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Vigilância epidemiológica: a perspectiva de quem é responsável

Luiz Jacintho da Silva [1]

Introdução

Convencionou-se designar determinadas doenças, a maioria delas parasitárias ou transmitidas por vetor, como “tropicais”, geralmente pela sua inexistência nos países industrializados do hemisfério norte e presença nas antigas colônias das regiões tropicais. Na verdade, raras e geralmente sem maior importância são as doenças efetivamente “tropicais”, isto é, encontradas exclusivamente na região tropical.
No Brasil, essas doenças, quando de relevância em saúde pública, foram denominadas “endemias”, “grandes endemias” ou “endemias rurais”. Essas doenças foram e são, a malária, a febre amarela, a esquistossomose, as leishmanioses, as filarioses, a peste, a doença de Chagas além do tracoma, da bouba, do bócio endêmico e de algumas helmintíases intestinais, entre elas a ancilostomíase.

A lógica era o impacto dessas doenças em saúde pública. Ainda hoje, esta conceituação de “endemias” é adotada pelo Ministério da Saúde.
Essas doenças, predominantemente rurais, constituíram a preocupação central da saúde pública brasileira por quase um século até que diversos fatores, notadamente a urbanização, desfizeram as razões de sua existência enquanto corpo homogêneo de preocupação. Não obstante, muitas delas ainda permanecem como problemas de saúde pública, ainda que com menor impacto. Neste artigo, essas doenças formam o cerne da discussão.

Vigilância epidemiológica: conceito e desenvolvimento

Dentre as medidas recomendadas para o controle ou mesmo erradicação das doenças infecciosas, se destaca a vigilância epidemiológica .
A vigilância é hoje a ferramenta metodológica mais importante para a prevenção e controle de doenças em saúde pública. É consensual no discurso de todas as entidades de saúde pública mundo afora, desde as de âmbito internacional até as de abrangência local que não existem ações de prevenção e controle de doenças com base científica que não estejam estruturadas sobre sistemas de vigilância epidemiológica[2].
Vigilância e investigação de doenças infecciosas, assim como de seu controle, seja de casos isolados ou de surtos, são inseparáveis em conceito e em ação, uma inexiste na ausência da outra. Constituem, sem dúvida, as ações fundamentais e imprescindíveis de qualquer conjunto de medidas de controle de doenças infecciosas e adquirem hoje uma importância fundamental.

Antes de adentrar na discussão, cabe lembrar que vamos considerar doenças passíveis de vigilância, ou de notificação compulsória, como um conceito e não como uma listagem de doenças. Isso porque para alcançar o status de notificação compulsória é imprescindível que exista uma política pública de controle ou de ações com relação à doença, sob o risco de se incorrer em erro grave. É totalmente desprovida de senso lógico a vigilância de uma doença sem que isso deflagre, ou pelo menos subsidie, um conjunto de medidas de saúde pública.

Decorrência inevitável da definição acima é que vigilância, investigação e controle são uma só entidade.
A vigilância epidemiológica é uma ação cujas origens se perdem nas brumas dos tempos, não cabe aqui discorrer sobre a sua história, outros já o fizeram, sem dúvida muito melhor do que eu o faria. Os motivos para a vigilância epidemiológica variaram ao longo da história, mas sempre tinham como objetivo final proteger a saúde pública, ainda que muitas vezes de forma inadequada, mas sempre bem intencionada.

Um breve histórico

Parece existir o consenso de que são dois os marcos históricos da vigilância epidemiológica no Brasil, o primeiro tendo sido a campanha de erradicação da varíola, no final da década de 1960 e início da década de 1970 e o segundo a criação do SUS, no final da década de 1980.

