As
múltiplas frentes da batalha contra a malária 
A primeira
vacina contra a malária pode estar disponível no mercado
no ano de 2010, e diversas outras vacinas e medicamentos estão
sendo investigados. Os remédios existentes enfrentam
crescentemente o problema da resistência dos plasmódios, e
uma vacina representará uma poderosa arma no combate à
infecção. A doença mata anualmente cerca de 1
milhão de indivíduos, e entre 300 e 500 milhões
são infectados, segundo a OMS, mas os números podem estar
subestimados. Mulheres grávidas, que sofrem uma
diminuição da resposta imunológica a
substâncias e organismos invasores, e crianças, sobretudo
as que têm menos de 5 anos, ainda não foram
suficientemente expostas aos parasitas de modo a desenvolver uma
defesa. 
As
crianças representam o principal alvo da candidata a vacina mais
promissora, atualmente na segunda fase dos testes clínicos, que
é produzida pela Glaxo SmithKline (GSK) Biologicals, da
Bélgica, e testada em parceria com a Malaria Vaccine Initative
Programme for Apropriate Technology in Health (MVI-PATH). Essa
organização-não governamental foi criada em 1999,
com verba da Fundação Bill & Melinda Gates e objetivo
específico de acelerar a pesquisa e desenvolvimento da vacina
contra a malária. O alto custo do processo fez a GSK buscar
parceria da MVI.
Por outro lado, o mercado potencial é grande: em 2010, a equipe
estima que 3,5 bilhões de pessoas habitarão áreas
em que a doença é transmitida. Os resultados obtidos nos
primeiros testes com crianças foram publicados na revista The
Lancet, em outubro de 2004.
  O princípio ativo 
    da vacina consiste no pedaço de uma proteína da superfície 
    celular do esporozoíto, forma do Plasmodium falciparum, o 
    mais letal dos plasmódios, que infecta o organismo humano - denominada 
    proteína do circum-esporozoíto (CSP, sigla em inglês) 
    -. Por meio de engenharia genética, uma parte da receita para a fabricação 
    dessa proteína foi fundida com as instruções para produção 
    de uma proteína de superfície do vírus da hepatite B, 
    e a fusão foi inserida em leveduras (Saccharomyces). A substância 
    formada, nas células das leveduras, a partir dessas instruções, 
    se dobra de modo tal que forma partículas que geram muito mais resposta 
    imune do que provocaria se não assumisse essa conformação. 
    "A fusão é uma das razões, efetivamente, pelas quais 
    obtivemos uma melhor resposta imunológica", diz Jean Stéphenne, 
    presidente da GSK e que trabalha há mais de 20 anos nessa busca e viu 
    muitas possibilidades serem testadas sem sucesso. 
   Mas a vacina tem outro 
    'segredo': um novo adjuvante (substância que incrementa o efeito farmacológico 
    de um medicamento ou as propriedades imuno-estimulantes de um antígeno), 
    de propriedade da GSK, que contém na fórmula o monofosforil 
    lipídio A (MPL) e o QS-21. "Essas substâncias estimulam 
    diferentes aspectos do sistema imunológico, em particular, respostas 
    humorais - produção de anticorpos -, e respostas celulares, 
    por meio do linfócito T", explica Stéphenne. Recrutado, 
    o linfócito ataca as células que hospedam o parasita, o que, 
    tudo indica, é necessário para que haja, de fato, proteção, 
    com a eliminação dos reservatórios da doença. 
    "Para que uma vacina seja efetiva, deve ser composta de antígenos 
    do protozoário que sejam relativamente invariáveis e essenciais 
    para sua sobrevivência", acrescenta Shirley Longacre, pesquisadora 
    do Instituto Pasteur, na França. Outro requerimento a ser preenchido: 
    os antígenos têm de ser apresentados à defesa humana de 
    modo que sejam reconhecidos como 'estranhos' e 'perigosos', provocando uma 
    resposta imune efetiva que não resulte numa toxicidade inaceitável 
    para o paciente. Longacre e sua equipe acreditam ter encontrado na MSP1p19, 
    ou proteína de superfície 1 do merozoíto - forma do plasmódio 
    que infecta as hemácias -, uma candidata com as características 
    desejadas: para invadir as células vermelhas do sangue, o plasmódio 
    precisa dela, que mostra pouca variação de uma linhagem a outra. 
    
Modelos
animais
  Antes de avaliar os efeitos 
    dos antígenos sobre o organismo humano, os cientistas lançam 
    mão de modelos animais. No Centro Médico da Universidade Leiden, 
    na Holanda, Andy P. Waters é membro da equipe que estuda os genes do 
    Plasmodium berghei, que infecta ratos e camundongos de laboratório, 
    e apresenta entre 4500 e 5500 genes equivalentes aos do P. falciparum. 
