Combate à desordem informacional na pandemia de covid-19

Por Luiz Carlos Dias

O negacionismo científico, movimento que afronta a ciência e coloca vidas em risco, adota estratégias de comunicação que espalham notícias falsas e deixam as pessoas com medo. Essas notícias falsas assassinas são cruéis, repugnantes, irresponsáveis, afetam a vida das pessoas, provocam incertezas e representam um enorme desserviço para a saúde pública. Nós precisamos combatê-las com firmeza. Precisaremos de investimento em alfabetização científica, alfabetização e letramento digital, além de cobrar uma atuação mais efetiva das plataformas sociais e mapear perfis de influenciadores digitais responsáveis por ampliar o alcance de conteúdo antivacinas e de dados falsos sobre doenças, sempre respeitando a liberdade de expressão, mas desde que não interfira na segurança de políticas públicas e não traga riscos para a coletividade. Nós também precisamos garantir que agentes públicos sejam responsabilizados pela propagação e legitimação de desinformação.

Eu sou um cientista brasileiro e coordeno o consórcio internacional Molecules Initiative for Neglected Diseases (MINDI)1 em colaboração com duas organizações sem fins lucrativos fantásticas, que estão salvando milhões de vidas de pessoas vulneráveis em países de baixa renda, a Medicines for Malaria Venture (MMV)2 e a Drugs for Neglected Diseases initiative (DNDi)3. Este projeto é a primeira parceria envolvendo a MMV e a DNDi na América Latina, dedicado à otimização de compostos líderes, uma etapa complexa e crucial no processo de descoberta de medicamentos. O objetivo é desenvolver novos fármacos para o tratamento de doenças parasitárias tropicais que afetam pessoas negligenciadas, como malária e Chagas. Nós buscamos fármacos que possam ser administrados por via oral, sejam altamente eficazes, tenham baixa toxicidade e sejam baratos e acessíveis. Com a MMV, como um desafio extra, estamos tentando desenvolver um tratamento em dose única para a malária.

Não me considero um divulgador científico, eu não me preparei para isso, não estudei, não fiz cursos com quem entende desta arte, eu não sou youtuber, nem influenciador digital, não tenho milhares de seguidores nas redes sociais. A pandemia chegou, a situação se impôs e meu envolvimento em inúmeras atividades de divulgação científica e esclarecimento da sociedade ocorreu de forma natural e espontânea. Eu me senti na obrigação de ajudar a esclarecer a sociedade, que estava sendo bombardeada por uma onda gigantesca de desinformação.4

Faço aqui uma reflexão, que talvez seja útil para cientistas e divulgadores de Ciência. Talvez. De certa forma, eu iniciei atividades na área de divulgação científica no início de 2016, após ter sido convocado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação (MCTI) para participar do grupo de trabalho que ajudou a elucidar a farsa da fosfoetanolamina, a pílula do câncer. Mais informações podem ser obtidas nos relatórios no site do antigo MCTI5-7 e nos podcasts recentes com minha participação.8,9 Essa participação me levou a conhecer alguns divulgadores de Ciência e Natália Pasternak, que em 2017 me convidou para organizar o festival de divulgação científica Pint of Science em Campinas. Logo no início da pandemia eu fui convidado a ingressar na equipe da Força-Tarefa da Unicamp no combate à Covid-19 e o querido colega Peter Schulz, então na SEC (Secretaria de Comunicação) da Unicamp, me convidou para escrever textos sobre a pandemia para o Jornal da Unicamp.10,11 Como cientista, fiquei indignado com o fato de a população brasileira ter sido tomada de assalto por tantas fake news nesta pandemia. Senti falta da presença de mais cientistas e de divulgadores científicos ajudando a esclarecer a população. Não me refiro a atividades de divulgação científica para nossas bolhas, para convertidos, mas de conversas com os vários setores organizados da sociedade. Penso que as atividades de divulgação científica vão ser cada vez mais importantes, mas eu percebi que da forma como a maior parte da divulgação científica é feita, não chega à parcela da população que realmente precisa. Parafraseando Milton Nascimento na música “Nos bailes da vida”, que é uma poesia, os cientistas e os divulgadores de ciência tem que ir aonde o povo está. Mas não estão indo ou, poucos vão. É preciso uma reflexão.

