Sezonismo 
     
  Carlos 
    Vogt 
  O 
    personagem Jeca Tatu de Monteiro Lobato que veio à luz num dos contos 
    do livro Urupês, de 1918, e no ano seguinte, em Idéias 
    de Jeca Tatu, firmou-se como símbolo de uma brasilidade caipira, 
    preguiçosa, indolente e acocorada no chão de terra de seu casebre 
    de sapé, e provocou muitas reações no imaginário 
    da sociedade e da cultura nacionais. 
  Entre 
    essas reações, a grande polêmica que essa visão 
    ? mais do fazendeiro preconceituoso do vale do Paraíba do que do escritor 
    inventivo e militante ? provocou, no meio intelectual e político da 
    época, e no próprio Monteiro Lobato consigo mesmo e com o que 
    havia escrito anteriormente. Monteiro Lobato adota uma postura mais realista-naturalista, 
    no sentido que esses termos definem o grande movimento literário que 
    se estende do século XIX até o modernismo, no primeiro quarto 
    do século XX, e passa a explicar o nosso Jeca como produto do meio 
    físico e social: verminose, subnutrição, analfabetismo 
    e descaso das autoridades compõem o drama de sua indolência, 
    de sua resignação, de sua entrega ao destino dos derrotados, 
    de sua desistência de quaisquer futuros. Tudo isso dele, Jeca Tatu, 
    e do brasileiro, em geral, cujas condições de vida era preciso 
    mudar com urgência. 
  A 
    popularidade de Jeca Tatu cresceu tanto que inspirou reclames, como era, então, 
    chamada a publicidade, e tipos que consagraram atores no rádio, no 
    cinema e mesmo, nos seus começos, na televisão. 
  O 
    Biotônico Fontoura, o Leite de Cacau Xavier foram associados à 
    solução dos problemas da falta de vontade do Jeca, mostrando 
    que o mal não era congênito e que, portanto, tinha solução 
    e que a solução estava ali, à disposição 
    e ao alcance de todos, não como garrafada mas como produto qualificado 
    credenciado e acreditado pelos efeitos energéticos redentores da indolência. 
    Mazzaroppi, Zé Trindade, a dupla Jararaca e Ratinho e muitos outros, 
    com grande destaque para o primeiro, consagraram a caipirice do falso bobo 
    e a esperteza marota da sabedoria singela como predicados de grande sucesso 
    e de grande poder de agregação de valores positivos na composição 
    do caráter e da identidade do brasileiro. 
  A 
    saga das doenças tropicais gerou vários outros grandes momentos 
    na literatura e na cultura brasileiras. Uma delas, para não falar de 
    outras, a que está narrada no livro de contos de Guimarães Rosa, 
    Sagarana, de 1946, obra que marcou sua estréia luminosa na 
    literatura brasileira. 
  Sagarana 
    contém nove contos, sendo “Sarapalha” um deles. 
  A 
    narrativa se passa no povoado de Pará de Vilelas, na estrada que liga 
    a rodovia Fernão Dias a Cláudio, em Minas Gerais: “é 
    ali, na beira do Pará”, como escreve o autor. 
  É 
    uma estória de amor, de perda, de abandono e de solidão, individual 
    e social por cujos muros e cercas de heras e mataria cresce e assoberba, a 
    malária, a febre, a sezão. 
  Todos 
    se vão do povoado. Quem não vai morre. Quem fica morre também. 
  Primo 
    Argemiro e Primo Ribeiro permanecem assistindo à doença avançar 
    e crescer sobre si mesmos. Ribeiro obtém de Argemiro a promessa de 
    enterrá-lo no cemitério do povoado. Lembra de sua mulher, Luísa, 
    também sua prima que o abandonou fugindo com um boiadeiro. 
  Os 
    dois estão sós no diálogo da solidão, assistido, 
    impotente e solidário, pelo cachorro Jiló. 
    Argemiro confessa a Ribeiro o seu amor por Luísa, dizendo-lhe que essa 
    foi a razão de ter ido morar com eles e que gostaria de ter sido ele, 
    e não o boiadeiro, a levar Luiza embora. 
  Ribeiro 
    expulsa Argemiro, enquanto aumenta o frio e os arrepios da maleita: 
 
