Ciência cidadã para além da coleta de dados

Por Blande Viana e Caren Queiroz

Nas áreas das ciências naturais e conservação, quando se ouve falar em “ciência cidadã” o termo é imediatamente associado à participação do público em projetos de pesquisa como coletores de dados e/ou registros de espécies. No entanto, esse termo contém uma variedade de outros significados que vão além da participação pública em programas de monitoramento da biodiversidade, cuja aplicação dependerá da disciplina, do contexto geopolítico e dos objetivos dos projetos de ciência cidadã (CC) em questão.

A pluralidade de significados atribuídos à CC deve-se à sua origem. O termo foi criado nos anos 1990, quase simultaneamente, por Alan Irwin, na Inglaterra, e Rick Booney, nos EUA, para designar diferentes aspectos do envolvimento do público com a ciência. Alan Irwin usou o termo para falar sobre  uma “ciência democrática”, desenvolvida e aprovada pelos próprios cidadãos, e enfatizar a responsabilidade da ciência para com a sociedade; já Rick Bonney o utilizou para descrever projetos em que o público se envolve ativamente na investigação científica e na conservação ambiental, “ciência participativa”.

Atualmente, há uma gama de iniciativas intermediárias postas entre essas duas visões, as quais foram incluídas dentro de um conceito mais amplo da ciência cidadã, que vão desde a participação na coleta de dados ao engajamento público com a ciência e seu impacto nas políticas públicas e na tomada de decisão. O que todas elas têm em comum é o fato de estarem situadas no campo científico e de terem como premissa o envolvimento de cidadãos não profissionais da ciência nesse campo, quer seja diretamente, em alguma etapa da produção do conhecimento científico, ou no processo de democratização do acesso a esse conhecimento. Porém, dentre essas iniciativas não estão incluídos os projetos em que o cidadão é apenas o objeto da pesquisa, a exemplo da pesquisa-ação, pesquisa participativa e similares, nem aqueles em que os cidadãos são contratados para coletar dados, ou outro tipo de prestação de serviço, a exemplo de alguns “crowdsourcing”, e projetos que usam dados de cidadãos, como amostras biológicas, dentre outras informações.

Se fossemos considerar o termo ciência cidadã  para designar apenas projeto de “ciência participativa”, nos quais há envolvimento do público em alguma fase, ou em todas, da investigação científica, também iremos nos deparar com uma enorme variedade de projetos, em diferentes escalas espaço-temporais, de curta ou longa duração, locais ou globais, e com diferentes níveis de envolvimento do público que vão desde a participação na coleta de dados – nesse sentido o público pode participar contribuindo ou colaborando com cientistas em diferentes etapas da investigação – a projetos co-criados, a partir de um problema socioambiental proposto pelos cientistas ou demandado pela sociedade, sendo que esses últimos aproximam-se bastante das abordagens transdisciplinares de produção de conhecimentos, o que faz com que a CC não seja vista apenas como uma ferramenta, mas também como uma abordagem de pesquisa.

É inegável o potencial da CC na produção de dados em largas escalas sobre a biodiversidade, podendo ser usada como uma ferramenta eficiente no preenchimento da lacuna de informações sobre a biodiversidade global, particularmente nas regiões tropicais. É estimado que 63% dos indicadores que informam decisões globais possam ser subsidiados com dados oriundos de projetos de ciência cidadã. A Plataforma Intergovernamental para Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) apontou que a lacuna de dados sobre a interação entre plantas e polinizadores é um problema que impede o levantamento de evidências sobre o status da polinização em países tropicais, como o Brasil. Em nível nacional, essa lacuna não nos permite, por exemplo, informar como os agrotóxicos estão afetando as populações de polinizadores no campo, animais cuja presença é fundamental para garantia da produção de alimentos. Para preencher essa lacuna, várias iniciativas e plataformas digitais para monitoramento participativo  dos polinizadores e da polinização já estão em curso em muitos países, como Reino Unido, França, EUA. No Brasil, uma plataforma digital semelhante as acima mencionadas foi criada recentemente para abrir esses projetos de monitoramento da interação planta-visitante.