    "Muitos genes que codificam equivalentes de antígenos candidatos 
    a vacina contra o P. falciparum foram encontrados: CS, LSA-1, MSP-1, 
    Pfs28, Pfs25, a lista é longa", diz. Segundo Waters, o modelo 
    reproduz virtualmente todos os aspectos da biologia dos parasitas humanos, 
    permite estudar as interações com o hospedeiro in vivo e representa 
    um sistema seguro, uma vez que o plasmódio do roedor não infecta 
    o homem. Sobre os alvos que seu grupo investiga, Waters faz segredo e diz 
    apenas que tenta compreender os mecanismos que regem o desenvolvimento do 
    plasmódio e a forma como ele percebe o ambiente. A partir desse conhecimento, 
    devem desenvolver novas terapias.
  "Quando injetado em macacos, 
    com os imuno-estimulantes adequados, o pedaço do MSP induz a produção 
    por anticorpos que protegem os animais numa subseqüente exposição 
    ao plasmódio", conta. Provavelmente, de acordo com Longacre, os 
    anticorpos atuam de duas maneiras distintas. A primeira, ligando-se ao antígeno 
    de superfície do merozoíto, impedindo-o de funcionar corretamente, 
    o que inibe a invasão da hemácia. A segunda seria uma colaboração 
    com outras células de defesa, os macrófagos; que seriam induzidos 
    a destruir os merozoítos. O Instituto Pasteur planeja iniciar a primeira 
    fase de testes clínicos em 2006.
Entretanto, em
que medida as reações imunológicas dos animais se
assemelham às reações humanas? A resposta a essa
questão permanece em aberto, tornando necessário o teste
de antígenos candidatos diretamente em voluntários. Em
laboratório, sob condições controladas, os
indivíduos que se dispõem a tal são submetidos
à picada do anófeles e, conseqüentemente, à
infecção pelo plasmódio. Assim, os cientistas
podem estudar em que consiste exatamente a resposta imunológica
do organismo humano e se a imunização contra o
plasmódio, de fato, requer o estímulo a respostas
celulares.
Corrida
armamentista
  É comum aos protozoários 
    se multiplicarem, atingindo a ordem de dezenas de milhares, muito rapidamente. 
    O plasmódio, como outros protozoários que causam doença, 
    passa grande parte de seu ciclo de vida, dividido entre três formas 
    (esporozoíto, merozoíto e gametócito), no interior das 
    células do hospedeiro. No homem, invade as células do fígado 
    e os glóbulos vermelhos do sangue. Além disso, o plasmódio 
    tem mecanismos para mudar constantemente as características que, diante 
    da defesa do organismo, lhes servem como credenciais: os antígenos 
    de superfície. A variação genética existente nas 
    populações selvagens do protozoário é outro fator 
    que dificulta o reconhecimento do 'inimigo'. "Assim, o sistema imunológico 
    tem dificuldades em reconhecer a maioria das linhagens ou todas aquelas com 
    que um indivíduo pode deparar, particularmente numa região de 
    alta transmissão", explica Longacre. 
  Outra conseqüência 
    do polimorfismo genético do plasmódio é que ele pode 
    proporcionar o desenvolvimento rápido de resistência contra remédios. 
    Karen Hayton, do Laboratório de Pesquisa da Malária e Vetor, 
    dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, EUA), estuda as mutações 
    genéticas que conferem resistência à cloroquina, atribuídas 
    ao gene que seria de uma proteína transportadora, a PfCRT. "A 
    identificação dos genes envolvidos na resistência aos 
    medicamentos é importante para compreender e prever como a resistência 
    a um certo remédio aparece, abrindo caminho para que os inibidores 
    serem redesenhados", diz Hayton. 
  Para lidar com a resistência, 
    no Brasil, pesquisadores do Centro de Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas 
    e Biológicas (CPQBA), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 
    aclimataram às condições locais o arbusto Artemisia 
    annua. Essa planta é usada na China há milhares de anos 
    contra a febre e representa um recurso importante contra as linhagens resistentes 
    do plasmódio. De acordo com Adilson Sartoratto, pesquisador do CPQBA-Unicamp, 
    um convênio deve ser assinado com a empresa Labogen, e o remédio 
    com base na artemisinina e seus derivados pode estar disponível dentro 
    de um ano, mas somente para campanhas de saúde pública - não 
    será vendido em farmácias. Outro grupo que trabalha contra a 
    resistência do plasmódio é coordenado por Luiz Hildebrando 
    Pereira da Silva, no Centro de Pesquisa em Medicina Tropical (Porto Velho, 
    RO), desenvolvendo pesquisas em colaboração com outros centros 
    como a USP, a Fiocruz e o Pasteur. "Neste momento, desenvolvemos estudos 
    e projetos ligados à resistência de antimaláricos (in 
    vivo e in vitro) dentro de um grupo multicêntrico, ligado ao Ministério 
    da Saúde e a OPAS", conta o pesquisador Mauro Shugiro. 
