Cultura científica*

Por Carlos Vogt e Ana Paula Morales

Sabemos que o conceito de cultura é um dos mais complexos com o qual lidamos, tão complexo quanto o conceito de natureza. E, de uma maneira geral, um conceito não anda sem o outro.

Até há pouco tempo, especialmente com o desenvolvimento dos estudos antropológicos, e também com a oposição entre cultura e civilização que aconteceu no decorrer desses estudos, os estudiosos da área, sempre preocupados com os diacríticos do Homem em relação a outros animais, apontaram que os traços distintivos da espécie humana em relação a outras espécies era, por um lado, a linguagem, e de outro, a cultura. Ou seja, definiu-se que o que nos diferencia dos outros animais é a capacidade de construir sistemas muito poderosos do ponto de vista simbólico – a linguagem – bem como a capacidade não somente de viver em sociedade, mas de construir a sociedade para se viver. Estabelecendo, desta maneira, uma linha de transferência, de herança, que é a linha da cultura[1]. Assim, resumindo, um dos traços que caracteriza essa procura de distinções entre a espécie humana e as outras espécies foi, até um momento, a ideia de que nós éramos dotados de uma capacidade simbólica e de uma capacidade cultural e que outros animais não as teriam.

Há algum tempo, no entanto, fomos percebendo que isso que achávamos que era de exclusividade humana, na verdade, não é tão exclusivo assim. As transformações que a ciência contemporânea e as tecnociências estão produzindo no mundo têm nos permitido perceber que há muitos animais, muitas espécies superiores, que são capazes do uso da linguagem e de ter cultura. Em decorrência de tais descobertas, recentemente foi desenvolvido o conceito de “cultura animal” – o que há alguns anos poderia soar como um paradoxo, mas que agora ganha muito até mesmo em expressão popular.

A edição 339 da revista Superinteressante, por exemplo, publicada no Brasil em novembro de 2014, traz na capa a imagem de um chimpanzé e a seguinte chamada: “Caem as fronteiras entre nós e os animais”. Não se trata, no entanto, de algo exatamente novo, que estejamos inventando agora: trata-se de uma tradição que, se não em outros, certamente se pode procurar em Darwin e na sua preocupação em mostrar, para o incômodo dos que aceitavam o evolucionismo do ponto de vista físico, mas não da mente, que também neste caso não há saltos evolutivos, mas uma continuidade de espécie para espécie ao longo da escala de evolução. É isso que permite, mais recentemente, que estudiosos do comportamento animal busquem, cada vez mais, fundamentos materiais e biológicos para características consideradas até há pouco tempo como fundamentalmente de aprendizagem cultural do homem – por exemplo, os comportamentos moral e ético, o senso de justiça, entre outros.

Essa mudança de atitude altera as relações e os limites dessa relação entre natureza e cultura. Como descreve de uma forma bastante interessante Terry Eagleton (2003):

“A ideia de cultura, então, significa uma dupla recusa: do determinismo orgânico, por um lado, e da autonomia do espírito, por outro. É uma rejeição tanto do naturalismo como do idealismo, insistindo, contra o primeiro, que existe algo na natureza que a excede e a anula, e, contra o idealismo, que mesmo o mais nobre agir humano tem suas raízes humildes em nossa biologia e no ambiente natural”. (p.14).

Sendo o autor um teórico marxista, vê-se que se trata de um pensamento dialético, na forma de sua estrutura e expressão: ao mesmo tempo uma oposição e uma negação entre os conceitos de cultura e natureza. Mas essa negação também implica uma afirmação que faz com que os dois termos estejam conectados de um modo necessário: apenas dentro dessa necessidade dialética é que podemos procurar a definição de um e de outro.