Durante a pandemia, eu participei de pouco mais de 500 atividades de divulgação científica e de esclarecimento da sociedade, envolvendo colunas para o Jornal da Unicamp11 e outras revistas de circulação nacional, entrevistas para inúmeros canais de TV, rádio e jornais de circulação nacional e local. Foram muitas entrevistas para emissoras de televisão como Rede Globo (Jornal Nacional, Jornal Hoje e Globo News, EPTV Campinas, TV Tribuna Santos-Globo, TV TEM Sorocaba), Rede TV, TVB Record Campinas, Canal Futura, TV Cultura, TV Band Mais Campinas, Record TV, TV Câmara Campinas, TV Câmara São José do Rio Preto, Thati Record TV, TV Alesp, RTV Unicamp, Caraguá TV e muitas outras. Mas o que eu considero mais importante, são as participações nas inúmeras lives, seminários, mesas-redondas com instituições públicas e privadas, assim como com prefeitos de cidades pequenas, com o Movimento Unidos pela vacina e com o Grupo Mulheres pelo Brasil, a convite de Luiza Helena Trajano, empresária que comanda a rede de lojas Magazine Luiza, com a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência, com o grupo Fator Humano, Jornal Momento Único, com Rotary Clube de algumas cidades, com professores e alunos da rede básica de ensino de escolas públicas municipais e da rede estadual de ensino de São Paulo, com professores, funcionários e alunos da Rede SESI, com o Movimento popular Vem Pra Rua Brasil, com o movimento popular Students for Liberty, com o Canal Consulta Pública, com líderes de segmentos organizados da sociedade, com o Ministério Público do Trabalho do Paraná, com a Associação dos docentes da Unicamp (Adunicamp), com o Centro Universitário da Fundação Hermínio Ometto/FHO, com beneficiários de plano de saúde da Igreja Adventista no Brasil, com depoimento para o evento de lançamento da frente parlamentar em defesa dos direitos das pessoas com doenças raras, com setores de grupos cristãos, evangélicos, com paramédicos, cientistas, pesquisadores, youtubers e influenciadores digitais. Fui convidado para duas campanhas publicitárias pró-vacinação contra a Covid-19 em virtude do Dia Mundial da Saúde e do Dia Nacional da Imunização, divulgadas nas redes sociais do Campinas Shopping. Eu também atuei como colaborador de agências de combate a fake news, como a Agência Lupa: Folha de S.Paulo, O Estadão Verifica, Brasil de Fato, France Presse, revista Veja-Saúde. Cerca de 420 dessas atividades, abordando os temas covid-19, fake news, desinformação, pseudociência, tratamento precoce, vacinas etc., estão listadas no site do CIBFar (um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fapesp), com os respectivos links.12 Essa experiência sem igual e inesperada me trouxe uma outra perspectiva sobre a importância de divulgação científica com impacto para a sociedade, não apenas para nossos pares.4

Importância das atividades de divulgação científica e esclarecimento da sociedade brasileira

O negacionismo científico, movimento que afronta a ciência e coloca vidas em risco, adota estratégias de comunicação que espalham notícias falsas, que deixam as pessoas com medo. Essas notícias falsas assassinas são cruéis, repugnantes, irresponsáveis, afetam a vida das pessoas, provocam incertezas e representam um enorme desserviço para a saúde pública. Nós precisamos combatê-las com firmeza.4 Há um enorme descompasso no combate à pandemia desde o início por parte do Governo Federal. Então, grupos com interesses políticos e religiosos e financeiros se aproveitam disso e o Brasil se tornou um terreno fértil para o crescimento das pseudociências, que defendem alternativas terapêuticas sem evidências científicas sólidas e robustas.

