‘Como as democracias morrem’: um novo jeito de implantar ditaduras no século XXI

Por Bianca Bosso

“Surgira uma séria disputa entre o cavalo e o javali; então, o cavalo foi a um caçador e pediu ajuda para se vingar. O caçador concordou, mas disse: ‘Se deseja derrotar o javali, você deve permitir que eu ponha esta peça de ferro entre as suas mandíbulas, para que possa guiá-lo com estas rédeas, e que coloque esta sela nas suas costas, para que possa me manter firme enquanto seguimos o inimigo’. O cavalo aceitou as condições e o caçador logo o selou e bridou. Assim, com a ajuda do caçador, o cavalo logo venceu o javali, e então disse: ‘Agora, desça e retire essas coisas da minha boca e das minhas costas’. ‘Não tão rápido, amigo’, disse o caçador. ‘Eu o tenho sob minhas rédeas e esporas, e por enquanto prefiro mantê-lo assim.’

O javali, o cavalo e o caçador” Fábulas de Esopo

Quando pensamos no declínio de uma democracia, é inevitável que o associemos à mudança de regime político um cenário caótico, protagonizado por homens armados e um pano de fundo de censura e supressão de liberdades individuais, como ocorreu no Brasil nas décadas de 1960 e 1970. No entanto, para Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, já não é assim que os regimes autoritários modernos serão (estão sendo) instaurados.

Como as democracias morrem analisa a queda de regimes democráticos por uma perspectiva comparativa, com ênfase na história política norte-americana, identificando características frequentes no modo de agir de autocratas, do establishment e da sociedade.

O livro encaminha uma reflexão central: “mesmo democracias bem estabelecidas, como a norte-americana, podem morrer?” A resposta é sim. A “recessão democrática” global é apontada como fato por diversos estudiosos, tendo se instaurado desde meados de 2000. Esse cenário parece pôr fim a uma tendência global de democratização que vinha se estabelecendo no mundo nos últimos 30 anos. Enquanto algumas nações veem escancarados os sinais de que a democracia está em colapso (como aquelas em que a ditadura se instaurou plena e forte ou aqueles governados por partidos de extrema direita), outras começam a emitir sinais de que algo está acontecendo – e o Brasil, ao que tudo indica, se encaixa na segunda categoria.

Os autores criticam a ideia de uma recessão democrática, listando diversos países nos quais a democracia está, teoricamente, intacta, entre eles o Brasil. No entanto, desde a publicação do livro em agosto de 2018, o Brasil vem passando por momentos de incerteza democrática. No início do ano, o próprio Levitsky, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, declarou que “uma crise econômica terrível combinada com escândalos maciços de corrupção e altos níveis de violência e criminalidade” levaram à diminuição da satisfação dos brasileiros com o regime democrático, permitindo assim que um político com discurso antissistema tenha ascendido tão rapidamente. A eleição de Jair Bolsonaro nos leva a questionar se as demais democracias mencionadas como “intactas” pelos autores estão realmente protegidas.

O livro traça um paralelo entre diversos casos de declínio democrático, identificando semelhanças, como um cenário economicamente ou politicamente em crise e a cegueira da comunidade nacional – que só é capaz de perceber que algo está errado quando já não se pode mais voltar atrás. Talvez a face mais interessante da ascensão de um outsider para uma posição de liderança política seja o apoio dos governantes mais experientes. É natural que, em um país em crise, o surgimento de uma figura carismática, que desafia a velha ordem, pareça uma oportunidade de formar alianças para recuperar a confiança popular. E é nesse ponto que o (candidato a) tirano se apoia, levando o insider político a pensar que será capaz de recuperar o poder através da dominação do demagogo – como na fábula “O javali, o cavalo e o caçador” – mas as coisas nem sempre acontecem dessa forma e assim, em vez de assegurar que as grades de proteção da democracia se mantenham de pé, os políticos da velha ordem acabam contribuindo para a legitimação de um potencial ditador.

Levitsky e Ziblatt caracterizam ainda os autocratas em potencial e suas estratégias para centralizar o poder, salientando que nem todos começam como autoritários, podendo iniciar sua carreira democraticamente [leia neste dossiê artigo de Douglas Donin sobre a trajetória de Viktor Orbán]. No entanto, ao longo de sua trajetória, passam a usar artifícios para acumular mais poder, muitas vezes beirando a ilegalidade. Em seus discursos antissistema, prometem acabar com a corrupção ou mesmo aperfeiçoar a democracia; assim, sem alardes, transformam, aos poucos, estados democráticos em formas autoritárias de governo. Os sinais emitidos, sumarizados em uma tabela desenvolvida pelos autores, incluem a rejeição das regras democráticas, negação da legitimidade de seus oponentes, tolerância à violência e propensão a restringir liberdades civis, inclusive a mídia. Assim, candidatos que se encaixam em um ou mais desses critérios devem ser motivo de alerta.

