Coisa de menina?

Por Leonardo Fernandes, Sophia La Banca de Oliveira e Graciele Oliveira

O senso comum associa as roupas como algo “naturalmente” feminino, mas essa separação entre gêneros na moda só surgiu após a Revolução Industrial. Descubra como os avanços tecnológicos moldaram a nossa sexualidade ao longo da história.

Quando o assunto era estilo no Brasil colônia, não tinha ninguém mais extravagante do que os homens. Em uma sociedade dividida pela escravidão, as roupas também eram uma importante forma de distinção de classe e os brasileiros endinheirados não poupavam no guarda-roupa pra se destacar do resto da multidão. Nas Minas Gerais do período setecentista, por exemplo, o gosto pelo luxo contagiou as elites locais, estimuladas pelo ciclo da mineração. Os donos de lavras, os grandes proprietários de terra, os traficantes de escravos, os altos funcionários da administração pública, os membros da igreja e os militares de alta patente demonstravam seu prestígio ostentando joias de ouro e prata, tecidos finos importados e rendas bordadas.

Na época, o ideal de moda era o que se usava nas cortes europeias – ter a aparência de um nobre era tão importante quanto um título oficial. O figurino abusava das cores, sem medo de exagerar na combinação de estampas. Afinal, os processos de tingimento de tecidos eram caros e a importação do produto regulada pela Coroa por meio de um decreto de 1785, que proibia as manufaturas de panos finos no Brasil para favorecer o comércio com Portugal.  A historiadora Joana Moteleone reuniu em sua tese de doutorado O circuito das roupas: A corte, o consumo e a moda (Rio de Janeiro, 1840-1889) alguns dos inventários do final do século XVIII, como o do advogado e fazendeiro Claudio Manuel da Costa, um dos articuladores da Inconfidência Mineira, que reunia peças berrantes como casaca de veludo cereja, véstia de cetim cor-de-rosa com bordado de ouro e calção de cambraia verde.

As mulheres eram tão vaidosas quanto os homens da alta sociedade, mas eram obrigadas a manter sua sexualidade em segredo. Segundo a pesquisadora Márcia Pinna Raspanti, coautora do livro História dos Homens, as moças e as senhoras brasileiras raramente podiam sair de casa – apenas em ocasiões especiais como festas religiosas, por exemplo – e era indispensável que estivessem acompanhadas de algum parente do sexo masculino, como o pai, o irmão ou o marido. Mesmo sob o olhar vigilante da família, as damas tinham o costume de esconder a silhueta com capas ou até mesmo cobriam o rosto por inteiro com mantilhas de renda. Embaixo do recato de todo esse pano preto, elas usavam vestidos coloridos carregados nos bordados de flores, barrados e seda com rendas.

Na segunda metade do século XIX, as mudanças técnicas trazidas pela Revolução Industrial também provocaram uma transformação no comportamento. A partir da mecanização da indústria têxtil, a produção que antes era artesanal e demandava tempo, passou a ser confeccionada e distribuída em massa. É aí que surge o mercado como conhecemos hoje com a crescente abundância de tecidos, as mudanças constantes de peças de vestuário e o surgimento de revistas especializadas. Com a padronização do mercado, houve uma padronização do gênero. Ou seja, foram estabelecidas duas formas bem distintas de se vestir: um para homens e outro para mulheres.

“As mudanças sociais ocorridas após a Revolução Francesa trouxeram à tona a substituição do ideal de vida aristocrático pelo modelo de comportamento burguês, com o advento de uma sociedade urbana. Além disso, com as mudanças sociais trazidas pela Revolução Industrial, o homem das novas classes médias estava envolvido com a indústria e o comércio. A roupa masculina foi simplificada permitindo ao homem uma vida pública, fora de casa, enquanto que a mulher burguesa é cada vez mais objetificada – ela passou a representar a riqueza de seu marido, deixando claro seu papel de esposa e mãe. Assim temos a formação do casal: o homem trabalhador, racional e viril e a dona-de-casa carinhosa, feminina e sentimental”, define Camila Carmona Dias, professora e pesquisadora na área da moda no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS).

