Bombardeio de desinformação: a estratégia fora do campo de batalha

Por Nicole De March

A manipulação e a fabricação de conteúdo sempre estiveram presentes em conflitos ao longo da história. O termo “dezinformatsiya” (desinformação em russo) foi cunhado por Stalin na Guerra Fria, já que esta era uma das principais estratégias da inteligência soviética.

Segundo Bernardo Wahl, docente de Segurança Internacional na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e mestre em relações internacionais, a desinformação militar acontece especialmente quando as informações falsas são fornecidas por um governo ou seu agente a uma potência estrangeira ou à mídia, objetivando vencer por meio da influência das políticas ou opiniões daqueles que as recebem.

Mariana Kalil, professora da Escola Superior de Guerra do Ministério da Defesa e doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília, discorre sobre os eventos históricos em que essa estratégia foi observada. Um exemplo é a Guerra de Cuba, em 1898, em que o jornalista norte-americano Joseph Pulitzer publicou um factoide que fez com que os Estados Unidos entrassem em guerra contra a Espanha pela liberdade da ilha caribenha. Segundo Kalil, também vale a lembrança de que o estopim da Segunda Guerra Mundial, em 1939, teria sido a operação Himmler, uma série de campanhas de desinformação orquestradas entre a imprensa alemã e o regime nazista.

Já na Guerra do Vietnã (1959-1975), a desinformação iniciou o conflito com o incidente do Golfo de Tonkin, no qual a justificativa de envolvimento dos Estados Unidos foi um segundo ataque norte-vietnamita – que nunca aconteceu. Além disso, outro tipo de desinformação também levou ao fim da guerra. ‘‘Havia uma visão, que depois se provou ser falsa, de que os EUA perderam em decorrência de uma campanha de desinformação do Vietnã do Norte, o qual se aproveitou da liberdade de imprensa ocidental e a utilizou como uma espécie de quinta coluna ativa, bombardeando a opinião pública doméstica dos EUA com propaganda até que os norte-americanos, cansados pelo foco da mídia em sangue e carnificina, pararam de apoiar a guerra’’, comenta Wahl.

Há ainda também o fato de que o início da Guerra do Iraque (2003-2011) se deu pela informação falsa criada pelos Estados Unidos sobre a presença armas de destruição em massa no país governado por Saddam Hussein.

Mídia e apoio popular

Em 1832, o militar prussiano Carl Von Clausewitz escreveu que para o sucesso da questão ‘‘as paixões que devem inflamar-se na guerra já devem ser inerentes ao povo”. Assim, um dos principais objetivos das falsas narrativas é garantir o apoio popular – que pode influenciar tanto o começo quanto o fim de um conflito.

O século XX foi permeado por batalhas travadas com atuação concomitante da mídia e da desinformação. Com a Guerra do Vietnã, os militares começaram a controlar a imprensa com o intuito de garantir coberturas positivas dos conflitos, uma vez que ficou evidente o poder das narrativas. ‘‘A convicção de que a cobertura da mídia havia perdido a guerra no Vietnã gerou uma hostilidade à imprensa nos meios militares. Em resposta, nos conflitos que se seguiram, os militares e os políticos decidiram encurralar a mídia, controlar o fluxo de informações e, assim, moldar a mensagem’’, afirma Wahl.

A extensiva cobertura 24 horas de muitos eventos como a Queda do Muro de Berlim e o Massacre da Praça da Paz Celestial, ambos em 1989, trouxe imagens e formou opiniões na consciência política popular.

O viés da cobertura midiática passa a ter grande impacto nas crises humanitárias e nas ações dos formuladores de política externa. Mariana Kalil explica sobre a lógica chamada de efeito CNN, que seria o poder dos conglomerados de mídia em mobilizar a audiência a apoiar uma guerra, uma intervenção militar, e o efeito ‘‘body bag’’ (‘‘caixão’’), que seria como a cobertura da morte dos soldados, de seus caixões, impacta a opinião do público.  Há, em geral, redução do apoio com o aumento das mortes e dessas imagens. A pesquisadora conclui que há forte relação entre o tipo de cobertura feita pelos conglomerados de mídia e as decisões políticas tomadas. ‘‘Temos, ao longo da história, vários pontos de todos os aspectos políticos ideológicos. Uma sinergia grande entre a grande imprensa e os interesses políticos’’, expõe Kalil.

Os novos artifícios no conflito Rússia-Ucrânia

No conflito Rússia-Ucrânia observa-se essa consonância dos conglomerados midiáticos com os interesses políticos, e também a presença de outros meios de propagação de desinformação. ‘‘O que é diferente hoje é a velocidade e o alcance global que essa desordem de informação pode atingir, juntamente com a escala, complexidade e abundância de comunicação”, diz Wahl.

‘‘Além da imprensa há também Alphabet (Google e Youtube), Amazon, Apple, Meta (Facebook, Instagram e Whatsapp). Os quatro grandes da big tech envolvidos no algoritmo que vai passar as informações – e que tipo de informação será passada – para a sociedade. Há ainda o banimento de diversos canais de informação – e de desinformação – russos. Temos um viés muito claro dentro dessas big techs e na grande mídia ocidental que cobre o conflito’’, aponta Kalil.

A guerra Rússia-Ucrânia vai além de uma guerra com estratégia militar convencional, o conflito envolve uma articulação informacional. ‘‘A noção de guerra híbrida, que seria a ligação de todos os tipos de guerra: nuclear, convencional, irregular e cibernética. Todas ligadas entre si por um aspecto da guerra informacional’’, conclui Kalil.

Nicole De March é mestre e doutora em Física (UFRGS). Pós-doutoranda do LABTTS (DPCT-IG/Unicamp) e membro do Grupo de Estudos de Desinformação em Redes Sociais (EDReS)