Confio, logo compartilho

Por Alexandre Brasil Fonseca

Na relação entre fornecedor e consumidor, em muitas vezes o consumidor é intencionalmente desinformado. É inerente a essa relação uma situação de vulnerabilidade, e daí que se tem a necessidade de uma “defesa do consumidor”, já que este é o elo mais fraco por, exatamente, não ter acesso a todas as informações dos produtos, seja por ser informado parcialmente ou erroneamente. O relatório Caminhos da Desinformação reúne reflexões de pesquisa quantitativa que foi realizada no contexto desse primeiro esforço que tivemos em pensar a desinformação no Brasil a partir de um recorte religioso. A escolha pelo tema da religião teve relação com dois fatores. Primeiro a indicação de reportagens de que sites e influencers religiosos seriam destacados disseminadores de fake news. Um outro elemento que nos fez considerar esse segmento foi a compreensão de que um dos elementos mais importantes para a disseminação da desinformação é a sua circulação a partir de grupos orgânicos, fundamentados em relações pessoais e de confiança. Entre esses grupos destacam-se grupos ligados a comunidades religiosas e de fé.

O estudo da desinformação ou das fake news tem várias entradas possíveis. A primeira e sempre necessária é a que considera de que forma a circulação de notícias falsas interessa ao modelo de negócio adotado por empresas de tecnologia, as quais figuram entre as companhias com maior valor de mercado no mundo atualmente. Isso não é um detalhe ou algo menor, é uma parte bem importante e relevante desse problema. Já tive a oportunidade de falar um pouco sobre essa relação neste mesmo espaço em um artigo em que comento sobre a importância de prenunciar a desinformação.

A desinformação é algo que movimenta boa parte da economia e está presente, por exemplo, ao pensarmos em questões relacionadas aos direitos do consumidor. Vejo nisso um bom exemplo do quanto essa questão tem um significativo peso econômico e como possui uma importante espaço em nossa sociedade capitalista há vários anos. Na relação entre fornecedor e consumidor, em muitas vezes o consumidor é intencionalmente desinformado. É inerente a essa relação uma situação de vulnerabilidade, e daí que se tem a necessidade de uma “defesa do consumidor”, já que este é o elo mais fraco por, exatamente, não ter acesso a todas as informações dos produtos, seja por ser informado parcialmente ou erroneamente. O consumidor se encontra, geralmente, em uma situação de vulnerabilidade nessa relação, sendo em muitas situações desinformado pelos fornecedores.

O que vivenciamos hoje, facilitado por dispositivos de tecnologia e comunicação mais acessíveis, é um aprofundamento da presença, velocidade e importância da circulação de notícias falsas ou fraudulentas em várias esferas da sociedade. A desinformação é um desafio para as sociedades contemporâneas. Comissões parlamentares e processos judiciais têm ocorrido em todo o mundo. Uma série de debates são realizados sobre como o poder público deve promover legislações que enfrentem tal desafio. A gravidade do tema é significativa tanto para as democracias como também para a economia e até mesmo para o nosso futuro enquanto civilização. Não é exagero afirmar que a desinformação mata, o que no contexto da pandemia por covid-19 foi um elemento lamentavelmente relevante que levou a Unesco a forjar o conceito de desinfodemia.

Foi motivado por parte dessas questões que pude me aprofundar a partir de conversas que tive com o sociólogo britânico, radicado no Canadá, David Lyon quando ele esteve no Brasil em 2017. Lyon é um dos principais teóricos sobre o tema da vigilância e as conversas com ele foram importantes alertas para a importância do estudo e da reflexão cuidadosa dessas questões. Desde então tenho me dedicado a pesquisas que têm como foco a temática da desinformação, desenvolvendo parcerias com várias organizações, a partir do financiamento obtido por meio de editais que foram abertos tanto por empresas da área de tecnologia como por órgãos governamentais de fomento e pelo Ministério Público do Rio de Janeiro.

