Políticas 
    de C&T e Saúde Pública 
  Mariza Velloso 
    Fernandez Conde
  Os avanços 
    científicos na área biomédica da primeira metade do século 
    passado, representados pelo desenvolvimento de antibióticos, de vacinas 
    e de modernas tecnologias de saneamento, trouxeram como resultado o controle 
    ou prevenção de diversas doenças infecciosas. Os esforços 
    de vacinação coordenados em nível mundial levaram à 
    eliminação ou drástica redução da incidência 
    de doenças como a poliomielite, coqueluche, difteria e varíola. 
    Os antibióticos permitiram o combate de infecções bacterianas, 
    como meningite e pneumonia, que anteriormente eram quase sempre fatais. E 
    pesticidas químicos auxiliaram na redução da incidência 
    de doenças transmitidas por vetores como a malária, a doença 
    de Chagas e a dengue. 
  No entanto, 
    as últimas décadas do século XX assistiram à emergência 
    de novas doenças como a aids, hepatite C, ebola, encefalopatia espongiforme 
    (“vaca louca”), a gripe do frango, a Síndrome Respiratória 
    Aguda Grave (Sars), entre outras, e à reemergência ou 
    recrudescimento de doenças que pareciam sob controle, como a dengue, 
    cólera, malária, difteria, febre amarela e tuberculose. A crescente 
    resistência bacteriana aos antibióticos também veio se 
    somar às dificuldades para o controle dessas doenças e as ações 
    e ameaças de bioterrorismo complicaram este quadro ainda mais. 
  Diante deste 
    panorama, o otimismo inicial do século passado teve que ser revisto, 
    e a década de 1990 foi marcada por intensa mobilização 
    internacional no sentido de estruturar e fortalecer a capacidade dos países 
    para responder à "ameaça microbiana". Essa capacidade 
    de reposta requer um sistema efetivo de vigilância e controle das doenças 
    transmissíveis que depende essencialmente de uma infra-estrutura de 
    pesquisa forte e estável. Estudos científicos dos agentes infecciosos 
    e das doenças comporiam uma base de conhecimentos para o desenvolvimento 
    ou aperfeiçoamento de testes diagnósticos para identificar as 
    doenças, de medicamentos para tratá-las e vacinas para preveni-las. 
    
  No entanto, 
    os investimentos públicos e privados em pesquisa e desenvolvimento 
    na área da saúde não estão direcionados para esses 
    problemas. A maior parte desses investimentos – em torno de 90% – 
    é utilizada para a pesquisa dos problemas de saúde de 10% da 
    população mundial. Conseqüentemente, os restantes 10% são 
    utilizados para pesquisar problemas que afetam 90% da população 
    mundial. Essa disparidade tem sido designada de Desequilíbrio 10/90. 
    
  Vale relembrar 
    que as doenças infecciosas e parasitárias ainda permanecem hoje 
    como a maior causa mundial de morbidade e mortalidade, e em muitos países 
    concorrem como principal causa de sofrimento e morte prematura. Elas afetam 
    desproporcionalmente os países em desenvolvimento e os segmentos populacionais 
    mais pobres e, na maioria dos casos, as desigualdades econômicas e sociais 
    são centrais para sua persistência e disseminação.
  Diante dessas 
    constatações, iniciativas de políticas de C&T para 
    enfrentamento desses problemas tiveram início naquela década 
    [1990]. No plano internacional, a Organização Mundial da Saúde 
    constituiu, em 1994, um Comitê ad hoc sobre a Pesquisa em Saúde 
    para estudar as opções futuras da pesquisa, cujo relatório 
    de 1996 recomendou a criação de um Fórum Global para 
    a Pesquisa em Saúde, que teria como objetivo mobilizar forças 
    para auxiliar na correção do Desequilíbrio 10/90. O Programa 
    Especial para a Pesquisa e Capacitação em Doenças Tropicais 
    – TDR, co-patrocinado pelo Banco Mundial, Organização 
    Mundial de Saúde e pelo Programa das Nações Unidas para 
    o Desenvolvimento, foi reestruturado para acompanhar as mudanças e 
    avanços da pesquisa das doenças infecciosas e, a partir de 1998, 
    passou a dar mais ênfase ao componente do programa que visava ao fortalecimento 
    da capacidade de pesquisa, especialmente nos países em desenvolvimento. 