Em meados da década de 1970, surgiram os primeiros documentos legais instituindo e regulamentando um Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica.[3]
Pode ser entendido que existe uma diferença qualitativa entre esses dois momentos, durante campanha de erradicação da varíola houve não só a afirmação da vigilância epidemiológica como uma ferramenta essencial na saúde pública, como também a formação de recursos humanos na área. Essa massa crítica de epidemiologistas, uma vez erradicada a varíola, veio a ocupar as mais diferentes funções nos serviços de saúde, tanto federal como estaduais, levando consigo não só o conhecimento técnico em vigilância epidemiológica como a convicção clara da sua importância. Talvez mesmo devido à existência do primeiro momento é que o segundo ocorreu. Quando do estabelecimento das bases para a criação do SUS, a epidemiologia e, mais especificamente, a vigilância, foram reiteradas como base técnica indispensável para o planejamento das ações do futuro sistema de saúde. Foi como que um escudo técnico que se buscou criar em torno das ações de saúde para protegê-las de uma eventual e temida manipulação política.

Estabelecida a vigilância epidemiológica como a área de conhecimento cujo domínio era imprescindível para o planejamento e implementação das ações de saúde, deu-se um movimento da capacitação ampla dos recursos humanos empregados ou a serem empregados nos diferentes níveis do SUS.

Coincide esse período com a criação do Centro Nacional de Epidemiologia (Cenepi), o Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE) da Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo e outros tantos equivalentes em outros estados.

O Cenepi acabou desempenhando o papel de coordenador ou articulador da pesquisa e discussão em vigilância epidemiológica, não só através de suas publicações, como o Informe Epidemiológico do SUS, como pela indução de pesquisas na área e o fomento de discussões em congressos específicos, como o I Congresso Brasileiro de Epidemiologia, realizado no início da década de 1990.

Na área acadêmica, a discussão sobre vigilância epidemiológica foi conduzida pela Associação Brasileira de Pós Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), associação que acumula as funções de uma sociedade científica de epidemiologia, uma vez que não existe, no Brasil, uma sociedade científica ou acadêmica de epidemiologia. A pesquisa em epidemiologia se desenvolveu o suficiente para comportar um congresso próprio, no momento bienal.

Evolução do conceito

Na primeira metade da década de 60 consolidou-se, internacionalmente, uma conceituação mais abrangente de vigilância epidemiológica, em que eram explicitados seus propósitos, funções, atividades, sistemas e modalidades operacionais. Vigilância epidemiológica foi, então, definida como:

... o conjunto de atividades que permite reunir a informação indispensável para conhecer, a qualquer momento, o comportamento ou história natural das doenças, bem como detectar ou prever alterações de seus fatores condicionantes, com o fim de recomendar oportunamente, sobre bases firmes, as medidas indicadas e eficientes que levem à prevenção e ao controle de determinadas doenças”.

No Brasil, esse conceito foi inicialmente utilizado em alguns programas de controle de doenças transmissíveis coordenados pelo Ministério da Saúde, notadamente a Campanha de Erradicação da Varíola (CEV), de 1966 a 1973. A experiência da CEV motivou a aplicação dos princípios de vigilância epidemiológica a outras doenças evitáveis por imunização, de forma que, em 1969, foi organizado um sistema de notificação semanal de doenças, baseado na rede de unidades permanentes de saúde e sob a coordenação das Secretarias Estaduais de Saúde. As informações de interesse desse sistema passaram a ser divulgadas regularmente pelo Ministério da Saúde, através de um boletim epidemiológico de circulação quinzenal. Tal processo propiciou o fortalecimento de bases técnicas que serviram, mais tarde, para a implementação de programas nacionais de grande sucesso na área de imunizações, notadamente na erradicação da transmissão autóctone do poliovírus selvagem na região das Américas.

Em 1975, por recomendação da 5ª Conferência Nacional de Saúde foi instituído o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SNVE). Este sistema, formalizado através da Lei no 6.259, do mesmo ano e Decreto no 78.231, que a regulamentou, em 1976, incorporou o conjunto de doenças transmissíveis então consideradas de maior relevância sanitária no país. Buscava-se, na ocasião, compatibilizar a operacionalização de estratégias de intervenção desenvolvidas para controlar doenças específicas, através de programas nacionais que eram, então, escassamente interativos.
A promulgação da lei 8.080, que instituiu em 1990, o Sistema Único de Saúde (SUS), teve importantes desdobramentos na área de vigilância epidemiológica. O texto legal manteve o SNVE, oficializando o conceito de vigilância epidemiológico como:

“... um conjunto de ações que proporciona o conhecimento, a detecção ou prevenção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes de saúde individual ou coletiva, com a finalidade de recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle das doenças ou agravos”.