Recentemente publicamos os resultados de uma primeira e ampla pesquisa que foi realizada após premiação recebida do Facebook Inc. em seu edital “Pesquisa WhatsApp para Ciências Sociais e Desinformação”. O relatório Caminhos da Desinformação reúne reflexões de pesquisa quantitativa que foi realizada no contexto desse primeiro esforço que tivemos em pensar a desinformação no Brasil a partir de um recorte religioso. O trabalho reuniu uma equipe multidisciplinar com 21 pessoas e foi desenvolvida a partir de pesquisa de campo nas cidades do Rio de Janeiro e de Recife e pesquisa online com abrangência nacional. Parte da equipe participou de uma live organizada pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER) em que o relatório foi apresentado e discutido.

A escolha pelo tema da religião teve relação com dois fatores. Primeiro a indicação de reportagens de que sites e influencers religiosos seriam destacados disseminadores de fake news. Um outro elemento que nos fez considerar esse segmento foi a compreensão de que um dos elementos mais importantes para a disseminação da desinformação é a sua circulação a partir de grupos orgânicos, fundamentados em relações pessoais e de confiança. Entre esses grupos destacam-se grupos ligados a comunidades religiosas e de fé.

Para a pesquisa presencial optou-se pelo estudo das Igrejas Evangélicas, com foco em duas denominações: batistas e assembleianos. Foram entrevistadas 970 pessoas de dezenas de igrejas nas duas cidades selecionadas. Já na pesquisa online foi feita amostra de abrangência nacional com pessoas de todas as religiões e sem religião e que possuíam escolaridade de nível superior. Nessa etapa foram entrevistadas 401 pessoas. Na mesma pesquisa também houve uma fase qualitativa que consistiu na realização de cinco Grupos de Diálogo envolvendo 125 pessoas das duas cidades, além da realização de uma análise das redes sociais com o objetivo de identificar características e fluxos da desinformação a partir de um olhar para lideranças e veículos de notícias direcionados a grupos religiosos. Todos os dados foram coletados no segundo semestre de 2019.

Grupos de WhatsApp, o novo ir à igreja semanalmente

Em relações aos achados da pesquisa quantitativa é possível resumi-los em alguns tópicos. Primeiro não foi possível identificar um perfil de pessoas que reconhecem enviar mais notícias falsas, não houve associação a renda, religião, idade ou posição política, por exemplo. O que foi possível identificar foi que pessoas com mais idade, menor escolaridade e renda tendem a checar menos e, principalmente, parecem ser menos afetadas pelo que acontece no celular. Esse é um ponto interessante, o uso de celulares tem uma forte relação com prazer, realização e a cada vez mais há um grande investimento nesses meios. O filósofo Byung-Chul Han chega a falar nos smartphones como “artigo de culto da dominação digital”. Isso é um ponto interessante, são exatamente pessoas que dão menos importância e centralidade a esse dispositivo eletrônico que parecem contribuir mais para a circulação da desinformação.

Assim, nossa expectativa era de que usuários habilidosos reconhecessem enviar menos notícias falsas. Seriam as pessoas de nossa amostra que usam mais aplicativos e desempenham mais funções na administração de grupos, perfis e gestão de conteúdos. Isso não foi confirmado na análise dos dados. Nos vários recortes testados encontramos que cerca de 1/3 das pessoas reconhece que em algum momento compartilharam notícias falsas. De um modo geral temos que 12% compartilharam e avisaram que era falso; 11% compartilharam porque o tema era relevante; 8% reconheceram que compartilharam uma mentira, simples assim; e 6% compartilharam na expectativa de que a pessoa checasse posteriormente. Assim, o que foi possível identificar é que pessoas com maior escolaridade, renda e menor idade parecem se sentir mais afetadas pela circulação de mentiras e possuem uma prática maior de checar notícias.

Em relação ao recorte religioso chamou a atenção de como é mais disseminado entre evangélicos a existência de grupos eletrônicos de mensagens instantâneas relacionados à religião ou à sua religiosidade em seu cotidiano. Enquanto 92% dos evangélicos informaram possuir esses grupos, entre católicos foram 71%, 57% dos espíritas e 66,7% dos fiéis de outras religiões. Se no passado os evangélicos eram aqueles que se destacavam por ir semanalmente à Igreja, hoje ter grupos de sua religião parece ser uma das marcas de seu envolvimento. No mais, entre evangélicos, 77% afirmaram já ter recebido em grupos da religião mensagens falsas. Entre os católicos foram 38,5%, espíritas 35,7%, Afro 28%, outras religiões 41,7% e entre os sem religião 20,9%.