A Inglaterra, berço da Revolução Industrial, passou a ter influência na moda que se espalhava no mundo a partir das suas fábricas. O ideal vitoriano de beleza feminino ficou marcado pelo uso do espartilho, que tinha como função principal redesenhar a figura da mulher. Utilizado sob o vestido, a primeira roupa de baixo exclusivamente feminina servia para endireitar a postura, empurrando os ombros para trás. Para conseguir o máximo de contraste entre a cintura e a saia, a peça também apertava a barriga, tornando a vida cotidiana bastante difícil. Era difícil caminhar ou até mesmo respirar. Daí o clichê da dama frágil, que desmaia por qualquer susto.

Durante a Primeira Guerra Mundial, um número cada vez maior de mulheres ingressou no mercado de trabalho para substituir os homens enviados para os campos de batalha. Essas operárias não podiam ter seus movimentos restritos e o espartilho foi, finalmente, aposentado do visual. Uma mentalidade utilitarista passou a dominar o estilo no decorrer do século XX. Os vestidos longos e pesados não se adaptavam mais a uma mulher ativa, independente, que aprendera a se manter sem o homem a ampará-la. “Nos anos 1920 e 1930, Coco Chanel inovou a moda feminina prezando um vestir prático e confortável. Ela lançou a moda dos cabelos curtos, criou roupas que libertaram o corpo feminino como a calça comprida e o tailleur (conjuntinhos) com bolsos”, explica Camila.

Moda feita por mulheres, mas comandada pelos homens

Apesar dessa associação histórica entre o feminino e a moda, a hierarquização de gêneros na sociedade continua a beneficiar os homens: o trabalho das mulheres como costureiras na indústria têxtil sempre foi considerado menor em comparação a figura dos estilistas, designers e alfaiates, que carregavam o prestígio simbólico e material. Essa percepção está de acordo com o conceito da “escada rolante de vidro” cunhado pela socióloga Christine Williams em 1992. De acordo com ela, mesmo em áreas do mercado de trabalho considerada tipicamente femininas os homens apresentam uma vantagem e são rapidamente alçados às posições de poder.

Em 2015, a socióloga Alysson Stokes verificou que não apenas isso é verdade no mundo, mas também que os homens, especialmente os abertamente homossexuais, recebem muito mais atenção do público. Um exemplo disso é o prestigiado prêmio do Conselho de Estilistas de Moda da América, dos 127 prêmios distribuídos entre 1981 e 2013 apenas 29 foram recebidos por mulheres, enquanto homens abertamente homossexuais receberam 51. Para descrever esse fenômeno ela reinventou o termo de Williams chamando-o de “passarela de vidro”.

O estudo da moda como uma manifestação cultural também é afetado pela associação ao feminino. De acordo com a professora Laura Zambrini, da Universidade de Buenos Aires, apesar da ter sido estudada por alguns sociólogos, como Georg Simmel e Thorstein Veblen, o estudo acadêmico da moda é em grande parte negligenciado. “A academia por muito tempo deixou de lado a moda como um campo de produção de conhecimento. Há muitos preconceitos históricos em relação à legitimidade da moda como objeto de estudo digno. Sendo um campo historicamente feminizado, nas sociedades patriarcais a moda tem sido desvalorizada como tantas outras manifestações femininas”, afirma a socióloga.

Mas Zambrini também ressalta que essa associação ao feminino pode ser usada a favor das mulheres. “Acredito que a moda pode ser uma ótima ferramenta para a transformação social e para o combate à misoginia. Nesse sentido, embora a moda possa ser pensada como um espaço para a opressão do feminino, também devemos reconhecer que a moda permitiu que as mudanças sociais fossem expressas em torno dos usos do corpo feminino, como a minissaia até a liberação do espartilho, para citar dois exemplos concretos”, conclui.