Embora essa definição não modifique a essência da concepção até então adotada pelo SNVE, ela faz parte de um contexto de profunda reorganização do sistema de saúde brasileiro, que prevê a integralidade preventivo-assistencial das ações de saúde e a conseqüente eliminação da dicotomia tradicional entre essas duas áreas que tanto dificultava, e ainda dificulta, as ações de vigilância. Além disso, um dos pilares do novo sistema de saúde passou a ser a descentralização de funções, sob comando único em cada esfera de governo, federal, estadual e municipal o que implica no direcionamento da atenção para as bases locais de operacionalização das atividades de vigilância epidemiológica no país.

Dessa forma, a orientação atual para o desenvolvimento do SNVE estabelece, como prioridade, o fortalecimento de sistemas municipais de vigilância epidemiológica dotados de autonomia técnico-gerencial para enfocar os problemas de saúde próprios de suas respectivas áreas de abrangência. Espera-se, assim, que os recursos locais sejam direcionados para atender, prioritariamente, às ações demandadas pelas necessidades da área, em termos de doenças e agravos que lá sejam mais prevalentes. Nessa perspectiva, a reorganização do SNVE se pautar nos seguintes pressupostos, que resultaram de amplo debate nacional entre os técnicos da área, com base nos preceitos da reforma sanitária instituída e implementação no país:

  • heterogeneidade do rol de doenças e agravos sob vigilância no nível municipal, embora apresentando, em comum, aquelas que tenham sido definidas como de interesse do sistema nacional e do estadual correspondente;
  • distintos graus de desenvolvimento técnico, administrativo e operacional dos sistemas locais, segundo o estágio de organização da rede de serviços em cada município; incorporação gradativa de novas doenças e agravos, inclusive doenças não transmissíveis, aos diferentes níveis do sistema;
  • fluxos de informações baseados no atendimento às necessidades do sistema local de saúde, sem prejuízo da transferência, em tempo hábil, de informações para outros níveis do sistema; construção de programas de controle localmente diferenciados, respeitadas as bases técnico-científicas de referência nacional.

A relação de doenças de notificação nacional tem sofrido revisões durante as últimas décadas, em função de novas ações programáticas instituídas para controlar problemas específicos de saúde. Em 1998 foi procedida, pelo Centro Nacional de Epidemiologia (Cenepi), ampla revisão do assunto, que resultou na explicitação de conceitos técnicos sobre o processo de notificação, bem como dos critérios utilizados para a seleção de doenças e agravos notificáveis. Essa orientação servirá de base para a atualização da relação de doenças de notificação compulsória em âmbito nacional.

Em 2003, as atividades de vigilância epidemiológica e de controle de doenças foram retiradas da Fundação Nacional da Saúde (Funasa) e colocadas na recém-criada Secretaria de Vigilância da Saúde (SVS), órgão da administração direta do Ministério da Saúde. Esta medida administrativa segue uma tendência mundial de reunir todas as ações de vigilância numa só entidade[4] . Até então, a vigilância e os programas de controle da aids, da tuberculose e da hanseníase não estavam agrupados, ficando separados em áreas distintas do Ministério da Saúde. Com a criação da SVS, todas essas atividades foram reunidas numa só entidade administrativa, incluídas a vigilância das doenças e agravos não transmissíveis e a vigilância ambiental, duas vertentes até então virtualmente ignoradas.

