglaterra, por exemplo, estuda-se o uso de softwares de reconhecimento facial em vias e prédios públicos, para garantir que os “indesejáveis”, isto é, aqueles que não possuem anticorpos, não saiam às ruas.
Nesse contexto, uma parte do establishment conservador reafirma o mantra “segurança acima da liberdade”, sempre evocado, sobretudo após os ataques do 11 de setembro de 2001, para justificar medidas de restrição das garantias individuais. Outra parte, no entanto, vai na contramão e usa uma defesa fingida das liberdades para legitimar seu negacionismo e sua recusa à ciência. Extremistas de direita como Donald Trump e Jair Bolsonaro descobriram subitamente um amor pelos direitos que ninguém desconfiava que tinham. A simples enunciação dessas posições mostra que a pandemia dramatiza uma das questões centrais da vida nas sociedades contemporâneas, que é a compatibilização entre os direitos individuais e o interesse coletivo.
Ocorre que a democracia pretende ser, ela mesma, uma solução para essa questão. A participação igualitária de todos seria condição para a legitimidade das decisões de cumprimento compulsório. Ao menos em tese, isso seria tanto um obstáculo contra a arbitrariedade, como já argumentava Rousseau, quanto um instrumento para aumentar a adesão espontânea às decisões, aceitas como frutos de uma autonomia partilhada por cada um, não como imposição externa. As dificuldades geradas pela pandemia, assim, podem ser vistas como decorrência das complexidades da própria situação, mas também dos déficits democráticos de nossos regimes.
Uma parte da literatura recente sobre a “crise da democracia”, como o livro de Runciman citado antes, aponta como vilão o declínio da qualidade do processo decisório, capturado por líderes e movimentos frouxamente caracterizados como “populistas”, que investem em soluções simplistas, fundadas em informações falsas, e que impedem qualquer debate sério insuflando a agressividade de seus seguidores. O novo ambiente comunicacional, com as redes sociais, as bolhas impenetráveis que elas geram e a chamada “pós-verdade” como resultante, aparece como um elemento deflagrador central dessa situação. Mas é possível refletir que o que estamos presenciando é o esgotamento do modelo até agora vigente de democracia de limitadíssima voltagem, em que se esperava, da maioria da população, baixa participação com baixa informação. Cidadãos que pouco sabiam da política e se limitavam a votar de quando em quando gerariam, ainda assim, governos responsáveis e competentes. O modelo sinalizava que a política devia permanecer como um “jogo de cavalheiros”, em que a elite monopolizaria a tomada de decisões mantendo algum grau de racionalidade, o que já indicava a traição dos ideais igualitários próprios da democracia. Agora, porém, significa o risco de captura da política por aventureiros de todo tipo.
Uma vertente diversa dos estudos sobre a crise da democracia liberal vai apontar fatores mais profundos. O avanço dos extremistas não pode ser entendido sem que se coloque na equação o processo de retração do espaço democrático, por sua vez ligado à perda de força política da classe trabalhadora, que fez com que grande parte das decisões centrais no mundo social fossem subtraídas ao escrutínio da soberania popular. Redução do Estado, retirada de direitos e políticas de austeridade fiscal, que funcionam na prática como mecanismos de transferência de renda de trabalhadores e pensionistas para rentistas e especuladores, são impostos como imperativos que não permitem discussão, gerando um cenário, o cenário do predomínio do neoliberalismo, em que a democracia parece cada vez mais desprovida de sentido.
O mundo que a pandemia encontrou já era fruto de décadas da hegemonia neoliberal. Por toda a parte, embora em graus diversos, os sistemas públicos de saúde mostravam as cicatrizes do financiamento insuficiente. Vastos setores da população estão entregues a trabalhos precários, sendo, portanto, as primeiras vítimas da retração econômica que o combate à pandemia gera. Mais grave é o fato de que o Estado parece condicionado a ouvir antes e melhor os reclamos da burguesia do que de outros grupos sociais. No Brasil, como em outros países, vemos isso na resposta vacilante à pressão por uma reabertura precoce das atividades econômicas ou no fato de que os auxílios às empresas em dificuldade parecem sempre ser disponibilizados com mais presteza (e generosidade) do que aqueles destinados às populações carentes.
