As distrações de Darwin

Por Cláudio Guedes [imagem: cena do filme Charles Darwin – The devil’s chaplain?, direção de Eike Schmitz, 2008]

Vieram-me à mente duas experiências, ambas relativas a distrações no sentido de entretenimento, passatempo, divertimento: a primeira, fruto de uma reflexão que fiz após ler um texto autobiográfico de um grande homem da ciência e a segunda de uma experiência pessoal que tive ao conhecer um ilustre empresário nacional.

As distrações necessárias

O naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), talvez o maior cientista da história, escreveu a título de um relato sobre o desenvolvimento de sua mente e do seu caráter que quando deixou a escola “não estava acima ou abaixo da média para a sua idade” e que acreditava “que era considerado por todos os [seus] mestres e por [seu] pai como um menino bem comum, abaixo do padrão considerado normal para o intelecto”. Relatou ainda que para sua profunda mortificação, seu pai certa vez disse: “Você não se interessa por nada além de tiro ao alvo, cachorros e pegar ratos, e vai ser uma desgraça para você e sua família”.

O jovem Darwin, ao que tudo indica, apreciava mais as distrações do que as tarefas impostas pelo rígido sistema educacional inglês do século XIX. Tal comportamento se manteve mesmo quando ele passou do ensino médio à universidade, nos anos em que frequentou Edimburgo e Cambridge. “Durante os três anos que passei em Cambridge, meu tempo foi tão completamente desperdiçado, com relação aos estudos acadêmicos, quanto em Edimburgo e na escola”, relembra Darwin. Mas ao mesmo tempo esclarece aos leitores dos seus relatos autobiográficos como foi importante nos seus anos de formação o interesse em colecionar animais, em especial besouros, e as longas excursões pelo campo acompanhando naturalistas renomados com conhecimento em botânica, mineralogia e geologia.

Mesmo o evento mais importante da vida de Darwin, os cinco longos anos da circunavegação à bordo do Beagle (1831-1836), foram um misto de trabalho científico, lazer e distrações nas cidades do “novo mundo”, nas florestas tropicais, nos grandes desertos da Patagônia e nas andanças pelas costas selvagens das ilhas oceânicas.

Em 1842, com apenas 33 anos, Darwin praticamente se recolheu à vida científica caseira, sem viagens, excursões ou distrações. Enfermidades constantes obrigaram o seu recolhimento em Down House, a propriedade rural que adquiriu e onde morou até a sua morte. Uma casa familiar grande e muito confortável que hoje é um museu, localizada no vilarejo de Downe, a pouco mais de 20 km do centro de Londres. 

Trabalhando de forma incansável em cima dos dados e notas obtidos em suas viagens e estudos do período de 1831-1839, Darwin publicou vinte anos depois, em 1859, A origem das espécies, sobre a sua teoria da transmutação/evolução das espécies, uma das maiores contribuições da ciência à história da humanidade.

O que me chamou a atenção, sempre que li algo da biografia/autobiografia do naturalista inglês, foi a importância das distrações em todo seu período de formação, ou seja, os seus primeiros trinta anos de vida. Ainda que o interesse em insetos e botânica dos campos ingleses tenha sido “distração juvenil” que já prenunciava uma carreira científica, o interesse em cachorros, na caça e no tiro ao alvo eram de fato distrações que davam um colorido à vida de um jovem inglês de elite submetido aos rígidos padrões educacionais da época.

Acho que suas distrações foram um elemento essencial no desenvolvimento da sua mente. Distrações que não deixavam de ser uma “espécie” de rebeldia juvenil que, tão fortemente arraigada no seu caráter, lhe forneceu a couraça essencial para enfrentar os críticos ácidos, e muitas vezes grosseiros, quando da publicação do seu trabalho revolucionário sobre a evolução das espécies.

Estudar é preciso, distrações são necessárias. Sem elas a vida tende ao tédio e à normalidade, esta última tão apreciada como qualidade pelos conservadores de todos os matizes. E o tédio é porta aberta à depressão, doença terrível que suprime dos homens a capacidade de criar.

As distrações ausentes

Quando o conheci pessoalmente, no início dos anos 90 em um ambiente de negócios, ele já era um dos mais famosos empresários nacionais. Um empreendedor admirado pela sua capacidade de trabalho e por sua imensa fortuna.