O processo de desacreditar a Ciência

O descrédito da Ciência interessa a todos aqueles que não acreditam nela, que atacam nossas instituições públicas promotoras de conhecimento e atacam os órgãos de imprensa disseminadores de informações baseadas em Ciência. Estamos vivendo um momento de intensa polarização política e politização da Ciência, em que nossas instituições epistêmicas são constantemente atacadas. Nessa crise sanitária da pandemia de covid-19, nós percebemos que aspectos políticos, não as questões importantes de saúde pública, viraram protagonistas. Os negacionistas vivem e se alimentam de fake news, relativizam a gravidade da crise sanitária, atacam a Ciência e os cientistas, combatem o distanciamento físico e o uso de máscaras, são contra as vacinas, defendem tratamentos sem eficácia e criam alternativas que oferecem falsas esperanças.14 São narrativas atreladas a agendas políticas, religiosas e a interesses financeiros de parceiros do mesmo espectro ideológico. Para defender a sua visão de mundo, em que a Ciência não faz parte, eles selecionam dados que servem à sua opinião particular, distorcem fatos e argumentos científicos. Esses grupos abusam de um elemento político sempre muito presente em disputas ideológicas binárias, resumindo a uma batalha entre direita e esquerda. Para espalhar as teorias delirantes que inventam, eles usam as redes sociais como vetores de transmissão, se aproveitando de declarações de políticos, que têm um peso enorme para inflamar essas redes através do uso de bots. Infelizmente, diversos atores reais como políticos de extrema direita, ex-atletas, pseudojornalistas, pseudocientistas e médicos que não seguem a Ciência, disseminam mentiras assassinas.

O negacionismo e sua influência na produção científica14

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), nós estamos vivenciando a existência de uma infodemia, um enorme surto de informações corretas, mas principalmente de notícias falsas ou de baixa qualidade contaminando o debate na área de saúde pública. Nós temos observado que os pseudocientistas reivindicam seu status científico para trazer argumentos de autoridade e defender suas narrativas negacionistas sobre a covid-19, criticando as medidas protetivas não farmacológicas, as vacinas e questionando a gravidade da pandemia. Hoje, há campanhas de desinformação sobre a covid-19, com distribuição maciça de conteúdos falsos que distorcem a linguagem da Ciência. Grupos de extrema direita publicam matérias enganosas, mentirosas, como se fossem reportagens jornalísticas, distorcendo o conteúdo de estudos científicos, usando artigos científicos de baixíssima qualidade, publicados em revistas predatórias, que publicam qualquer coisa ruim. Esses grupos manipulam dados preliminares publicados na forma de preprints, ainda sem revisão por pares, muitos deles que nem são aceitos após avaliação por pares e criam factoides para promover medicamentos sem eficácia contra a covid-19, como a ivermectina, a cloroquina e a hidroxicloroquina. Eles criam notícias falsas, supostamente baseadas em artigos muitas vezes falsos, compartilham nas redes sociais e seus seguidores ajudam a espalhar.

Têm um nível de organização e sofisticação que dificulta o combate efetivo às fake news, que são disseminadas por alguns políticos, por pseudojornalistas, por influenciadores digitais e ex-atletas, que estão atuando para promover ações de descrédito das instituições públicas que produzem conhecimento. Os pseudocientistas usam seus valores de autoridade científica, enquanto ex-atletas e jornalistas abusam do fato de serem figuras públicas para se apropriar de discursos científicos com o objetivo de propagar conteúdos falsos ou com uso enviesado de dados. A distribuição de conteúdo com desinformação está sendo fomentada também por interesses econômicos, seja de quem vende medicamentos genéricos do “kit covid” ou também da classe médica e de jornalistas, que lucram com a monetização de conteúdos sensacionalistas, prometendo curas milagrosas. Os negacionistas atacam as nossas instituições de produção de conhecimento, atacam a imprensa que não defende suas ideias obscurantistas e ofendem organizações internacionais que defendem a Ciência, como a OMS. O objetivo desses grupos é desacreditar a Ciência, afirmando que são alvos de teorias conspiratórias para criar consenso nos seus clãs. Questões geopolíticas também são importantes e para muitos deles existe um complô chinês e comunista que tem como objetivo, destruir o modo de vida ocidental e os valores cristãos e morais. E nós estamos aqui hoje lutando essa luta insana e desigual contra a desinformação.