Voltando à questão do conceito de cultura animal, podemos observar que também, ao contrário, há fatos da cultura contemporânea que tem a ver com as mudanças que ocorreram a partir do ponto de vista do conceito de natureza, pelas transformações operadas pela cultura. Por exemplo, para citar um deles, o fato de que tivemos em um momento de desenvolvimento científico e tecnológico, com o advento de métodos anticoncepcionais, a possibilidade de desvincular o ato sexual do ato da procriação propriamente dita, e isso mudou de uma maneira fundamental os comportamentos, o jeito de ser, o modo de vida das gerações que viveram e vivem essa transformação de vida em nossa sociedade. Também este aspecto permite que vejamos a relação entre cultura e natureza como uma relação dinâmica; e esse dinamismo – a velocidade, a forma, o modo de transformação – está intimamente ligado à noção de “cultura científica”, tal como proposto ao longo deste texto.

Se tomarmos o conceito de cultura no sentido antropológico, como proposto por Geertz (1989) a partir de Max Weber, o homem seria um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu; e a cultura, por sua vez, seria o conjunto dessas teias. A cultura seria, portanto, composta pelas relações orgânicas entre todas as dimensões da atividade humana. Geertz propõe, ainda, que a análise da cultura deve procurar o significado das teias e das redes por elas compostas – e não leis, como faz a ciência moderna.

Sobre a relação entre ciência e cultura, por sua vez, Jean-Marc Lévy Leblond (2006) afirma que “[..]depois de permanecer por certo tempo vinculada organicamente à cultura, a ciência evoluiu e alcançou sua plena autonomia, e agora está dela completamente afastada” (p. 33). A provocação do autor implica, conforme ele mesmo sugere em seguida, no fato de que hoje não mais exista cultura na ciência ou ciência na cultura; e, logo, não existe mais uma cultura científica.

Mas, se isso é verdade, em que momento as relações entre ciência e cultura teriam deixado de ser orgânicas? Esse “deslocamento” a que se refere Lévy-Leblond poderia ser atribuído, grosso modo, ao processo de institucionalização da atividade científica, a partir de meados século XVII. Segundo Joseph Ben-David (1974), por trás da ciência institucionalizada, identificam-se três fatores centrais: a aceitação da ciência pela sociedade, ainda que não de forma completa; a criação de normas para a atividade científica (que se traduz no reconhecimento do valor do método científico); e a adaptação de normas sociais às normas científicas. Ou seja, entende-se por institucionalizada a ciência que passou a ser aceita como uma função social valorizada por suas atividades. Os cientistas assumiram então um papel peculiar na sociedade, e, nesse processo, a comunidade científica se distanciou consideravelmente dos demais grupos sociais, no que se refere aos seus interesses e às suas percepções em relação à própria ciência.

Assim sendo, seria mais plausível então considerarmos que houve um afastamento – ou “desculturização” – na interface entre o grupo de indivíduos participante e praticante da ciência e a porção da sociedade que não faz parte e não compartilha de suas práticas, códigos e valores. A afirmação de Lévy-Leblond poderia ser considerada então, na verdade, como uma provocação para que encontremos as condições possíveis para que a ciência e a cultura possam ser vistas como parte de um fenômeno comum, mais amplo, que é característico do nosso tempo: a cultura científica.

Nesse sentido, podemos nos questionar e buscar, se não “uma” resposta ou “a” resposta, “uma possível” resposta a uma pergunta que tem sido feita com certa frequência por estudiosos do tema: “Qual é o lugar que deve ocupar a cultura científica na sociedade que está sendo construída agora?”. Essa é uma pergunta fácil de fazer, mas difícil no que diz respeito às respostas que podem ser apresentadas.

Como exercício de reflexão, uma possível resposta afirmaria que o lugar que deve ocupar a cultura científica na nossa sociedade é o ponto de encontro entre a sociedade e a ciência. Portanto, o ponto de encontro da ciência com a sua percepção pela sociedade; da ciência com o que não é ciência, mas que também é determinante e constitutivo da sua natureza. Dito de uma forma mais especifica, do ponto de vista das práticas acadêmicas e de pesquisas, o ponto de encontro da ciência e da cultura – e da sociedade – é o ponto de sua divulgação. De uma forma mais específica, poderia ser o ponto de encontro dos indicadores de ciência e tecnologia e dos indicadores de sua percepção. E, num plano mais geral, esse lugar é também o ponto de encontro entre a natureza e a cultura, de tal forma que nos permite avançar uma definição ousada para responder à pergunta, “O que é a cultura científica?”.

