A invisibilidade da população de rua e de suas mortes por COVID-19 no município de São Paulo

Por Aluízio Marino, Raquel Rolnik, Laura Salatino e Kelseny Medeiros

Uma primeira versão do texto foi publicada em 13 de janeiro de 2022 no site do LabCidade. Agradecemos o Prof. Paulo Lotufo por nos convidar a integrar o Projeto Recovida e equipe da Clínica Luiz Gama pela imprescindível colaboração na leitura dos dados e produção dos infográficos, nominalmente: Caroline Brisola, José Vicente de Oliveira Kaspreski, Aline Sayuri Cawamura, Guilherme Eufrasio Pinheiro, Verônica Brito Sepúlveda Martines.

Introdução
A pandemia ampliou a crise habitacional que já assola a capital de São Paulo pelo menos desde 2013 (ROLNIK et. al., 2019). A ausência de controles sobre aumento dos valores de aluguel e a manutenção dos despejos e remoções, apesar da suspensão via ADPF 828 do Supremo Tribunal Federal, fez com que milhares de pessoas passassem a viver nas calçadas (MARINO et. al., 2022). No município de São Paulo, entre 2019 e 2021 houve um aumento de 31% de pessoas em situação de rua, chegando a mais de 31 mil pessoas, de acordo com dados do Censo da População em Situação de Rua (PMSP, 2021).

Embora essa fosse uma situação conhecida pelas autoridades, isso não se traduziu em medidas efetivas para a proteção dessa população. Uma das lacunas principais é o fato de não sabermos até hoje qual a parcela da população que vivia nas ruas durante a pandemia que foi a óbito ou contraiu o vírus da COVID-19, tampouco quantos foram vacinados (NUNES, 2020).

Na tentativa de conhecer melhor e tornar visível o que de fato aconteceu, o LabCidade-FAUUSP em parceria com a Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (FDUSP) analisou a base de dados sobre os óbitos por COVID-19 na cidade de São Paulo, organizada pelo Projeto Recovida1, que realizou uma reavaliação da mortalidade por causas naturais durante a pandemia no período de março de 2020 a maio de 2021.

1. Dificuldades no acesso aos dados
Organizações da sociedade civil e movimentos sociais que atuam pela garantia de direitos à população em situação de rua buscaram acessar essas informações durante toda a pandemia. A Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, por exemplo, realizou 22 pedidos de acesso à informação para a Prefeitura de São Paulo. Entretanto, não obteve informações consistentes, as respostas alegavam que a ausência de um procedimento específico para o registro dessa população impediria a contabilização exata.

O Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua2 (Comitê PopRua) cobrou várias vezes a divulgação periódica de dados sobre óbitos, contágio e, posteriormente, vacinação na população em situação de rua. Em resposta, a Secretaria Municipal de Saúde tratava da dificuldade em conseguir essas informações, alegando novamente a falta de padronização dos formulários de notificação de doenças respiratórias (incluindo a COVID-19), especialmente de um campo para notificação da situação de rua. A solução apresentada pela prefeitura foi utilizar os dados informados pelo Consultório na Rua – política da atenção básica em saúde que realiza uma busca ativa dessa população. Entretanto, esses números são obtidos apenas a partir dos atendimentos realizados pelo programa (um total de 352.950 abordagens no período entre abril de 2020 e outubro de 2021) e não do universo total de atendimentos em saúde realizados com a população em situação de rua em toda a rede municipal. Portanto, embora de suma importância, são dados subestimados. O último boletim, divulgado em novembro de 2021, apontava 953 casos confirmados e 49 óbitos por COVID-19.

Analisamos então os dados do Projeto Recovida, que realizou uma checagem das informações disponíveis em duas bases de dados governamentais: o Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) e o Sistema de Vigilância Epidemiológica da Gripe – SIVEP. Identificamos pelo menos 96 óbitos da população em situação de rua, quase o dobro dos identificados pelo Consultório na Rua. O gráfico abaixo compara os números informados pela Prefeitura via Comitê PopRua e os observados na base de dados do Projeto Recovida.

Para visualizar o gráfico interativo, clique aqui.

O processo para identificação dos óbitos por COVID-19 na população de rua exigiu um enorme esforço, considerando que não há um procedimento específico que identifique essa população, tanto nos óbitos como nas internações por COVID-19 e outras doenças respiratórias. Para encontrar esses registros dependemos, por um lado, de informações inseridas de forma espontânea pelos profissionais de saúde: localizamos 35 óbitos em que, no campo de endereço (nome do logradouro e complemento), constava a indicação “morador de rua”; “situação de rua” e “morador de área livre”. Também conseguimos identificar mais 61 óbitos a partir do cruzamento com endereços de centros de acolhimento vinculados à Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS).