Precisamos combater o crescente movimento antivacinas

O movimento antivacinas é considerado uma das 10 maiores ameaças à saúde global pela ONU e pela OMS. O movimento antivacinas nunca foi forte no Brasil, mas neste momento de polarização política, nós estamos observando um crescimento preocupante.11,15 Precisamos combater esse movimento, que pode atrapalhar não só a vacinação contra a covid-19, mas também a adesão da população às campanhas de vacinação contra outras doenças. Nós precisamos de maior contingente de pessoas determinadas para combater a disseminação de notícias falsas sobre vacinas, para lutar contra esse ato criminoso e irresponsável. Os negacionistas e adeptos do movimento antivacinas são muito organizados, têm muito financiamento de fortes grupos econômicos e estão ocupando um lugar no debate sobre saúde pública, que é nosso, não deles. Políticos, ex-atletas, jornalistas e líderes religiosos não podem decidir se medicamentos ou vacinas são bons ou não. As vacinas historicamente salvam milhões de vidas e mantêm doenças que matam ou incapacitam sob controle. As vacinas contra a covid-19 são o grande legado desta pandemia, uma resposta absolutamente extraordinária e maravilhosa da Ciência e hoje nós temos várias vacinas seguras e eficazes, que estão salvando milhões de vidas.

Nesse momento, nós precisamos de união para combater a maior campanha de desinformação da história, que está deixando a população confusa e desconfiada das vacinas contra a covid-19, o que pode levar a perdas irreparáveis em futuras campanhas de vacinação em massa, afetando a procura às principais vacinas de nosso calendário infantil. Nós já estamos observando queda na cobertura vacinal para algumas das principais vacinas para crianças, como o sarampo, e não podemos correr riscos de perder décadas de progresso no combate a doenças que podem ser prevenidas.

Combate às fake news e à desordem informacional13-15

Nós estamos tentando combater o vírus Sars-CoV-2, que causa a covid-19, que mata e deixa algumas sequelas irreversíveis, mas estamos também lutando contra o espalhamento do vírus do ódio, das fake news, que também mata e deixa sequelas terríveis. O Brasil é um ambiente propício para a disseminação de conteúdos com mentiras, teorias de conspiração e crenças infundadas, que obedecem a uma agenda política, financeira e/ou religiosa. Nesse momento em que vivemos um cabo de guerra entre Ciência e pseudociência, é preciso combater o crescimento das fake news. A pandemia aproximou a sociedade dos assuntos da Ciência, que se fortaleceu na pandemia – nunca vimos a Ciência ter tanto destaque nas mídias. Os cientistas de verdade estão ajudando a humanidade a enfrentar essa crise sanitária e a população saberá valorizar isso. Nós vamos precisar de Ciência para caminhar rumo a uma sociedade mais civilizada, mas mesmo com tanto espaço, nós cientistas ainda temos dificuldade para conversar com a população, para fazer chegar uma mensagem mais clara. E nós vamos precisar de cientistas, de divulgadores e jornalistas de Ciência para combater esse movimento anticiência muito forte crescendo no Brasil. A Ciência ficou mais popular, mas nós precisamos criar canais de interface com a sociedade, para que os cientistas e os jornalistas possam mostrar o conhecimento produzido nas universidades, transmitindo informações através de linguagem simples. Nós precisamos mostrar para a sociedade como a Ciência está salvando milhões de vidas nesta pandemia. O uso de máscaras, água e sabão, álcool-gel, distanciamento físico, cuidados básicos de UTI, posição prona, as vacinas, vigilância epidemiológica testando e isolando infectados e seus contatos imediatos, vigilância genômica, identificando e monitorando o surgimento de novas variantes de atenção, o compartilhamento de informações entre cientistas, colaboração entre as várias áreas; tudo isso é Ciência.