A cultura científica poderia ser definida também como uma forma de cultura, ou um modo de vida, tal como definiam cultura os antropólogos, tal que a relação entre natureza e cultura se vê continuamente alterada pela dinâmica do conhecimento científico, pelas tecnologias e pela inovação, produzindo um novo conceito misto de cultura e natureza na dimensão do conhecimento de ciência e de cultura. Ou, se se preferir, a novidade continuamente renovada de uma natureza cultural e, inversamente, de uma cultura natural.

Mas como representar e expressar os termos dessa nova racionalidade que envolve as relações entre ciência e cultura? Um opção é representá-la sob a forma das oposições binárias triangulares propostas por Lévi-Strauss, que, por sua vez, tomou como referência direta o modelo lógico dos estudos de Roman Jakobson e Morris Halle (Jakobson e Halle, 1956) em fonologia, trabalhos com inspiração histórica em Aristóteles e em Apuleio e sob influência mais direta e recente do lógico francês Robert Blanché[2], que no livro Estruturas intelectuais (Blanché, 2012) mostra uma oposição entre termos, que são categorias conceituais que permitem o desenvolvimento de sistemas complexos de significado, de simbologia, de valores etc.

Tomando como base o quadrado lógico de Apuleio, em que proposições, cada uma representada em um vértice de um quadrado, se opõem umas às outras, Blanché apresenta seu hexágono lógico com a introdução de duas novas proposições (Figura 1).

No quadrado de Apuleio, representado na primeira parte da figura 1, são apresentados quatro tipos de proposições (A, I, E, O) que se opõem, nas duas metades do eixo horizontal, pela quantidade (universais versus particulares); nas duas metades do eixo vertical, pela qualidade (afirmativas versus negativas); e, nas duas diagonais que cortam o quadrado, por ambas (universais afirmativas versus particulares negativas e universais negativas versus particulares afirmativas).

Figura 1 – Representação do quadrado lógico de Apuleio e do hexágono lógico proposto por Blanché.

Assim, se considerarmos para A a proposição Toda atividade científica está inserida na cultura, teremos para E que Nenhuma atividade científica está inserida na cultura ou Toda atividade científica não está inserida na cultura; para I que Alguma atividade científica está inserida na cultura, e, para O, que Alguma atividade científica não está inserida na cultura.

Blanché, por sua vez, introduz duas novas proposições a esse jogo de oposições:  uma universal, U, formada pela separação de A e E (AvE; todos ou nenhum); e outra particular, Y, formada pela associação de I e O (I.O; alguns sim, alguns não). Tem-se, dessa forma, um hexágono lógico, composto pelas oposições do quadrado de Apuleio somadas a novas relações formadas entre os conceitos já colocados (A, E, I e O) e os novos conceitos propostos por Blanché (U e Y).

Sem alongar na apresentação resumida da figura e suas relações, nos concentremos no triângulo formado agora por A, E e Y, das relações contrárias. Seguindo o raciocínio anterior, teremos para Y que Alguma atividade científica está inserida na cultura e alguma atividade científica não está inserida na cultura. O exercício nos remete a um sistema ternário de conceitos contrários, como tantos outros que encontramos nos sistemas simbólicos de diferentes culturas: bom/inócuo/nocivo; amor/indiferença/ódio; excitação/equilíbrio/depressão; verde/amarelo/vermelho. Se colocarmos no vértice inferior do triângulo o termo médio de cada uma das tríades, e os dois outros termos nos vértices superiores, teremos uma configuração de oposições que se repetem, organizando conceitos sempre da mesma forma, seguindo a mesma lógica.