2. Para além de um número
Os dados do Projeto Recovida, além de indicarem um número maior de óbitos, possibilitaram uma análise do perfil dessa população que pode ser dividida em dois grupos : (i) “situação de calçada”, com 35 óbitos; e (ii) “acolhidos”, com 61 óbitos. Todavia, não é possível concluir que pessoas acolhidas morreram mais já que a identificação daqueles em “situação de calçada” depende da ação individual dos servidores no momento de preenchimento das fichas.

A maior parte dos óbitos identificados é de homens (77,08%), e essa porcentagem é ainda maior quando analisamos apenas a categoria “situação de calçada” (94,29%). Todos os óbitos identificados são de adultos e idosos, 78,13% deles acima dos 50 anos de idade.

Quanto à cor da pele, metade das pessoas que faleceram foram identificadas nos formulários como pretos ou pardos, 44,79% foram identificados como brancos e para 5,21% não consta essa informação. Se considerarmos apenas a categoria “situação de calçada”, a presença de negros é ainda maior (54,29%).

Em relação à prevalência de comorbidades e fatores de risco pelo menos 75% apresentavam ao menos uma destas condições. Destes, 27,08% possuíam alguma doença cardiovascular, 17,71% tinham problemas respiratórios e 12,5% eram fumantes. Ao analisarmos somente o grupo “situação de calçada”, 17,14% possuía tuberculose e 25,71% tinha alguma dependência de álcool e/ou outras drogas.

As características e condições apresentadas refletem, em certa medida, os dados censitários dessa população: em sua maioria homens, negros. A presença de comorbidades aparece em maior proporção do que nos dados censitários, mas seguindo os fatores de risco conhecidos para Covid-19. O perfil etário também segue o perfil de risco da doença com relação a idosos, questão sensível para essa população, já que o último censo aponta que foi alta a taxa de crescimento de idosos vivendo nas ruas.

3. Leitura territorial e reflexões sobre a política de acolhimento
As diferenças entre acolhidos e pessoas em situação de calçada reforçam a ideia de que os não-acolhidos apresentam maior sobreposição de vulnerabilidades e maior invisibilidade no processo de produção de dados de saúde.

A maioria dos óbitos aconteceu em hospitais (94,85%), um local de óbito foi registrado como domicílio (centro de acolhida) e nenhum na via pública. Dos óbitos em hospital, 27,08% ocorreram na Santa Casa, nesse mesmo hospital estão registrados mais da metade dos óbitos identificados como “situação de calçada” (57,14%). A concentração de óbitos nessa unidade se relaciona com a grande presença de população em situação de rua no entorno, segundo dados do Censo da População em Situação de Rua (2021), 15,7% se concentra no distrito de Santa Cecília. Também sinaliza para uma possível maior sensibilidade dos profissionais de saúde dessa instituição em identificar nos formulários os pacientes em situação de rua.

Durante toda a pandemia não houve uma política pública de acolhida da população de rua que garantisse condições de isolamento e proteção adequadas contra a COVID-19 (PINHO et. al., 2020), e isso, de alguma forma, se reflete nos dados. Dos óbitos registrados entre as pessoas em situação de acolhimento, todos eram atendidos em centros temporários de acolhida, popularmente conhecidos como albergues, modalidade de serviço majoritariamente oferecida pela Prefeitura. Esse tipo de serviço, pela grande concentração de pessoas no mesmo espaço, apresenta condições de risco de infecção por doenças respiratórias, além disso, são recorrentes as denúncias das condições insalubres desses espaços (CDHC, 2021).

É importante destacar que, ao cruzarmos os endereços indicados na base de dados, não localizamos nenhum óbito de pessoas que vivem em Repúblicas para adultos, modalidade defendida por organizações e lideranças da população em situação de rua como uma das mais adequadas para garantir a autonomia e a superação das condições de vulnerabilidade (SMDH, 2021), além de apresentar maior compatibilidade com as medidas de prevenção contra a COVID-19 e outras doenças respiratórias. Infelizmente, essa modalidade de atendimento é bastante limitada na cidade de São Paulo, em 2021 existiam apenas seis repúblicas para adultos, atendendo 255 pessoas; número bastante baixo em comparação com os centros de acolhida, com 102 equipamentos e 14.979 vagas de acolhimento (CDHC, 2021).

