A punição no audiovisual norte-americano e brasileiro: entre o tribunal e a prisão

Por Paula Gomes

Se o audiovisual norte-americano elegeu o ambiente dos tribunais como lócus de excelência em suas produções, no Brasil prevalecem os espaços prisionais. Quais as implicações dessa diferença?

Os mecanismos sociais de punição criminal são regulados pelo poder judiciário de cada país, envolvendo, de maneira geral, três etapas: apreensão, julgamento e cumprimento da sentença. A partir dessa perspectiva este artigo pretende discutir as possíveis causas da recorrência de dois lócus diferentes no audiovisual norte-americano e brasileiro que trata sobre esse tema: enquanto o primeiro elegeu o ambiente dos tribunais como lócus de excelência em suas produções audiovisuais, o segundo optou pelos espaços prisionais.

O território dos tribunais é tão comum em séries e filmes norte-americanos que, para muitos, já se configura como um gênero específico, com características narrativas e estilísticas em comum. Essas histórias, ambientadas dentro do rígido e codificado ambiente de um tribunal de justiça, com suas tradições, regras e códigos de conduta, reservam aos personagens do réu, testemunhas, júri e juiz, papéis muito bem delineados. Ao réu e às testemunhas cabem a voz da experiência vivida, e, no caso das testemunhas técnicas, da transmissão dos dados e provas do caso; e ao júri e ao juiz o cumprimento rigoroso e discreto do código penal de determinado estado. O protagonista por excelência dessas narrativas é, portanto, o advogado, que conduz a história trilhando um percurso dentro e fora do tribunal, cujo clímax é o seu discurso de considerações finais, momento em que todo o conhecimento angariado no decorrer da narrativa é formatado na forma de um discurso inflamado e catártico. Dentro desse esquema, o resultado da sentença termina, por vezes, a ter seu impacto diluído, restringindo-se às demandas narrativas de confirmação ou não de um happy ending.

Dentro desse gênero podemos encontrar uma linhagem mais “clássica” composta por dois grupos de filmes: (1) obras baseadas em fatos reais, em que os personagens dos advogados travam cruzadas em ações civis contra grandes corporações ou instituições, como em A civil action – a qualquer preço (Steven Zailian, 1999) e Erin Brockovich – uma mulher de talento (Steven Soderbergh, 2000); (2) obras em que os advogados assumem casos particulares, que podem ser entendidos como metonímia de questões sociais maiores, como em O sol é para todos (Robert Muligan, 1962) e Justiça para todos (Norman Jewison, 1979).

Filiadas a uma dessas vertentes encontra-se grande número de séries dramáticas norte-americanas, como The practice (1997-2004); as séries da franquia Law & order, como Law & order: trial by jury (2005-2206); The good wife (2009-2016) e séries que mesclam humor e drama, como Ally McBeal (1997-2002) e Boston legal (2004-2008). Como a estrutura narrativa dessas séries é estruturada a partir do desenvolvimento dos protagonistas advogados, enquanto os réus, juízes e júri alteram-se a cada novo capítulo ou arco narrativo, o foco é direcionado para a vida pessoal do advogado, que em alguma medida se infiltra e dialoga com os casos.

Há também uma vertente mais contemporânea do gênero, caracterizada por filmes e séries que alteram o foco da narrativa do personagem do advogado para problematizar o próprio sistema judiciário norte-americano, que passa a ser visto sob uma perspectiva de “batalha de narrativas”, dentro de determinado contexto histórico-social. Dentro dessa vertente, encontramos obras que exploram potenciais “erros de julgamento” resultantes do debate público e mídiático que envolve os casos.

Um dos percursores dessa linha é The thin blue line (Errol Morris, 1988), que discorre sobre a falsa condenação de Randall Adams por assassinato. Sintoma dessa mudança de ares é o próprio título do filme, uma referência irônica a uma frase dos argumentos finais do advogado de acusação do caso, que afirmou que o poder judiciário era a “tênue linha azul” que separava a sociedade da barbárie.

Podemos citar também a trilogia de filmes Paradise lost: the child murders at Robin Hood Hills (1996), Paradise lost: revelations (2000) e Paradise lost: purgatory (2011) dos diretores Joe Berlinger e Bruce Sinofsky, sobre a controversa acusação de três adolescentes, Jessie Misskelley, Damien Echols e Jason Baldwin, por violência sexual e assassinato. O documentário de Morris e a trilogia de Berlinger e Sinofsky tiveram tanta repercussão que foram capazes de reverter a opinião popular e a sentença judicial, conquistando as solturas dos retratados. Nessa mesma trajetória segue a recente série Making a murderer (2015), que questiona a condenação de Steven Avery por assassinato.