Outro fator é a acelerada perda da privacidade pessoal, no âmbito daquilo que Soshana Zuboff chamou de “capitalismo de vigilância”. As gigantes da tecnologia, que hoje moldam uma parcela tão grande do espaço em que as interações entre pessoas ocorrem, como Facebook, Apple ou Google, monitoram ativamente cada movimento de seus consumidores, produzindo gigantescos bancos de dados que buscam predizer e direcionar comportamentos. Estar online (e mesmo antes da pandemia uma parcela crescente da nossa vida ocorria online, ainda mais com a incorporação de televisores, alto-falantes ou até aspiradores de pó a esses sistemas) é estar sob vigilância, numa relação que não dá às pessoas praticamente nenhum controle sobre os dados que serão coletados e o uso que receberão – e menos ainda, como observa Zuboff, para a ideia, tornada quase “natural”, que toda experiência humana deve ser convertida em matéria-prima para extração de dados com objetivo comercial.
Os recursos de vigilância que agora se ensaia colocar a serviço do isolamento social exigido pelo combate ao coronavírus têm sido desenvolvidos como parte desse esforço empresarial de monitoramento. Desvela-se outra faceta do processo de desdemocratização: a colonização de espaços cada vez maiores da vida social por corporações privadas, com os usuários – constrangidos por contratos impostos de maneira unilateral, mas de adesão pretensamente “voluntária” – desprovidos de qualquer poder. O uso público dessas tecnologias, com as preocupações que gera, revela a importância de estabelecer regras transparentes, acessíveis a todos, debatidas e aprovadas de forma democrática, valendo tanto para o Estado quanto para empresas privadas, sobre quais dados podem ser obtidos e em que circunstâncias, quem tem acesso a eles e com que finalidades específicas.
Em suma: regimes autoritários de fato têm facilidade para impor respostas rápidas e desagradáveis a desafios prementes, mas isso não garante que as respostas serão as melhores. E muitos dos problemas com que nos defrontamos podem ser creditados também a uma deficiência de democracia, que fomenta o descrédito – compreensível e razoável – nas decisões emanadas dos agentes públicos.
Como qualquer outro desafio civilizatório de grande porte, a pandemia não gera uma resposta obrigatória. Ela gera uma nova situação, que coloca questões que diferentes atores sociais tentarão enfrentar – ou escamotear – de diferentes formas. O mundo que sairá da crise será, como sempre, resultado da luta política.
Uma dessas questões é o quanto valorizamos um ordenamento político democrático. Se de fato o valorizamos, será preciso investir na redução das desigualdades, na ampliação da educação política, na desprivatização do poder de influência e na desmercantilização da vida, sem as quais uma democracia autêntica não pode florescer.
São lições que a crise atual parece nos ensinar. Mas, como sempre, uma coisa é o que a história ensina. Outra é o que a humanidade aprende. Na relação entre elas, intervém a luta política. Podemos, a partir daqui construir um mundo mais solidário, mais igualitário e mais respeitoso do meio ambiente. Ou podemos deixar que os interesses e a miopia dos poderosos nos conduzam de novo ao caminho de sempre.
Luis Felipe Miguel é professor titular do Instituto de ciência política da Universidade de Brasília (UnB), onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), e pesquisador do CNPq. Publicou, entre outros, os livros O colapso da democracia no Brasil: da Constituição ao golpe de 2016 (Editora Expressão Popular, 2019), Dominação e resistência – Desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018), Consenso e conflito na democracia contemporânea (Ed. Unesp, 2017), Notícias em disputa – Mídia, democracia e formação de preferências no Brasil (com Flavia Biroli, Contexto, 2017), O nascimento da política moderna: de Maquiavel a Hobbes (Editora UnB, 2015), Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Feminismo e política: uma introdução (com Flávia Biroli; Boitempo, 2014) e Mito e discurso político (Editora Unicamp, 2000).