Precisamos derrotar o negacionismo com Ciência

A sociedade não está se informando através da Ciência de qualidade produzida em nossas instituições, mas através do que chega nos grupos de whatsapp ou outras mídias sociais. Para derrotar o negacionismo, nós precisamos pensar em alternativas de como conversar com a sociedade sobre as questões da Ciência. Parte da população se agarrou a essa bandeira política do negacionismo e não vai largar essa causa. Precisamos pensar em novas estratégias de comunicação com a sociedade desde a formação básica, fazendo ciência relevante do ponto de vista social, promovendo atividades lúdicas nas escolas, levando a ciência para fora dos muros das universidades, para os bairros e periferias. A população teve contato diário com Ciência, mas precisa entender que a Ciência não avança na velocidade que a sociedade quer e que a Ciência é que deve nos trazer respostas. Nesse contexto, crenças, palpites ou opiniões pessoais não podem ser mais importantes do que a Ciência. Os negacionistas defendem experiências pessoais e abusam de técnicas para manipular a opinião pública apelando para o lado emocional com o objetivo de criar impacto. Nós precisamos de atores lúcidos para construir caminhos e inspirar nossos jovens, com ética e transparência. O movimento obscurantista é contrário à razão e quer impedir que o conhecimento chegue à população. Temos que combater os terraplanistas, os que negam as mudanças climáticas, os que negam o aquecimento global e defendem o criacionismo, a homeopatia e o movimento antivacinas. Para o futuro, nós vamos ter que criar campanhas em massa contra a desinformação, espalhadas por vários veículos de mídia. Vamos precisar também que os veículos jornalísticos adotem ações concretas para evitar o compartilhamento de conteúdo com notícias falsas. Nós precisaremos de investimento em alfabetização científica, alfabetização e letramento digital, além de cobrar uma atuação mais efetiva das plataformas sociais e mapear perfis de influenciadores digitais responsáveis por ampliar o alcance de conteúdo antivacinas e de dados falsos sobre doenças, sempre respeitando a liberdade de expressão, mas desde que não interfira na segurança de políticas públicas e não traga riscos para a coletividade. Nós também precisamos garantir que agentes públicos sejam responsabilizados pela propagação e legitimação de desinformação. Uma estratégia muito importante para incentivar ações de divulgação científica por parte de nossos cientistas, será o reconhecimento da importância dessa atividade por nossas instituições de ensino e pesquisa e por nossas agências de fomento.

A Ciência é imprescindível para a sociedade

Nós cientistas buscamos compreender as leis naturais para entender e explicar o funcionamento das coisas e do universo em geral. Para isso, usamos o método científico, que contém regras para realizar experimentos, com o objetivo de produzir novos conhecimentos ou corrigir conhecimentos existentes. A Ciência é essencial para coibir a subjetividade através da produção de conhecimentos válidos, com comprovação científica sólida e é a nossa ferramenta mais poderosa contra o obscurantismo, o negacionismo, o charlatanismo, as pseudociências e a enganação. Nós temos que defender que a Ciência dê a resposta e não que opiniões pessoais, oportunismo político, desinformação científica e teorias conspiratórias atreladas a questões políticas, ideológicas e religiosas sejam mais importantes do que as evidências científicas. No contexto da pandemia de covid-19, a Ciência mostrou ser fundamental para a solução dessa crise sanitária sem precedentes. A sociedade está percebendo a importância em se valorizar as instituições públicas de ensino e pesquisa para o desenvolvimento do País, para a proteção e segurança do povo brasileiro e para a soberania nacional. A pandemia trouxe a Ciência para mais perto dos brasileiros, mas preocupa muito o futuro da Ciência no País. Infelizmente, hoje a Ciência brasileira tem o menor orçamento das últimas décadas e sofre continuamente as agressões de um governo que odeia a Ciência e os cientistas e despreza nossas universidades.