Considerações finais
Os dados apresentados neste texto demonstram que durante dois anos de pandemia não foram adotadas todas as medidas possíveis e disponíveis para identificar e agir sobre os impactos do COVID-19 sobre a população que vive nas ruas de São Paulo, em um contexto aonde esta foi crescendo ano a ano. Em outras palavras, a invisibilidade dos óbitos e dados de vacinação da população em situação de rua parece ter sido uma escolha. Procedimentos simples, como a inclusão de uma pergunta nos formulários médicos e registros de óbito que identificassem a condição de moradia, com respostas padronizadas, que contemplassem “situação de rua” e “centros de acolhida/albergues”, entre outras, poderiam colaborar para a compreensão mais adequada da difusão espacial da pandemia ou outros futuros surtos epidêmicos, passo importante para traçar uma política específica de cuidado .

A ausência de procedimentos específicos para o monitoramento da saúde da população de rua é uma das facetas da invisibilidade histórica enfrentada por esse grupo. É fundamental que o poder público adote medidas visando consolidar uma política de acompanhamento permanente da saúde da população em situação de rua, tanto para subsidiar o desenho das mais variadas políticas públicas, quanto para definir protocolos de cuidado durante epidemias.

1 Projeto de cooperação entre docentes e pesquisadores da FMUSP, do IME-USP, da FAUUSP e servidores da Secretaria de Saúde da Prefeitura de São Paulo, visando aperfeiçoar os métodos e processos de contabilização da mortalidade por COVID-19 no município.

2 Órgão colegiado de composição paritária entre Governo e Sociedade Civil, que visa a construir, acompanhar e avaliar a política municipal para a população em situação de rua da cidade de São Paulo.

Esse artigo contou com o apoio da FAPESP, através da Chamada UN-Research Roadmap COVID-19.

Referências bibliográficas 

CDHC. Centros de Acolhida em São Paulo: Relatório das visitas de inspeção aos serviços para a população em situação de rua. Comissão Extraordinária de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Câmara Municipal de São Paulo. 2021. Disponível:

https://www.saopaulo.sp.leg.br/wp-content/uploads/2022/06/2021_CDH_Relatorio_Visitas_Centros- de-Acolhida-2022-04-14.pdf (acessado em 11 de março de 2024)

SMDH. Atas de Reunião do Comitê Pop Rua. Secretaria Municipal de Direitos Humanos, Prefeitura de São Paulo – 2021. Disponível em:

https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/direitos_humanos/poprua/comite/index.php? p=309284 (acessado em 11 de março de 2024)

MARINO, A.; PECORAL, G. L.; LACERDA, L; GONSALES, T. A., UNGARETTI, D., SÁ, J. N. O que o aumento da população em situação de rua tem a ver com despejos e remoções? LabCidade – FAU USP. 27 de janeiro de 2022. Disponível em:

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NUNES, N. A. N.. População em situação de rua em tempos de pandemia da Covid-19. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2021. Disponível em:

http://www.editora.puc-rio.br/media/Popula%C3%A7%C3%A3o%20em%20situa%C3%A7%C3%A3o%20de%20rua_book.pdf (acessado em 11 de março de 2024)

PINHO, K. M.; KOHARA, L. T.; CESPEDES, B.; FERRAZ, L. F.. Se uma pandemia não basta, o que será preciso para repensar o acolhimento para a População em Situação de Rua? LabCidade – FAU USP. 19 de maio de 2020. Disponível em:

https://www.labcidade.fau.usp.br/se-uma-pandemia-nao-basta-o-que-sera-preciso-para-repensar-o-acolhimento-para-a-populacao-em-situacao-de-rua/ (acessado em 11 de março de 2024)

SMADS. Pesquisas do Observatório Socioassistencial. Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social da Prefeitura de São Paulo. 2024. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/assistencia_social/observatorio_socioassisten cial/pesquisas/index.php?p=18626 (acessado em 11 de março de 2024)

ROLNIK, R.; MENDONCA, P. ; MOREIRA, F. A. ; UNGARETTI, D. ; MARINO, A. A máquina de despejos de aluguel e a crise da moradia em São Paulo. UOL, São Paulo, 15 ago. 2019. Disponível em: https://raquelrolnik.blogosfera.uol.com.br/2019/08/15/a-maquina-de-despejos-de-aluguel-e-a-crise-da-moradia-em-sao-paulo/ (acessado em 11 de março de 2024)