De Manchester ao Vale do Silício – Como os distritos do conhecimento substituíram os distritos industriais

Por Gabriela Celani e Marcela Noronha

 Ao longo do século XX, muitos municípios brasileiros estabeleceram seus distritos industriais, reservando parte de seu território para receber um tipo de atividade econômica com demandas específicas, como disponibilidade de grandes lotes, acesso à água e à energia elétrica, acessibilidade por ferrovias ou rodovias e proximidade a mão de obra, além de incentivos fiscais. Esse tipo de distrito contribuiu para o enriquecimento de muitas cidades. Assim, Sorocaba passou a ser conhecida como a Manchester paulista, Juiz de Fora como a Manchester mineira etc., em referência à cidade inglesa que foi o berço da Revolução Industrial. Entre as décadas de1950 e 1980, a economia brasileira cresceu de maneira extraordinária, a uma média de 4,5% ao ano, com forte contribuição da indústria de transformação[1]. Contudo, a partir da segunda metade da década de 80, o país viveu um processo de desindustrialização[2].

Mas, segundo Mangabeira Unger[3], “a industrialização convencional, como garantia de crescimento económico e de convergência ao nível das economias mais ricas, deixou de funcionar.” Além disso, como efeito colateral, o rápido crescimento industrial do Brasil no século XX deixou um passivo ambiental de desmatamento, desconfiguração da topografia original, extinção de nascentes e poluição de cursos e corpos d’água, além de um passivo social de formação de favelas nas periferias das grandes cidades, que ofereciam empregos, mas não ofereciam habitação para os trabalhadores.

Neste contexto, países como o Brasil, que passaram por processos de desindustrialização precoce [4], devem mudar seu foco da recuperação de seus parques industriais existentes para a chamada “Próxima Revolução Industrial”, ou “4ª Revolução Industrial”, baseada em tecnologias avançadas como: a robótica avançada, a Inteligência Artificial, a “Internet das Coisas” (IoT), as bio e nanotecnologias para produção de materiais, a impressão 3D etc. Nesse sentido, investimentos devem ser feitos para preparar a sua população e a sua infraestrutura para aproveitar a oportunidade de dar um salto em direção a essa nova economia, o que a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) chama de leapfrogging[5].

No entanto, para capturar as oportunidades econômicas criadas pela “Próxima Revolução Industrial” e viabilizar esse salto para a industrialização digital, é necessário que ela seja acompanhada de investimentos graduais em treinamento e educação de pessoal especializado e desenvolvimento de tecnologias de base local para essa nova economia.[6]

Essa prática de produção mais avançada de hoje, que pode, em tese, substituir a industrialização como motor econômico de um país, é a economia do conhecimento. A investopedia a define como “um sistema de consumo e produção baseado no capital intelectual. Em particular, refere-se à capacidade de capitalizar descobertas científicas e investigação aplicada”. Esse tipo de economia possui, em geral, um baixo impacto ambiental e um impacto social positivo, pois, ao invés de um tipo de produção baseada em recursos naturais e no uso da terra, sua principal matéria prima são a infraestrutura de pesquisa e os recursos humanos altamente capacitados, resultantes de políticas públicas de educação e de formação científica em alto nível.

Assim como a economia industrial requeria a criação de distritos industriais, a economia do conhecimento requer o estabelecimento de distritos específicos. Exemplos começaram a surgir nos Estados Unidos, nos anos 1950, como resultado da associação entre universidades, empresas e governo.

Criado em 1951, o Stanford Research Park (SRP), é considerado o primeiro parque tecnológico do mundo, reconhecido como o epicentro do Vale do Silício. Alguns exemplos de empresas que nasceram nesse parque são a NeXT Computer, de Steve Jobs, a Xerox, o Facebook, a Hewlett-Packard e a Tesla. Desde então, os parques tecnológicos têm sido replicados em diferentes países com o objetivo de promover a interação entre as universidades, o governo e outros setores da economia e da sociedade, fomentando o desenvolvimento econômico baseado no conhecimento.

Ao longo do tempo, esses parques foram se diferenciando, conforme o modelo de inovação pretendida e os atores com os quais se relacionavam. Assim, se em uma primeira geração os parques eram criados pelas universidades, próximos ou dentro de seus campi, para “oferecer” as inovações criadas no âmbito acadêmico para o mercado (science push), mais recentemente novos modelos de parques e de territórios do conhecimento vêm se firmando. Os parques de segunda geração, geralmente criados por iniciativa do governo, são aqueles baseados no modelo market pull, no qual é o mercado que busca as universidades para solucionar problemas concretos [7]. Um exemplo desse tipo de parque no Brasil é o Polo de Alta Tecnologia de Campinas. Idealizado pelo professor da Unicamp Rogério Cerqueira Leite e estabelecido por meio de uma lei municipal nos anos 1980, ele chegou a ser chamado de Vale do Silicio brasileiro. Contudo, por uma série de problemas relacionados à infraestrutura, seu desenvolvimento permaneceu latente ao longo de suas primeiras décadas de existência.