Cientistas e pesquisadores das instituições de ensino e pesquisa no País precisam ser mais ouvidos e apoiados para produzir novos conhecimentos nas mais diferentes áreas da Ciência, humanas, exatas e sociais. Nós também temos que conversar mais com a sociedade, mas mesmo na academia temos muitos colegas negacionistas, defensores de políticas públicas sem evidências, como os medicamentos do kit covid – não só médicos dos melhores hospitais, mas cientistas das nossas melhores universidades. Ensinar o método científico desde cedo para nossas crianças é fundamental, assim como princípios de ética e de cidadania.

O futuro da Ciência pede maior interação entre cientistas e sociedade

As estratégias de saúde pública não podem deixar de ser uma questão de Ciência para virar uma questão política, pois políticos não entendem de Ciência, não entendem de estudos clínicos padrão ouro, randomizados, duplo cegos, com grupo placebo. E nós precisamos sair para o embate contra os obscurantistas e impedir que esse criminoso movimento antivacinas e essa onda de negacionismo científico cresça ainda mais no Brasil. Nós vamos precisar entender as forças sociais, econômicas e políticas que estão por trás desse comportamento negacionista, para encontrar soluções, mas nós precisamos deixar claro para a população que a Ciência não tem lado político, não é uma questão de opinião pessoal. Neste momento, nós todos temos enorme responsabilidade e uma dívida com a sociedade, com a parcela mais pobre e vulnerável da população e combater as fake news é uma ação de consciência cívica. Nós precisamos conversar com a sociedade com o objetivo de enfrentar essa onda perversa anticiência e mostrar que a Ciência salva da escuridão, esclarecendo quem tem dúvidas sinceras e honestas e está aberto a confiar na Ciência,

Nós temos que ensinar o método científico para nossos estudantes da área de saúde, pois os futuros profissionais precisam entender que a Ciência é baseada em fatos e em evidências. É triste e decepcionante ver pessoas com uma carreira acadêmica consolidada defendendo pontos de vista que vão contra a Ciência. Nós queremos furar a bolha, mas estamos longe disso, porque mesmo parte da classe científica defende o kit precoce e é contra as vacinas. Tudo por questões ideológicas e para defender um projeto de governo. Nós temos que assumir essa falha de comunicação com a sociedade e com a educação.

Importância de divulgação científica de qualidade

Nós estamos vendo pseudocientistas e médicos desinformados e que não seguem a Ciência, assim como parte da mídia, fomentando o envio de informações falsas e distorcendo fatos. Esses discursos falsos e repletos de ódio se espalham com enorme capilaridade, visto que esse vírus da desinformação é transmitido através dos aplicativos de redes sociais. Os áudios e vídeos dos defensores de tratamentos sem eficácia, dos negacionistas científicos e dos adeptos do movimento antivacinas estão repletos de técnicas para manipular a opinião pública. Eles usam pessoas com um tom de voz sereno, um sorriso meigo, usam jaleco branco e se valem de diplomas de doutor, como forma de dar credibilidade e respeitabilidade às mentiras que criam. Mas eles são cruéis demais e cada palavra, cada gesto, olhar e sorriso é colocado para criar um impacto e enganar as pessoas. Nós vamos precisar de bons cientistas, de bons divulgadores de Ciência e de bons jornalistas para combater esse movimento anticiência muito forte crescendo no Brasil. A população precisa se identificar com os cientistas, pois o futuro da Ciência vai depender de cientistas que saibam se comunicar com o público.