Naquele primeiro encontro, o que me chamou a atenção foi uma afirmação que ele fez a uma plateia de não mais que nove profissionais da diretoria da empresa em que ele era o presidente do Conselho de Administração. Disse ele: nunca tirei férias na minha vida, não me permito distrações. Mesmo na minha lua-de-mel aproveitei a viagem para visitar usinas e fábricas no país visitado.

Claro que fiquei chocado. Apesar de ser um executivo à época muito jovem (36 anos), sempre tive claro que distrações, hobbies, lazer e viagens faziam parte do cardápio de formação de executivos e profissionais bem sucedidos em qualquer campo de atividade ou do conhecimento.

Apesar de não duvidar da veracidade de sua afirmação, ela me pareceu desde o primeiro momento bizarra. E me interessei por conhecer um pouco mais daquela personalidade marcante. Fui estudar sua trajetória empresarial, formação, criação de empresas e realizações. E descobri coisas boas e outras nem tanto. Tratava-se de um abnegado, de um líder respeitado mas não admirado pelos seus empregados de maneira geral, apenas pelos mais próximos diretores e gerentes das suas unidades industriais. Não havia contribuições relevantes à cultura e à educação nacionais de iniciativa do seu grupo empresarial. Na direção dos muitos negócios da sua família, apenas aos homens eram permitidas posições de liderança e comando. Entre seus herdeiros, filhos e netos, apenas os do sexo masculino assumiam cargos de diretoria nas empresas: nenhuma mulher.

Achei muito estranho. Uma visão atrasada sobre a responsabilidade social de um grande grupo empresarial e uma visão misógina arraigada?

Mas não foi só isso. Em determinado momento, seu grupo empresarial queria implantar uma usina hidrelétrica em uma das regiões menos desenvolvidas do estado de São de Paulo. Sabendo que eu era o diretor do setor da empresa que tinha forte presença na área, me chamou para uma conversa particular. Queria ouvir minha opinião sobre o assunto.

Fiz uma rápida explanação sobre a região, destacando sua geomorfologia complexa, seus múltiplos ecossistemas naturais e um espaço físico representando a maior área contínua de Mata Atlântica remanescente no país. Além disso, tinha uma ocupação humana que mesclava comunidades indígenas, antigos quilombos e população caiçara. Um conjunto de fatores que configurava a região como uma área bastante sensível para qualquer modalidade de uso e ocupação.

Disse-lhe que um projeto de UHE na área seria de difícil aprovação e que, talvez, a única maneira de fazê-lo seria demonstrando que a implantação do empreendimento geraria benefícios sociais às populações locais, ou seja, que estas iriam co-usufruir dos resultados econômicos da UHE. Para minha surpresa, ele não demonstrou empatia com a minha intervenção e, de forma muito sincera e direta, disse-me que já tinha providenciado a compra dos equipamentos da usina e deixou mais ou menos claro que no seu entendimento as questões sociais e ambientais eram de responsabilidade do estado e não da sua empresa. Disse-lhe que entendia o seu ponto de vista, mas que seria difícil viabilizar o empreendimento com aquela visão.

Nunca mais falamos sobre o assunto nem qualquer outro e alguns meses depois deixei a diretoria da empresa.

Anos depois, refletindo sobre a personalidade desse ícone do empresariado nacional, o que vi? Juntando todas as informações – um comportamento aparentemente misógino; uma visão conservadora com relação às responsabilidades cultural, social e ambiental de uma grande empresa; e uma visão racionalista extrema sobre o mundo do trabalho – vi um imenso vazio e um homem que desde a sua juventude não se permitia distrações.

E concluí, talvez sem muita base, talvez um tanto superficialmente, que na origem de tanto conservadorismo e incompreensão das muitas necessidades da vida humana havia um erro de raiz.

Trabalhar é preciso, distrações são necessárias.

Claudio Guedes, 66 anos, bacharel em Física e mestre em ciências (Geofísica) pela Universidade Federal da Bahia, foi professor universitário e trabalhou no Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE-SP) e na Companhia Energética de São Paulo (CESP). Foi presidente do Comitê de Distribuição/Associação Brasileira das Empresas de Distribuição de Energia Elétrica. É consultor em planejamento energético e empresário no setor de combustíveis para aviação.

* As citações de Charles Darwin são do texto “Memórias do desenvolvimento de minha mente e meu caráter”, no livro “Entendendo Darwin”, Editora Planeta, São Paulo, SP, 2009.