Com esses dados temos que a cada 10 pessoas que afirmaram receber notícias falsas em grupos relacionados à religião temos que 5 são evangélicos, 3 católicos, 1 espírita, 1 outras religiões ou sem religião. Um ponto importante a considerar aqui é o fato de que evangélicos estão expostos a um número maior de grupos, possuindo vários grupos relacionados à sua religiosidade, além dos já tradicionais grupos da família e do trabalho. Com essa exposição, há grande circulação de mensagens e da percepção entre esses da maior existência de notícias falsas em seus grupos religiosos, que parecem ocupar um importante papel na disseminação da desinformação.

Confiança interpessoal como um elemento central

Pesquisa internacional indica que o uso do WhatsApp em grupos ligados à religião é bem maior no Brasil do que em outros países. O WhatsApp é um aplicativo que representa um novo paradigma na comunicação por permitir a comunicação entre indivíduos, de indivíduos para várias pessoas e entre várias pessoas nos grupos. Não pensado inicialmente para isso, também passou a ser utilizado, especialmente no sul global, como uma ferramenta de broadcast, de transmissão. Além de se caracterizar como uma importante forma de comunicação para pessoas de baixa renda.

A confiança em pessoas é central nesse processo. Encontramos que para 33,3% dos evangélicos entrevistados, os conhecidos são mais consultados do que a busca de informações nos grandes veículos (22,6%), ou mesmo uma simples busca na internet. Temos ainda que para 13,2% dos evangélicos entrevistados, os pastores e irmãos representam a fonte mais confiável de notícias. Há uso intenso do aplicativo. Quase a metade (48%) informa que compartilha mensagens diariamente; 40% afirmam que fazem várias vezes ao mês; somente 12% informam não ter o hábito de compartilhar. O que temos nesse segmento são muitos grupos, muitos compartilhamentos e muita desinformação circulando sem a preocupação de checagem, já que somente 1/3 afirmou ter o hábito de checar. Esses são os ingredientes que estabelecem os caminhos da desinformação.

Entre os elementos que caracterizam o WhatsApp, cabe salientar o seu caráter de intimidade. Todos temos grupos da família no aplicativo. Se o Facebook é a praça pública, o WhatsApp é a sala de estar. Assim estão associadas à marca elementos de segurança, privacidade e simplicidade na comunicação, havendo baixo uso da banda de internet e gratuidade em muitos dos casos. Essas características se adequam bem a um quarto elemento que é a presença de confiança entre as pessoas na comunicação feita via o aplicativo. Um dos elementos mais importantes que parecem levar uma pessoa a compartilhar uma mensagem é a confiança que ela deposita no emissor. Nesse sentido, grupos em que há maior confiança interpessoal podem ser mais suscetíveis a circulação de desinformação, pois as pessoas tendem a repassar mais mensagens umas das outras.

As comunidades que se formam a partir do compartilhamento de uma mesma fé parecem ocupar um lugar de destaque no caso brasileiro da disseminação da desinformação. Considerando a enorme presença do aplicativo entre a população brasileira, sendo que 98% dos evangélicos entrevistados afirmaram possuir o aplicativo em seus celulares e 80% o usar por tempo prolongado a moderado. Considerando que evangélicos, além dos vários grupos de amigos e familiares que todos possuem, também possuem mais outros tantos grupos relacionados aos vários ministérios e atividades de sua religião e que a isso soma-se uma aparente maior confiança interpessoal existente no segmento, tem-se no somatório desses elementos uma situação que parece propiciar uma maior circulação da desinformação entre evangélicos.