Como toda essa politização está minando a ética universitária, é fundamental o papel de jornalistas de Ciência e de divulgadores científicos e nós precisamos desses profissionais nas mídias de massa. A falta de informação, os recortes enviesados de parte da mídia, uma mentalidade mais fechada ou mesmo uma postura negacionista das pessoas sobre a Ciência são fatores associados aos problemas de percepção da Ciência pelo público. A percepção pública sobre os benefícios de Ciência e Tecnologia não é uma unanimidade e jornalismo científico malfeito pode piorar esse quadro com reportagens sensacionalistas ou com algum tipo de viés. O jornalismo científico de qualidade é fundamental para divulgar Ciência e tecnologia, contribuir para a construção de uma visão mais crítica da sociedade sobre a Ciência e é uma das melhores estratégias de conexão entre o meio científico e a sociedade. As pessoas não podem negar a Ciência apenas para defender suas convicções pessoais ou os seus interesses políticos e religiosos. Ciência não é questão de opinião e nem de achismos. Nós também precisamos encontrar uma forma de agir junto aos políticos, na Câmara dos Deputados, no Senado, mas nós não temos parlamentares atentos a pautas científicas. Isto é artigo em falta no País. Então, nós, cientistas, temos uma obrigação moral, temos que ir para o embate, ou os negacionistas vão tomar conta dos espaços. E eles fazem isso muito bem.

Perspectivas para Ciência e Tecnologia no Brasil

O artigo 218 da Constituição Brasileira prevê que “o Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação”. Mas não, o Estado brasileiro não está fazendo isso. A Capes, o CNPq, as nossas instituições públicas de ensino e pesquisa vêm sendo desmontadas dia a dia no Brasil e nós não podemos tolerar isso. Produzir Ciência no Brasil é uma questão de resistência e os cientistas e as cientistas são sobreviventes. São enormes os desafios, principalmente em nossas instituições públicas de ensino, pesquisa e extensão. A Ciência brasileira vem sofrendo com cortes no financiamento das atividades de pesquisas, nas bolsas de estudos para os nossos alunos e na infraestrutura física e de equipamentos. A universidade pública nunca foi tão atacada e nossos cientistas nunca foram tão perseguidos como no atual momento.16,17 O atual governo federal não tem interesse em apoiar atividades de Ciência em nenhuma das áreas – exatas, humanas e sociais. A população brasileira está percebendo o grande valor de nossas universidades e precisa entender que para enfrentarmos futuras crises sanitárias será preciso realizar investimentos de longo prazo na formação de recursos humanos qualificados. Só assim nós vamos formar uma nova geração de cientistas para lutar contra problemas complexos. A Educação e a Ciência no Brasil precisam ser uma política de Estado, de financiamento contínuo de longo prazo, pois um país precisa de tempo para construir capacidade e experiência em pesquisas científicas, para que possa estar preparado para enfrentar problemas e desafios. Infelizmente, a Ciência brasileira sofre com cortes orçamentários, perseguições e a instrumentalização para fins eleitorais no atual governo e hoje nós não temos a Ciência nem como plano de governo. A universidade pública e o investimento na educação são fundamentais para o desenvolvimento do Brasil e nós precisamos lutar pela valorização de nossas instituições públicas, defendendo a autonomia das universidades. Será necessário um envolvimento maior de nossos cientistas de modo a manter a mobilização e trabalhar de maneira integrada, pois nós percebemos que trabalhos em parceria alcançam maior impacto.

O artigo publicado, o destaque como capa de periódicos serve para nossos egos, mas a Covid-19 está mostrando que nós precisamos repensar nosso modelo de produção de conhecimento e de avaliação. Nós precisamos estimular os cientistas a produzirem conhecimento em benefício da sociedade, fundamental para o enfrentamento das futuras crises de saúde pública. Nós precisamos de Ciência básica, mas precisamos da união de competências para resolver problemas reais. O País precisa transformar a Ciência de qualidade produzida aqui em ações concretas para que possamos estar preparados para enfrentar futuros desafios na área de saúde pública. O Brasil precisa de um sistema de financiamento estável e contínuo, para que possamos formar novas gerações de pesquisadores e a universidade pública brasileira precisa de estabilidade para poder planejar suas ações, avançar na construção do conhecimento e criar capacidade futura para enfrentar situações como esta.