    O Fórum Global para a Pesquisa em Saúde, criado em 1997 como 
    uma entidade independente, elegeu o Desequilíbrio 10/90 como principal 
    problema da pesquisa em saúde enfatizando a necessidade de fortalecer 
    a capacidade de pesquisa nos países em desenvolvimento como uma das 
    estratégias mais efetivas para a reversão do Desequilíbrio. 
    
  Nesta nova 
    perspectiva, formular políticas de pesquisa em saúde com o intuito 
    de estruturar agendas de pesquisa, ou seja, de estabelecer mecanismos de priorização 
    de áreas e temas a serem pesquisados, tornou-se imprescindível. 
    Os processos de priorização foram considerados negligenciados 
    até aquele momento e essa falha contribuiria para a perpetuação 
    daquele desequilíbrio. Nesse sentido, o estabelecimento de prioridades 
    da pesquisa em saúde em nível global, nacional e local seria 
    o mecanismo mais fundamental para direcionar o fortalecimento da capacidade 
    de pesquisa em saúde e para reverter o Desequilíbrio 10/90.
  As repercussões 
    dessas diretrizes, no plano nacional, deram início a um amplo processo 
    de discussão para prover o setor saúde de uma retaguarda científica 
    e tecnológica sintonizada com as especificidades regionais e necessidades 
    de saúde locais. O fortalecimento da articulação entre 
    o sistema de saúde e o sistema de ciência e tecnologia seria 
    central para esse propósito. Considerando a importância estratégica 
    da pesquisa em saúde, processos de construção de agenda 
    liderados pelo Ministério da Saúde e pelo CNPq, e apoiados pela 
    Organização Panamericana de Saúde (OPAS), tiveram início 
    em 1991, com a realização do seminário Ciência 
    e Tecnologia em Saúde: Definição de Políticas, 
    Necessidades e Possibilidades. A reunião promovida pela Academia Brasileira 
    de Ciências em 1994, em que foram definidas as macrodiretrizes para 
    uma política brasileira de ciência e tecnologia em saúde 
    e a realização, nesse mesmo ano, da I Conferência Nacional 
    de Ciência e Tecnologia em Saúde marcaram a participação 
    da comunidade científica e de usuários nesses processos. 
  Como conclusão 
    desses processos, considerados pelo CNPq como no âmbito do planejamento 
    estratégico, foi instituído, em 1997, o Programa de Indução 
    Estratégica à Pesquisa em Saúde (PIE/Saúde) como 
    um instrumento de indução de pesquisas no setor. E, para sua 
    implementação, optou-se por atender à temática 
    das Doenças Infecciosas e Parasitárias Novas, Emergentes e Reemergentes.
  A criação 
    de um departamento no Ministério da Saúde com a missão 
    de desenvolvimento e apoio às políticas de C&T na área 
    de saúde, as diversas reuniões promovidas pelo Ministério 
    com a comunidade científica em 2003, a publicação da 
    Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde em 2004, e a realização 
    da II Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação 
    em Saúde, nesse mesmo ano, deram prosseguimento ao ordenamento dos 
    esforços nacionais de C&T em saúde. Desse modo, o período 
    introduziu uma política de indução de desenvolvimento 
    de pesquisas em áreas estratégicas e as doenças transmissíveis 
    compareceram como uma das áreas prioritárias desses esforços.