 
   
    “ 
      Ir, para onde? 
    ...A 
      primeira vez que Argemiro dos Anjos viu Luizinha, foi numa manhã 
      de dia-de-festa-de-santo, quando o arraial se adornava com arcos de bambu 
      e bandeirolas, e o povo se espalhava contente, calçado e no trinque, 
      vestido cada um com a sua roupa melhor... 
    Ir 
      para onde?... Não importa, para a frente é que a gente vai!... 
      Mas, depois. Agora é sentar nas folhas secas, e agüentar. O 
      começo do acesso é bom, é gostoso: é a única 
      coisa bôa que a vida ainda tem. Pára, para tremer. E para pensar. 
      Também. 
    Estremecem, 
      amarelas, as flores da aroeira. Há um frêmito nos caules rosados 
      da herva-de sapo. A herva-de-anúm crispa as fôlhas, longas, 
      como fôlhas de mangueira. Trepidam, sacudindo as suas estrelinhas 
      alaranjadas, os ramos da vassourinha. Tirita a mamona, de fôlhas peludas, 
      como o corselete de um cassununga, brilhando em verde-azul. A pitangueira 
      se abala, do jarrete à grimpa. E o açoita-cavalos derruba 
      frutinhas fendilhadas, entrando em convulsões. 
    -- 
      Mas, meu Deus, como isto é bonito! Que lugar bonito p’r’a 
      gente deitar no chão e se acabar!... 
    E’o 
      mato, todo enfeitado, tremendo também com a sezão.” 
   
 
 
  As 
    chamadas doenças tropicais são um problema presente e constante 
    na vida das populações dos países cuja situação 
    geo-política, econômica, climática, e social constituem 
    condições propícias ao seu surgimento e proliferação. 
  O 
    combate à doença de chagas, à febre amarela, à 
    leishmaniose, à malária, à dengue, tem mobilizado a sociedade 
    e os governos na busca de soluções, mais permanentes e no estabelecimento 
    de políticas públicas que conduzam a medidas de prevenção 
    mais dinâmicas e eficientes. 
  No 
    Brasil, cientistas dedicados e inovadores, como Emílio Goeldi e Oswaldo 
    Cruz, criaram paradigmas de militância institucional que resultaram 
    na consolidação de toda uma cultura voltada ao combate, à 
    prevenção e ao tratamento dessas doenças. 
  No 
    plano internacional várias ações têm sido desencadeadas 
    no mesmo sentido, envolvendo, inclusive, grandes laboratórios farmacêuticos, 
    como é o caso da Novartis e o seu centro de pesquisas de doenças 
    tropicais que mantém em Cingapura. 
  Como, 
    à exceção da febre amarela, não há vacinas 
    para essas doenças e como a maior ou menor eficácia do tratamento 
    está relacionada com o grau de precocidade em que ele é iniciado, 
    é fundamental que os países que estão na geografia de 
    seu alcance, como o Brasil, tenham políticas de saúde pública 
    cada vez mais consistentes e adequadas às ações de enfrentamento 
    dessas doenças. 
  Nesse 
    sentido, tinha mais razão o escritor do que o fazendeiro Lobato, ficando 
    para a triste beleza de “Sarapalha”, de João Guimarães 
    Rosa, a inscrição na qual as circunstâncias da doença 
    tecem e retecem, na localidade pequena e circunscrita da beira do Pará, 
    com os fios da universalidade do amor, da perda, da saudade, do orgulho, da 
    solidão e do abandono, os mitos que nos contam e nos mostram em nossa 
    orgulhosa e frágil condição humana. 
      
   
 
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