Já o veredicto de “não-culpado” é discutido na minissérie The people v. O.J. Simpson: american crime story (2016), que aponta como a utilização precisa de um discurso racial pelo advogado de defesa do famoso jogador influenciou sua absolvição. Outra vertente contemporânea do gênero são as séries cujos protagonistas advogados possuem um caráter ambíguo, podendo ser considerados espécies de anti-heróis, como nas séries How to get away with murder (2014-) e Better call Saul (2015 – )

Em contrapartida, as obras audiovisuais que se passam dentro do lócus da prisão frequentemente não estão preocupadas em problematizar questões relativas à esfera judicial norte-americana, na medida em que podemos encontrar esse espaço narrativo em filmes que se enquadram mais ao gênero da aventura, iniciando-se com a premissa da condenação de determinado protagonista  (muitas vezes injusta) que desencadeia a aventura de fuga de prisão, como em Papillon (Franklin J. Schaffner , 1978) , O expresso da meia noite (Alan Parker, 1978), Alcatraz – fuga impossível (Don Siegel, 1979), Um sonho de liberdade (Frank Darabont, 1994) e a série Prision break (2005-2009).

No Brasil, quando se procura retratar o sistema judiciário é o lócus da prisão que prevalece, em filmes que discutem diferentes períodos e faces desse poder. A “captura” do sistema no período do regime militar é tema de filmes como O beijo da Mulher Aranha (Hector Babenco, 1985) e Quase dois irmãos (Lúcia Murat, 2004). Os crimes contra os direitos humanos da população negra e periférica do país, por sua vez, é problematizado em Prisioneiro da grade de ferro (Paulo Sacramento, 2009), Sem pena (Eugenio Puppo, 2014) e muitos filmes que contam a história do genocídio do presidio de Carandiru, como o famoso longa-metragem Carandiru (Hector Babenco, 2003), e os documentários Deus e o diabo em cima da muralha (Tocha Alves e Daniel Lieff, 2006) e Entre a luz e sombra (Luciana Burlamaqui, 2009). A punição de jovens e adolescentes em instituições como a Fundação Casa (antiga Febem) é retratada em Pixote – a lei do mais fraco (Hector Babenco, 1980) e nos documentários de Maria Augusta Ramos Justiça (2004) e Juízo (2008). Já a punição de mulheres é tema dos filmes O cárcere e a rua (Liliana Sulzbach, 2004), Se eu não tivesse tanto amor (Geysa Chaves, 2009) e Bagatela (Clara Ramos, 2010).

Outros filmes apresentam a relação dos policiais com as populações periféricas, como vemos no documentário Notícias de uma guerra particular (João Moreira Salles e Kátia Lund, 1999) e na ficção Tropa de elite (José Padilha, 2007), sobre os enfrentamentos entre policiais militares e traficantes, e no recente documentário Morro dos prazeres (Maria Augusta Ramos, 2013) sobre a tensa dinâmica relacional entre os policiais destacados para as UPPS instaladas nos morros cariocas.

Dentro dessa perspectiva, é possível constatar que há uma enorme lacuna na representação audiovisual brasileira no que se refere ao  universo de punição judicial. Há um grande número de obras audiovisuais que oferecem um registro de uma extremidade desse sistema, retratado a partir da relação entre a população periférica e os policiais civis e militares, ou da outra, em histórias ambientadas na prisão. Ou seja, há registros da apreensão e do efeito de punição, mas não do processo judicial que julgou tais atos e aplicou a sentença.

Nas poucas vezes em que juízes ou julgamentos aparecem, como podemos observar nos documentários Bagatela, sobre condenações por crimes insignificantes, e em Juízo e Justiça, que registram sessões e sentenças da Vara da Infância e da Juventude, há um contraste muito grande entre a maneira como o processo é representado, em suas diferentes vertentes, de filmes e séries de tribunais norte-americanos: a figura do advogado está praticamente ausente e a interlocução entre juiz e réu (mulheres no caso de Bagatela e adolescentes nos casos de Juízo e Justiça) compõem cenas exasperantes na medida em que a sentença parece já ter sido dada há muito tempo, esvaziando todas as possíveis camadas de sentido que essa etapa do processo poderia vir a ter.

Esse esvaziamento, que pode ser aventado como uma hipótese para a ausência desse espaço no audiovisual brasileiro, dialoga com um relato de Serguei Einsenstein a respeito de um tratamento de roteiro adaptado do livro Uma tragédia americana (1925), de Theodore Dreisder, que foi negado pelos produtores. O diretor relata que foi indagado pelos produtores se Clyde Griffiths seria ou não culpado em seu roteiro, e, ao responder que ele não é culpado, ouve a seguinte objeção “mas então seu roteiro é um monstruoso desafio à sociedade norte-americana”, e relata: “Explicamos que considerávamos o crime cometido por Griffiths a soma total das relações sociais, cuja influência ele sofreu em todos os estágios de desenvolvimento de sua biografia e caráter, no decorrer do filme. Para nós, nisso residia, essencialmente, todo o interesse da obra”, e o produtor responde: “preferíamos um filme policial simples, compacto, sobre um assassinato” (Einsenstein, 2002: 98).

Paula Gomes é doutoranda do programa de pós-graduação em multimeios da Unicamp.

Referências

Einsenstein, S. A forma do filme. Rio de Janeiro: Zahar, 2002