Luiz Carlos Dias é professor titular da Unicamp, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo, Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico e membro da força-tarefa da Unicamp no combate à covid-19.

Referências

  1. Molecules Initiative for Neglected Diseases Consortium (MINDI), https://mindi.iqm.unicamp.br/
  2. Medicines for Malaria Venture, www.mmv.org
  3. Drugs for Neglected Diseases initiative, www.dndi.org
  4. Luiz Felipe Stevanim, “Só a Ciência salva do obscurantismo. A luta de um cientista contra a pseudociência em tempos de pandemia”, https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/home/entrevista/so-a-ciencia-salva-do-obscurantismo, 08/04/2021
  5. Relatórios disponibilizados pelos laboratórios participantes para esclarecer a segurança e eficácia da fosfoetanolamina, https://antigo.mctic.gov.br/mctic/opencms/ciencia/SEPED/Saude/fosfoetanolamina/texto_geral/relatorios_fosfoetanolamina.html
  6. Relatório com resumo executivo sobre os componentes químicos das amostras de fosfoetanolamina produzida pelo Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo, https://antigo.mctic.gov.br/mctic/export/sites/institucional/ciencia/SEPED/Saude/fosfoetanolamina/arquivos/Relatorio-Executivo_FOSFOETANOLAMINA_09_03_2016.pdf
  7. Relatório completo sobre os componentes químicos das amostras de fosfoetanolamina produzida pelo Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo, https://antigo.mctic.gov.br/mctic/export/sites/institucional/ciencia/SEPED/Saude/fosfoetanolamina/arquivos/Relatorio-Completo-de-Sintese-e-Caracterizacao.pdf
  8. Moléculas, um podcast sobre química, EP.36: Fosfoetanolamina (com o Prof. Luiz Carlos Dias), http://www.ladmolqm.com.br/moleculas/?p=161, 01/04/2021
  9. A farsa da pílula do câncer, Podcast Ciência Suja, Episódio 1, https://open.spotify.com/episode/4PwmxgVc3WhDv2PUhOzt6s?si=NAHLpDgjTd66TfqSX618Xg&dl_branch=1, 19/08/2021
  10. Força-Tarefa Unicamp contra a Covid-19, http://www.ftcovid19.unicamp.br/
  11. Jornal da Unicamp, https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos
  12. Link atividades de divulgação científica LCD:
    (a) https://cibfar.ifsc.usp.br/professor-da-unicamp-e-um-dos-pesquisadores-do-cibfar/
    (b) https://cibfar.ifsc.usp.br/wp-content/uploads/2021/10/LuizCDias.pdf
  13. Ricardo Machado, “O texto além do texto. Anna Bentes, pesquisadora da área de linguística, analisa a natureza complexa da produção textual das fake News”, IHU On-Line, http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/7249-o-texto-alem-do-texto
  14. Francisco Caruso, Antonio José Marques, “Ensaio sobre o negacionismo científico em tempos de pandemia”, Research, Society and Development, v. 10, n.11, e82101119538, 2021, https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/19538/17290
  15. Peter Schulz, “Do antivacinismo aos sistemas bisonhos”, https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/do-antivacinismo-aos-sistemas-bisonhos, 18/12/2020
  16. Peter Schulz, “Quais ideias de universidade a pandemia recuperará”, https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/universidade-ideias-e-praticas/quais-ideias-de-universidade-pandemia-recuperara, 31/03/2021
  17. Roberto Romano da Silva, “Scientia vinces”, https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/roberto-romano/scientia-vinces, 01/03/2021

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