A terceira geração de parques baseia-se no modelo de inovação interativa e na hélice quádrupla, na qual a sociedade, frequentemente representada por associações de bairro e coletivos urbanos, participa como um dos atores ao lado do governo, empresas e universidades. Localizados geralmente em centros ou distritos urbanos, têm como objetivo principal melhorar o bem-estar da comunidade local, contribuindo para a criação de uma cultura empreendedora e estabelecendo uma comunicação bidirecional entre criadores e usuários de conhecimento e das tecnologias. Um exemplo desse tipo de ambiente no Brasil é o Porto Digital, em Recife, um projeto que renovou e reativou o centro antigo da cidade.

Um aspecto importante dos parques tecnológicos da terceira geração é que já não apresentam necessariamente limites rígidos no espaço. Por isso, ao invés de parques, podemos falar em territórios de produção do conhecimento ou distritos de inovação. A quarta geração desses territórios é baseada no modelo de inovação de hélice quíntupla, no qual, além do governo, universidade, indústria e sociedade, o meio ambiente também é incluído, muitas vezes representado por organizações não governamentais. Alguns dos conceitos que estão presentes nesses distritos são a inovação aberta, interativa e responsável, e os laboratórios vivos. Além disso, do ponto de vista do desenho urbano, propõem o uso misto do solo, com habitação e serviços, além das áreas de atividade econômica, e um adensamento que permita um uso mais racional dos transportes coletivos e dos recursos naturais. Um dos principais exemplos internacionais desse tipo de distrito está sendo criado no platô de Saclay, ao sul de Paris. No Brasil, o Hub Internacional para o Desenvolvimento Sustentável (HIDS) prevê revitalizar o antigo Polo de Alta Tecnologia de Campinas, introduzindo esses novos conceitos e criando uma infraestrutura urbana sustentável, que possa promover diversidade e serendipidade.

Contudo, ainda segundo Unger[8], “o avanço de uma forma de economia do conhecimento de base ampla e que abrange toda a economia – parece ser inacessível. Nem mesmo as economias mais ricas, com as populações mais instruídas, conseguiram isso”. A implantação de um distrito de produção do conhecimento de quarta geração apresenta ainda muitos desafios. Como custear a energia verde? Como evitar os impactos negativos do adensamento construtivo e populacional? Como garantir a sustentabilidade dos edifícios? Como evitar a expulsão das comunidades locais e a gentrificação? Como garantir a inclusão das populações sub-representadas não apenas no espaço, mas também nos postos de trabalho e nos cargos de liderança? Essas são algumas das respostas que precisam ser buscadas para que o HIDS possa ser, efetivamente, chamado de distrito do conhecimento de quarta geração.

Gabriela Celani é professora da FECFAU Unicamp e diretora geral do CEUCI

Marcela Noronha é pesquisadora associada no CEUCI

[1] CAVALCANTI, Marco Antônio FH; JÚNIOR, José Ronaldo de Castro Souza. Como retomar o crescimento acelerado da renda per capita brasileira? Uma visão agregada. DE NEGRI, J.A.; ARAÚJO, B. C. P. O.; BACELETTE, R. (Org). Desafios da nação: artigos de apoio, volume 1. Brasília: IPEA, 2018. Disponível em: https://portalantigo.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/livros/livros/180413_desafios_da_nacao_artigos_vol1_cap01.pdf Acesso em 20 de fevereiro de 2024

[2] https://doi.org/10.1590/S0101-31572010000200003

[3] https://www.oecd.org/naec/THE-KNOWLEDGE-ECONOMY.pdf

[4] https://doi.org/10.1590/S0101-31572010000200003

[5] https://www.oecd.org/g20/summits/hamburg/the-next-production-revolution-G20-report.pdf

[6] https://doi.org/10.1057/s41287-020-00355-z

[7] GYURKOVICS, János; LUKOVICS, Miklós. “Generations of Science Parks in the Light of Responsible Innovation.” In Responsible Innovation, edited by János Gyurkovics and Miklós Lukovics, 193–208. Szeged: University of Szeged, Faculty of Economics and Business Administration, 2014. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/45379752.pdf Acesso em 20 de fevereiro de 2024

[8] https://www.oecd.org/naec/THE-KNOWLEDGE-ECONOMY.pdf