Fake news e a introdução de pseudociência na universidade e na mídia ‘séria’

Por Marcelo Takeshi Yamashita

Ilustração de Edu Oliveira

Além de veicular palavras de ordem contra as notícias falsas e o negacionismo é primordial que se faça periodicamente uma autoavaliação da abertura que as instituições públicas e a mídia dão para os conteúdos falsos. Seria, por exemplo, aceitável a introdução da astrologia, do terraplanismo ou do ET de Varginha em uma disciplina na universidade? É possível que a resposta seja sim desde que os temas apareçam no contexto de estudos socioantropológicos, históricos ou psicológicos. Por outro lado, não caberia uma disciplina em um curso de física ou geografia que ensinasse esses assuntos como fatos reconhecidos pela comunidade científica, desinformando abertamente o aluno. Manifestações contra fake news envolvendo os medicamentos ineficazes contra a covid-19, e para enfrentar os discursos negacionistas contrários ao uso de máscaras e outros protocolos de saúde apareceram aos borbotões nas universidades e na grande imprensa. Porém, um olhar mais acurado mostra que, com bastante frequência, o negacionismo inaceitável é somente aquele em que o outro acredita. Para a pseudociência de estimação existe sempre uma “justificativa plausível e sensata”.

A definição precisa do aparecimento das primeiras fake news deve ser um desafio árduo para qualquer historiador que se proponha a analisar a disseminação da mentira na sociedade. Não tão difícil, porém, é afirmar que as notícias falsas assumiram um protagonismo indesejável com as eleições presidenciais de Donald Trump, em 2016, e Jair Bolsonaro, em 2018.

A criação dolosa de notícias mentirosas, e a propagação orquestrada delas em redes sociais, estendeu-se para além das eleições presidenciais e tornou-se uma ferramenta para confundir o debate público na pandemia a ponto da sexta edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), publicação da Academia Brasileira de Letras, incluir, entre outras palavras, os neologismos infodemia e negacionismo.

De acordo com o VOLP, infodemia é a “denominação dada ao volume excessivo de informações, muitas delas imprecisas ou falsas (desinformação), sobre determinado assunto (como a pandemia, por exemplo), que se multiplicam e se propagam de forma rápida e incontrolável, o que dificulta o acesso a orientações e fontes confiáveis, causando confusão, desorientação e inúmeros prejuízos à vida das pessoas”. Negacionismo consta como sendo a “atitude tendenciosa que consiste na recusa a aceitar a existência, a validade ou a verdade de algo, como eventos históricos ou fatos científicos, apesar das evidências ou argumentos que o comprovam”.

Embora seja condenável, a utilização de um discurso incoerente ou mentiroso no contexto político é compreensível. É ilusório esperar que a maioria dos políticos tenha uma visão racional a respeito dos assuntos tratados: critica-se o adversário livremente e cala-se frente aos defeitos dos aliados. Tudo isso faz parte do jogo político e não deve ser surpresa para ninguém. A surpresa ocorre quando esse jogo de mentiras, infodemia e negacionismo transcende a esfera política e passa a ter espaço na ciência.

Conhecimentos de ciência, artes e humanidades, além de outras inúmeras influências sociais, podem contribuir para a formação do indivíduo – a menção à ciência ao longo deste texto não é, portanto, uma sobrevalorização desse saber frente aos outros conhecimentos, mas apenas uma questão de foco. Dessa forma, a discussão do critério de demarcação sobre o que é ou não ciência, importante para a filosofia, não é necessária para falar de negacionismo e notícias falsas na perspectiva deste artigo.

De uma maneira pragmática, ao falar de ciência estamos falando de fatos e não de opiniões – a ciência é o melhor método construído pela humanidade para se chegar o mais próximo possível do entendimento de algum fenômeno – dessa forma, assim como não faz sentido colocar dois opositores opinando sobre o local de nascimento de Barack Obama, também não cabe colocar dois opositores para debater o formato da Terra. No primeiro caso basta olhar a certidão de nascimento e no segundo uma foto de satélite.

A médica americana Harriet Hall cunhou a expressão “ciência da fada-do-dente” para designar o estudo de um fenômeno antes de estabelecer se ele existe: é possível medir a quantidade de dinheiro que a fada-do-dente deixou sob o travesseiro, se o pagamento é maior para o primeiro ou último dente ou se a recompensa é maior para um dente embalado em um plástico ou em um lenço de papel. Pode-se coletar dados de diversas crianças para ter uma estatística razoável sobre o comportamento e as preferências pessoais da fada. O detalhe, porém, é que a fada-do-dente não existe, e há uma explicação muito mais plausível para os resultados experimentais.

Não é raro encontrar cursos em universidades públicas de excelência que se proponham a ensinar uma ciência da fada-do-dente. Embora os conteúdos desses cursos sejam normalmente apresentados como “assuntos polêmicos”, não existe, na verdade, nenhuma controvérsia: trata-se apenas de puro negacionismo de fatos conhecidos pela comunidade científica, utilizando pretextos semelhantes àqueles utilizados por terraplanistas ou defensores de tratamentos comprovadamente ineficazes contra a covid-19.

Ancorados em livros esotéricos ou em revistas criadas, entre outras finalidades, para a propagação de um conteúdo que viola leis muito bem estabelecidas pela comunidade científica, é comum encontrar nas justificativas para oferecimento das disciplinas uma avalanche de referências, utilizando uma estratégia de debate que ficou conhecida como Gish Gallop: de uma única vez são apresentadas centenas de artigos, na sua esmagadora maioria ruins ou irrelevantes, na tentativa de evitar uma refutação imediata.