  Outras frentes de pesquisa 
    envolvem a busca de inseticidas ou repelentes mais eficazes, ou, por meio 
    de engenharia genética, a criação de mosquitos incapazes 
    de transmitir a doença. Essa última abordagem encontra um empecilho 
    nos riscos associados à introdução deliberada de um organismo 
    transgênico no ambiente. Diversos laboratórios no mundo se dedicam 
    ao trabalho de prospecção de alvos potenciais, por meio da genômica 
    e da proteômica - estudos, respectivamente, de genes e proteínas 
    em larga escala -. "A seqüência genômica fornece informações 
    que ajudam a identificar vias bioquímicas que não existem em 
    humanos e poderiam, portanto, servir de alvo para drogas", afirma Malcolm 
    Gardner, biólogo molecular do Instituto para Pesquisa Genômica 
    (TIGR), nos Estados Unidos. Seqüências completas ou incompletas 
    foram obtidas para os parasitas de: humanos - Plasmodium falciparum 
    e P. vivax; roedores - P. yoelii, P. chabaudi, P. berghei; 
    e macaco (P. knowlesi). Em 2001, foi concluído o seqüenciamento 
    do genoma humano e, no ano seguinte, foi a vez do mosquito Anopheles gambiae. 
    
  De acordo com Gardner, 
    são diversas as aplicações potenciais. "Acreditamos 
    poder utilizar os dados do genoma para acelerar a pesquisa e alcançar 
    uma compreensão melhor e mais detalhada das interações 
    hospedeiro-parasita-vetor", conta. Em relação ao mosquito, 
    novos repelentes serão desenhados com o entendimento molecular sobre 
    como ele encontra as vítimas a serem picadas. Quanto ao parasita, novas 
    drogas e vacinas terão como alvo moléculas essenciais de seu 
    metabolismo. Para os humanos, testes diagnósticos ajudarão a 
    identificar os pacientes sob maior risco de desenvolver as formas severas 
    da doença, como a malária cerebral. 
  A análise das proteínas 
    tem indicado outros alvos. "Nenhum pode, a essa altura, ser descartado", 
    afirma H. Stunnenberg, do Centro Molecular de Ciências da Vida da Radboud 
    University Nijmegen, Holanda. "Os estudos que realizamos vão colocar 
    no cenário as deacetilases (HDACs, que removem grupamentos acetil) 
    de histonas (proteínas que fazem parte da estrutura do DNA) e outras 
    enzimas que fazem modificações epigenéticas". A 
    epigenética é uma área florescente que investiga alterações 
    na expressão dos genes que não estão codificadas nas 
    quatro letras (A, T, G e C) do código genético: metilação 
    do DNA, interferência de RNA e acetilação de histonas, 
    por exemplo. No Instituto Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo 
    Cruz, de acordo com a pesquisadora Maria de Fátima Ferreira da Cruz, 
    do Laboratório de Pesquisa em Malária, sua equipe tem usado 
    os dados da proteômica e também os relativos à variação 
    genética (polimorfismo) do plasmódio para desenvolver candidatas 
    a vacinas. 
Na busca de
novos medicamentos, merecem destaque os projetos que a
fundação Medicines for Malaria Venture (MMV) e a MVI
realizam em colaboração com empresas (não somente
do setor farmacêutico), laboratórios militares,
universidades e instituições como a
Organização Mundial da Saúde (OMS). Os parceiros
da MMV vêm investigando o potencial terapêutico de diversas
substâncias: falcipaína, piridonas, peróxidos
sintéticos, derivados do antibiótico tetraciclina,
terapias que combinam diversos derivados da artemisinina e a DB289, que
atualmente passa pela primeira fase dos testes clínicos. No
portfólio da MVI, entre os antígenos, encontram-se:
LSA-1, MSP-1, AMA-1, MSP-2, MSP-4, MSP-5, RAP-2, FMP-1 ? os dois
primeiros estão em desenvolvimento pré-clínico. A
lista é grande e promissora. No entanto, da
identificação de moléculas potencialmente
úteis ao mercado, o caminho é longo e, muitas vezes, tem
de ser interrompido porque a promessa não se realiza. Como
há diversas frentes de investigação, segundo os
cientistas, é preciso haver também uma
combinação de estratégias para haver um combate
efetivo da malária. 
(FN)