Mas o potencial da CC vai muito além disso. O seu papel no letramento científico dos cidadãos, no desenvolvimento de estratégias bidirecionais de comunicação e divulgação científica, em subsidiar a formulação de políticas públicas e  tomadas de decisão e no engajamento público com a ciência é também amplamente reconhecido. Mais recentemente, autores têm advogado que a integração desses potenciais da CC, de aumentar a produção de conhecimento e de preencher lacunas entre a ciência e a sociedade, pode permitir que a CC apoie transições de sustentabilidade em áreas complexas como energia renovável, saúde pública ou conservação ambiental. Vale ressaltar ainda que esses aspectos da CC coadunam com as abordagens mais atuais da biologia da conservação as quais advogam que as estratégias de pesquisa integradas, i.e. entre diferentes disciplinas, entre “ciência e sociedade” e humanidade-natureza, são uma forma mais promissora de apontar e incentivar sociedades mais sustentáveis. Isso significa que o registro e proteção das espécies e ecossistemas é fundamental para a conservação, mas a defesa exclusiva desse aspecto em detrimento da formação científica e crítica dos cidadãos sobre a biodiversidade é insuficiente.

Dada as considerações acima, em tempos de negacionismo científico investir em ciência cidadã é estratégico para combater a desinformação e aumentar a confiança pública na ciência, pois ao integrar cidadãos no processo de produção do conhecimento de base científica, colocando-os em contato com a natureza da ciência e revelando como a ciência pode afetar suas vidas, a CC estará contribuindo para o despertar  do pensamento crítico. 

No Brasil, esse investimento é ainda mais necessário, como revelam os resultados da pesquisa sobre percepção pública da ciência e tecnologia, realizada pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), em parceria com Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT) e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) , que mostrou que embora a atitude dos brasileiros sobre a ciência seja positiva, com 66% declarando querer aumentos e 24% manter os investimentos em pesquisa, considerou-se preocupante a desinformação sobre determinados temas relacionados à saúde pública como, por exemplo,  o uso de antibióticos. Considerando que o uso excessivo e inadequado é a principal causa de resistência antimicrobiana no mundo, 73% dos respondentes da pesquisa acreditam que os antibióticos matam vírus.

De modo geral, os pesquisadores brasileiros têm uma atitude favorável em relação à CC. Resultados de um estudo recente realizado com cientistas latinos americanos que atuam na  área de biodiversidade revelou que esses reconhecem os potenciais da CC tanto para produzir dados científicos úteis para avaliação do status da biodiversidade como na construção da cidadania científica, porém, uma porcentagem mínima desses cientistas participam ou coordenam projetos dessa natureza.

Para  inserir a CC na agenda científica brasileira, algumas barreiras ainda precisam ser superadas, como falta de financiamentos para os projetos; disponibilidade ainda incipiente de plataformas digitais integradas para abrigarem e apoiarem os projetos brasileiros; necessidade de capacitação dos cientistas e dos participantes; falta de indicadores que  valorizem a atuação dos  cientistas para aproximar a ciência da sociedade; e falta de infraestrutura para pesquisas interdisciplinares e transdisciplinares nas instituições de pesquisa e de ensino superior.

Superadas essas barreiras a CC será um campo muito promissor tanto para o avanço da ciência brasileira quanto para o reconhecimento público da ciência, democratização do acesso desse conhecimento e seu uso nas tomadas de decisão.

Apesar de pouco conhecida no Brasil e das barreiras mencionadas acima, a CC é um campo com grande potencial de expansão no país. Hoje existem vários  projetos em andamento que possuem certa infraestrutura digital como aplicativos, websites e redes sociais que podem ser compartilhadas entre projetos com objetivos similares, a exemplo dos projetos Guardiões, para monitoramento da interação planta-visitante floral, que utilizam a plataforma e aplicativo  Guardiões da Biodiversidade, já mencionada nesse artigo, desenvolvida pelo Centro de Referência em Informação Ambiental, Cria, para armazenar os dados coletados pelos voluntários. Isso desonera projetos novos e evita que os dados fiquem dispersos em diferentes repositórios.

Outra iniciativa em curso é a criação da Rede Brasileira de Ciência Cidadã, que está sendo proposta por praticantes e estudiosos brasileiros com intuito de reunir ideias e experiências, a fim de elaborar diretrizes cientificamente embasadas e socialmente relevantes para consolidar a CC no Brasil. Tendo em vista que esse é um campo crescente no país, temos a oportunidade de iniciar o debate sobre o tema de maneira que a CC seja compreendida como uma abordagem que integra o levantamento de informações sobre a biodiversidade e que ao mesmo tempo deve contribuir para a educação científica crítica de todos os envolvidos.

Blandina Felipe Viana é professora da UFBA, vice coordenadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Estudos Inter e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução (INCT IN-TREE), co-fundadora do projeto Guardiões da Chapada (@guardioesdachapada) e membro da Rede Kunhã Asé de Mulheres nas Ciências (@kunhaase).

Caren Queiroz é doutoranda em ecologia pela UFBA, co-fundadora do projeto Guardiões da Chapada (@guardioesdachapada) e da Rede Kunhã Asé de Mulheres nas Ciências (@kunhaase).