  Paralelamente, 
    considerando a importância crescente da geração de inovações 
    tecnológicas para o desenvolvimento econômico e a fragilidade 
    das empresas nacionais neste quesito, as políticas de C&T formuladas 
    no país ao final da década de 90 e nos anos 2000 apresentam 
    o estímulo à inovação no setor privado como ponto 
    central. Um conjunto de iniciativas que tinham como meta a promoção 
    da inovação foi desenvolvido e/ou implementado nesse período. 
    A criação dos Fundos Setoriais para financiamento da P&D, 
    a realização da Conferência Nacional de Ciência, 
    Tecnologia e Inovação e novas leis de Informática, de 
    Acesso à Biodiversidade e de Biossegurança, além da Lei 
    da Inovação, são exemplos dessas iniciativas, que introduziriam 
    mudanças tão significativas no arcabouço institucional 
    e legislativo que chegaram inclusive a ser caracterizadas como uma reforma 
    do setor de C&T. 
  Com isso, 
    algumas propostas mais recentes no âmbito do Ministério da Ciência 
    e Tecnologia sinalizam uma reorientação da política de 
    C&T em Saúde que expressa a perspectiva predominante na política 
    nacional de C&T, ou seja, a constituição ou fortalecimento 
    de um sistema nacional de inovação em saúde. Embora essa 
    reorientação indique duas vertentes, forjar parcerias que visem 
    ao fortalecimento da indústria nacional e realizar atividades de pesquisa 
    e desenvolvimento dirigidas aos problemas de saúde do país, 
    a ênfase tem recaído na primeira vertente, de promoção 
    da articulação dos atores públicos e privados relevantes 
    para a constituição de um sistema de inovação 
    em saúde no país, com aproximação entre as atividades 
    de pesquisa e a produção industrial.
  Os achados 
    de investigação sobre as atividades e resultados da pesquisa 
    biomédica, que conduzimos recentemente, evidenciaram que, além 
    de produzir novos conhecimentos científicos acrescidos ao estoque de 
    conhecimento, os laboratórios de pesquisa biomédica geram conhecimentos 
    que são transferidos, sob diversas formas, a diversos usuários: 
    a empresas e indústrias, a universidades, a outros institutos de pesquisa, 
    a museus e escolas e, principalmente, ao Sistema Único de Saúde. 
    Neste último caso, atividades de base científico-tecnológica 
    secundárias à pesquisa biomédica são essenciais 
    para o controle das doenças endêmicas, epidemias e para a vigilância 
    das doenças emergentes e reemergentes, inclusive aquelas relacionadas 
    com o bioterrorismo. A participação dos laboratórios 
    do Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz na resposta imediata aos problemas emergentes 
    como a SARS e o antraz fornecem a dimensão da importância das 
    capacidades e competências técnico-científicas acumuladas 
    pelos laboratórios de pesquisa biomédica no país para 
    as estratégias de enfrentamento, não somente das doenças 
    transmissíveis endêmicas, mas também de patógenos 
    emergentes e ainda desconhecidos. 
  Para finalizar, 
    gostaríamos então de alertar que, a despeito da necessidade 
    de incrementar pesquisa e desenvolvimento em saúde que produzam maiores 
    aportes de conhecimentos ao setor industrial para a geração 
    de novas tecnologias úteis ao setor, também é fundamental 
    manter ou mesmo ampliar os investimentos em pesquisa e desenvolvimento que 
    servem de retaguarda ao SUS e, particularmente, ao sistema de vigilância 
    epidemiológica. 
  Deste modo, 
    a tensão entre as vertentes de aproximação do empreendimento 
    científico da saúde ao setor industrial e/ou ao sistema de saúde 
    será resolvida em perspectivas integradoras de políticas de 
    C&T em saúde, minimizando possíveis efeitos adversos para 
    a saúde pública.
  Mariza Velloso 
    Fernandez Conde é analista de C&T do Instituto Oswaldo Cruz / Fiocruz 
    e doutora em Política Científica e Tecnológica (IG / 
    Unicamp).