Segundo o estruturalismo de Lévi-Strauss, a antropologia deve procurar categorias universais da cultura, propriedades fundamentais que subjazem à imensa variedade de produtos culturais; ou seja, ela deve se ocupar dos elementos comuns compartilhados por diferentes culturas num nível mais profundo. E o autor buscou referência no sistema de oposições binárias triangulares para propor o seu modelo lógico para analisar e explicar a imensa variedade de narrativas míticas que compõem os volumes de Mythologiques. No quarto volume da obra, O cru e o cozido (Lévi-Strauss, 1964), Lévi-Strauss apresenta o triângulo culinário, conforme segue:

Figura 2 – Representação do triângulo culinário de Lévi-Strauss

Na relação se apresenta, entre os conceitos que ocupam o vértice superior do triângulo (cru) e os vértices da base (cozido e podre), ou seja, num eixo vertical, a oposição binária referente ao estado do material, a saber: cru = normal e cozido/podre = transformado. No eixo horizontal, a oposição se faz pelo tipo de transformação ocorrida: cultural e natural. Dessa forma, o material cru se torna cozido ao ser submetido a um processo de transformação que passa pela cultura. Do outro lado, este mesmo material (cru), ao passar por um processo de transformação mediado pela natureza, se torna podre.

A relação entre ciência e cultura, portanto, poderia ser interpretada como uma relação de oposição, mas de oposição necessária, ou seja, o conceito de cultura na contemporaneidade não existe sem o conceito de ciência, e o conceito de ciência não existe sem o conceito de cultura: eles se opõem, mas se complementam. E o conceito de cultura científica é um conceito que não é nem o de cultura, nem o de ciência, mas ao mesmo tempo é cultura e é ciência.

Ou seja, a cultura científica não é nem cultura e nem ciência, embora contenha elementos da cultura e da prática científica, num equilíbrio dinâmico entre as tensões de ambas.

Figura 3 – Representação da relação entre cultura, ciência e cultura científica no triângulo das oposições.

Mas de que forma se dá entre ciência e cultura, que configura um terceiro elemento, a cultura científica? De acordo com Dupuy (2006 apud Jurdant, 2006):

“Para que uma atividade intelectual se torne cultura, é necessário, pelo menos, que esta atividade seja capaz de um retorno reflexivo sobre si mesma, e que entre em intensa comunicação com aquilo que não for ela, ou seja, tudo aquilo que não é ela própria.” (p. 48).

A construção da cultura científica no mundo contemporâneo, dessa forma, é possível através de um processo de reflexão da própria ciência, mas por algo que não é ciência, embora, ao mesmo tempo faça parte constitutiva da ciência contemporânea: ela se dá pela comunicação, mais especificamente, pela divulgação científica.

Nesse sentido, ainda que parte integrante da própria ciência, a comunicação, quando voltado para o público que não participa do processo científico, do ponto de vista técnico, – que se dá com a sociedade de um modo geral -, atua como elemento transformador da ciência, inserindo-a na cultura e configurando, assim, o terceiro elemento dessa relação, a cultura científica. Na outra ponta, o conhecimento científico poderia ser considerado o elemento de transformação da cultura com as características próprias da contemporaneidade. Ou seja, os produtos da pesquisa científica, na forma do conhecimento por ela produzido – trazendo consigo a sua racionalidade, práticas e procedimentos -, transformam a cultura imprimindo-lhe as formas e os conteúdos como hoje os vivenciamos e conhecemos.

Figura 4 – Representação da relação entre cultura, ciência e cultura científica no triângulo das oposições, considerando a comunicação e a ciência como elementos transformadores.

 

Notas

*Publicado, originalmente, em Vogt, C.; Morales, A.P. O discurso dos indicadores de C&T e de percepção de C&T. Organización de Estados Iberoamericanos para la Educación, la Ciencia y la Cultura e Los Libros de la Catarata, Madri, 2016, p. 9-24.

[1] Na tradição humanista, sabemos que a relação entre a cultura e a educação é uma relação constitutiva, isto é, a cultura é o que se adquire por transferência de conhecimento, pelo ensinamento.

[2] As teorias e estudos aqui citados, que retomamos para desenvolver e aplicar ao conceito de cultura científica, já foram objeto em artigo anterior, na área de linguística, intitulado “Semiótica e Semiologia” (Vogt, 2015).