Não são raros os exemplos de políticos que satisfazem tais condições. Levitsky e Ziblatt mencionam que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, preenche os quatro critérios estabelecidos. Mas Trump não é o único. A análise de declarações do presidente Jair Bolsonaro também indica que o excapitão do exército marca positivo para todos os quatro apontamentos:

1) Em 20 de setembro de 2018, pouco antes das eleições presidenciais, em entrevista à José Luiz Datena, Bolsonaro sugeriu que não aceitaria resultados diferentes de sua vitória nas urnas, ameaçando, assim, rejeitar as regras democráticas;

2) Uma vasta gama de juristas, políticos e analistas defende que a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi arquitetada para blindar Jair Bolsonaro, uma vez que se deu baseada em evidências controversas pelas mãos de um juiz que viria a ser ministro de Bolsonaro. Caso comprovado, trata-se de um caso de negação da legitimidade de seu principal oponente político. As suspeitas são reforçadas quando Bolsonaro considera prender jornalistas que divulgassem materiais reveladores de fraude e/ou manipulação por trás da prisão do ex-presidente Lula – o que nos leva ao próximo tópico;

3) Além das ameaças à mídia, ao fim do oitavo mês de mandato não faltam exemplos de que o presidente apoia a censura, como quando propôs a imposição de filtros à Ancine (que regulamenta e fiscaliza a produção audiovisual do país), sendo assim fortemente disposto a restringir as liberdades civis;

4) Durante a campanha (e após a eleição), o presidente demonstrou ser tolerante à violência por inúmeras vezes, registradas pelos órgãos de imprensa.

Ferramentas de defesa da democracia
Cabe ao país, como um todo, proteger seu sistema democrático da entrada de líderes extremistas. Para proteger a democracia é preciso assegurar que haja um equilíbrio entre o poder do presidente e de forças institucionais que a ele se equiparem, como o Congresso e o Supremo Tribunal. Para garantir isso, Levitsky e Ziblatt elencam as principais grades de proteção da democracia: (a) os partidos, que devem cuidar para que autoritários não cheguem ao poder e (b) as regras não escritas, que são normas informais que asseguram o cumprimento da Constituição (as regras escritas). Essa cultura democrática que viabiliza todo o resto consiste em: (a) tolerância mútua, pela qual os oponentes partidários devem respeitar tanto a existência quanto a ascensão temporária de adversários ao poder, enquanto eles cumprirem as regras democráticas e (b) a reserva institucional, que se baseia no princípio de que os líderes políticos não devem usar de má fé para driblar normas constitucionais. Tentativas de eximir-se de tais prescrições seriam, então, indicativos de tendências autoritárias.

O livro enumera situações protagonizadas por uma dessas forças (ou pela ausência do bom uso das mesmas). Em alguns casos, foram capazes de combater a ascensão de autocratas ou a extrapolação constitucional dos mesmos ao tentar emitir leis, decretos ou quaisquer outros tipos de normas que beiravam a inconstitucionalidade. Um exemplo: em entrevista para a Globo News, Eloísa Machado, professora de direito constitucional da Fundação Getúlio Vargas, avalia que Bolsonaro fornece um exemplo de quebra da regra de reserva institucional ao tentar extravasar o poder regulamentar a ele concedido a fim de aprovar decretos referentes ao Estatuto do Desarmamento.

Cenário mais provável: guerras institucionais
No último capítulo, Levitsky e Ziblatt descrevem três possíveis cenários para o futuro dos Estados Unidos pós-Trump, que podem ser extrapolados para casos semelhantes, como o do Brasil. O primeiro seria o uma recuperação democrática causada pelo fracasso político do presidente em exercício, com a oposição de volta ao poder e a revogação de políticas extremistas; o segundo seria a permanência do autoritário no poder, com o estabelecimento de medidas que aumentem cada vez mais o poder a ele concedido através da quebra da reserva institucional; o terceiro – e, segundo os autores, mais provável cenário – é marcado por polarizações e por um distanciamento das normas políticas não escritas, levando a guerras institucionais.

A grande mensagem que o livro deixa nos serve de alerta: hoje, as democracias não morrem mais da noite para o dia; os autoritários não mais se apoderam do poder por meio de golpes ou do uso da força. A própria democracia está fadada ao fim se seu sistema de defesa não for suficientemente efetivo para afastar líderes extremistas do poder. Ela lentamente vai esmaecer, vítima de artifícios legais. Como escrevem os autores, o “retrocesso democrático hoje começa nas urnas”.

Bianca Bosso cursa graduação em ciências biológicas na Unicamp

Como as Democracias Morrem
Steven Levitsky e Daniel Ziblatt
Editora: Zahar, 1ª edição
Número de páginas: 272
Preço: impresso R$ 64,90 | e-book R$ 44,90