A propagação do conteúdo falso toma proporções ainda mais preocupantes quando são ensinadas a estudantes em instituições públicas com a conivência dos colegiados. Recentemente, um grupo de docentes da área de física do Instituto de Matemática, Estatística e Física (IMEF) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) publicou um manifesto na Sociedade Brasileira de Física e na revista Questão de Ciência denunciando o oferecimento da disciplina “Perspectiva Quântica para o Cuidado de Enfermagem/Saúde”.

A atitude corajosa e correta dos docentes de física da FURG é rara na comunidade acadêmica, que normalmente não se manifesta sobre a inclusão de pseudociências na universidade. Cabe dizer que no âmbito pessoal não há, a princípio, qualquer problema na crença em fenômenos sobrenaturais, mas isso não deveria permear explicitamente o debate na Academia como mostra a ata de agosto de 2021 da reunião ordinária da escola de enfermagem da FURG. Nela consta uma discussão onde as docentes que oferecem o curso defendem o título da disciplina mencionando o autor Amit Goswami – um tipo de guru quântico, sem respaldo nenhum entre os pares, mas que se tornou popular por causa dos livros esotéricos que escreveu.

O psicólogo Michael Shermer no seu livro Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas – Pseudociência, superstição e outras confusões dos nossos tempos escreve que “pessoas inteligentes acreditam em coisas estranhas porque têm capacidade para defender crenças às quais chegaram por razões não inteligentes”. Certamente existem outras explicações mais elaboradas para a questão da crença, mas não deixa de ser preocupante que conteúdo falsos sejam transmitidos para estudantes em sala de aula.

No caso do misticismo quântico presente na disciplina citada acima, não se trata de uma análise crítica e epistemológica sobre o conceito da crença em terapias de caráter duvidoso, mas na transmissão de conceitos errados que não encontram respaldo na própria física. Se não cabe, no âmbito da universidade, um cerceamento de ideias, tampouco cabe colocar ideias em contextos errados.

Seria, por exemplo, aceitável a introdução da astrologia, do terraplanismo ou do ET de Varginha em uma disciplina na universidade? É possível que a resposta seja sim desde que os temas apareçam no contexto de estudos socioantropológicos, históricos ou psicológicos. Por outro lado, não caberia uma disciplina em um curso de física ou geografia que ensinasse esses assuntos como fatos reconhecidos pela comunidade científica, desinformando abertamente o aluno.

Convidar um membro de uma sociedade terraplanista para apresentar as evidências de que a Terra é plana (e que as imagens feitas até agora por satélites resultam de uma conspiração mundial) não é muito diferente de convidar um médico homeopata para dizer que a água em contato com o soluto conserva uma memória eletromagnética duradoura (já escrevi sobre a inexistência da memória da água na Folha de S.Paulo e na revista Questão de Ciência). A diferença entre os dois exemplos, porém, é que o segundo é real e aparece em disciplinas de universidades públicas.

É provável que não haja dolo na introdução de pseudociências nas universidades, mas é importante considerar que o conhecimento e inteligência em uma área não se transferem automaticamente para outras e que inclusive especialistas não estão livres de dizer besteira. Nessa perspectiva, se faz necessário um olhar crítico da comunidade para que não haja a propagação deliberada e continuada de desinformação em lugares que deveriam ser um porto seguro para o conhecimento.

Manifestações contra fake news envolvendo os medicamentos ineficazes contra a covid-19, e para enfrentar os discursos negacionistas contrários ao uso de máscaras e outros protocolos de saúde apareceram aos borbotões nas universidades e na grande imprensa. Porém, um olhar mais acurado mostra que, com bastante frequência, o negacionismo inaceitável é somente aquele em que o outro acredita. Para a pseudociência de estimação existe sempre uma “justificativa plausível e sensata”.

Uma postura coerente com o que se fala é fundamental no contexto em que se quer defender a ciência – não estamos falando de política ou opinião, mas de fatos.

O jornal Folha de S.Paulo, por exemplo, integra o “The Trust Project“, iniciativa que visa o desenvolvimento de padrões de transparência para a identificação e promoção de um jornalismo confiável e de qualidade. Dentro do compromisso jornalístico de transmitir algo verdadeiro para o leitor, não existe justificativa razoável para publicar, por exemplo, uma receita de “água solarizada“. Exigir respeito à ciência em uma página e em outra dizer que água em contato com a luz do sol “afasta a depressão” é de uma dissonância cognitiva gigantesca. A promoção desse tipo de terapia é também perigosa, pois pode fazer com que pessoas abandonem tratamentos sérios para depressão.

Além de veicular palavras de ordem contra as notícias falsas e o negacionismo é primordial que se faça periodicamente uma autoavaliação da abertura que as instituições públicas e a mídia dão para os conteúdos falsos. Questão de ciência não é questão de opinião. Por muitos anos a sociedade sofreu as consequências ruins do estabelecimento da dúvida para confundir a opinião pública sobre os malefícios do tabaco. Quanto tempo precisaremos para aprender com os erros?

Marcelo Takeshi Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica da Unesp, assessor-chefe de Comunicação e Imprensa da mesma universidade e diretor do Instituto Questão de Ciência

Clique aqui para o índice do Dossiê Fake News, outubro de 2021