Mesmo com essa maior circulação, identificou-se que cerca de 1/3 dos entrevistados não checam, não se incomodam, não percebem essa circulação da desinformação. Em outras palavras o que temos é que esse não é um tema, não é uma questão para eles. A partir dos dados dessa pesquisa e de outros achados na literatura, essa despreocupação seria um outro elemento importante, junto à confiança interpessoal, para se pensar no enfrentamento à desinformação. Mais do que um “raciocínio motivado”, o que parece movimentar essa circulação de mentiras seria uma “falta de raciocínio”. Uma despreocupação em relação à gravidade do problema e não uma ação intencional visando prejudicar. Esse perfil, que na pesquisa denominamos como “usuário néscio”, representa uma grande maioria e reúne tanto pessoas com menor conhecimento técnico, como também com uma falta de interesse em fazer um uso crítico dos meios digitais, numa posição em que se somam inexperiência, imprudência e inaptidão.

Entre os desdobramentos da pesquisa, hoje o foco de nosso grupo está no desenvolvimento de reflexões e propostas para o letramento digital, a partir de duas pesquisas, uma com foco no impacto da tecnologia das relações no âmbito domiciliar e outra em que consideramos o impacto da desinformação para a saúde nas relações que envolvem o consumo de alimentos. Outra pesquisa, já concluída, analisou base de dados internacionais de checagens relacionadas à Covid-19 e se deu a partir de parceria com o Poynter Institute, organização que liderou a #CoronaVirusFacts Alliance.      

Outro importante desdobramento foi a participação de membros da equipe da pesquisa na criação do Coletivo Bereia, inciativa que a partir da adoção de jornalismo colaborativo tem como foco a checagem de notícias relacionadas ao universo religioso, tanto aquelas veiculadas por websites ou empresas voltadas para o segmento, como também àquelas veiculadas pela “grande imprensa”. Em seus dois anos de existência o Bereia tem feito importantes parcerias e atuado de forma destacada nesse importante segmento da checagem de notícias, o qual representa uma valorização da prática profissional de jornalistas e uma preocupação com a verdade factual, com ouvir “todos os lados”, basicamente como o bom e velho manual das redações ensina para a produção das matérias com a realização da devida e necessária apuração.

O que se coloca para a sociedade, de um modo geral, é o desafio de como pensar a comunicação em meio às facilidades e velocidades hoje existentes. Os desafios estão postos para o poder público, para as empresas e para o campo da educação, tanto em espaços formais e não-formais. Discussões que perpassam questões que envolvem a legislação e a regulação, por exemplo. As religiões precisam considerar em seus espaços formativos mais e melhores reflexões sobre a circulação e o impacto da desinformação. Um ponto que me parece central, que já se encontrava no primeiro Paulo Freire ao defender a consciência crítica, como também muito antes disso no Discurso sobre o Método de Descartes, que a partir da sua máxima “cogito, ergo sum” defendia a importância do pensamento. É uma marca da humanidade a nossa capacidade crítica, de reflexão.

No desenho das mídias digitais e entre os vários influencers e políticos que navegam nesses espaços, a chave parece ser cada vez menos a defesa de algo na linha do “penso, logo existo” e cada vez mais sugerir uma máxima que poderia ser resumida como “confio, logo compartilho”. As relações de confiança são um aspecto importante da vida humana, substrato fundamental para a democracia, porém essa confiança não pode se sobrepujar à nossa capacidade crítica, a uma postura de questionamento. Hoje, mais do que no passado diante da velocidade da informação, exige-se que de forma atenta e responsável enfrentemos os variados processos que se estabelecem por meio de mentiras que são deliberadamente criadas e que visam provocar conflitos, otimizar lucros ou prejudicar pessoas. O estabelecimento de processos formativos que salientem uma postura político-pedagógica e o lugar da crítica assumem uma importância significativa, os quais precisarão estar acompanhados de reflexões que envolvam conteúdos daquilo que tem se convencionado definir de letramento digital. Estes são alguns dos desafios que o início do século 21 apresenta no campo das tecnologias da informação e da comunicação. Enfrentá-los faz parte da nossa responsabilidade.

Alexandre Brasil Fonseca é sociólogo, professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor do Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde (NUTES-UFRJ). Atualmente coordena as pesquisas “Alfabetização digital no âmbito das famílias brasileiras: mapeamento, perspectivas e estratégias” (Edital CAPES/SNF) e “Desinformação e Iteracy: percepções e propostas para o uso informado das mídias digitais em relação às temáticas da saúde e da alimentação” (Edital MPRJ)

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