A vigilância epidemiológica pode ser dividida, pelo menos didaticamente, em vigilância na estrutura e vigilância de casos. No primeiro caso se implanta um sistema que detecte a circulação, ou transmissão, do agente infeccioso, seja em humanos, seja em animais, seja no ambiente. No segundo, o sistema é montado para detectar a ocorrência de casos clínicos em humanos. As normas vigentes de notificação compulsória prevêem o segundo caso.

Durante décadas a vigilância epidemiológica se baseou em doenças específicas, infecciosas ou não. Com a complexidade das sociedades contemporâneas, a globalização da economia, os avanços da biologia molecular e a questão das doenças emergentes, o conceito de vigilância por doença específica se tornou insuficiente para fazer frente às demandas e necessidades da saúde pública. Houve uma mudança de paradigma, passando-se a propor a vigilância multi-doenças e a vigilância por síndromes. Essa mudança de paradigma não é mero modismo, e não exclui a vigilância clássica, por doença. A vigilância por síndromes incorpora a percepção de que as diferentes doenças infecciosas apresentam quadros muitas vezes semelhantes e variáveis, no tempo e no espaço. Não só a vigilância por síndromes pressupõe uma maior variabilidade de quadros clínicos, mas também incorpora os conceitos de resposta rápida e necessidade de investigação laboratorial ampla, inclusiva.

A situação atual

A vigilância epidemiológica é uma atividade exclusiva dos serviços públicos, ainda que não deva ser assim, necessariamente. Em vista desse fato, é relativamente fácil fazer uma avaliação da situação atual.

Com a implantação do SUS, foram introduzidos mecanismos de financiamento das ações de saúde. Esses mecanismos, no entanto, foram adaptados dos mecanismos anteriormente existentes, herdados do extinto Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS). Esses mecanismos preveêm apenas ações médico-hospitalares, essencialmente curativas e individualizadas. Não preveêm ações de saúde pública, essas, na estrutura de saúde anterior ao SUS, não competiam aos intstitutos de previdência, mas ao Ministério da Saúde. Até o final do século XX, não havia nenhum mecanismo de financiamento das ações assim ditas “coletivas”, entre elas a vigilância epidemiológica. O financiamento dessas ações era contemplado através de financiamentos diretos do Ministério da Saúde aos estados e municípios, geralmente através da Funasa, contemplando programas específicos de controle e repassados através de convênios. Isso resultou num viés das prioridades de vigilância e, consequentemente, de controle, determinadas não pelo contexto epidemiológico mas pelos interesses do Ministério da Saúde.

O resultado foi o desenvolvimento desigual da infra-estrutura de assistência médico-hospitalar em relação à de vigilância e controle de doenças.

Em 1999 o governo federal introduziu a Programação Pactuada Integrada – Epidemiologia e Controle de Doenças (PPI-ECD)[5] , um sistema de financiamento das ações de saúde coletiva, incluída aí a vigilância epidemiológica, baseada não no ressarcimento por atividade, mas no repasse de recursos, diretamente aos fundos municipais e estaduais de saúde, baseada num critério misto de população, extensão territorial e contexto epidemiológico. Esta sistemática, regulamentada pela Instrução Normativa [Funasa] Nº 02, de 6 de dezembro de 2001, representou um avanço significativo, que permitiu a criação e manutenção de diversos serviços municipais de vigilância epidemiológica.

O princípio dessa sistemática de financiamento já estava previsto na Norma Operacional Básica de 1996

Perspectivas

A tendência da saúde pública no concernente ao controle das doenças é bastante clara, cada vez mais a vigilância, isto é, a coleta e análise de dados, gerando informação para subsidiar as intervenções vem se tornando uma atividade insustituível.

O crescimento em importância da vigilância coincide com o fim da era industrial, com o surgimento da sociedade pós-moderna, estruturada na informação, o que é perfeitamente compreensível. A moderna saúde pública não pode prescindir da vigilância, daí que se observa a re-estruturação dos serviços de saúde pública a partir dessa lógica.

Infelizmente, instituições públicas são notoriamente refratárias à mudança, o que gera um descompasso em relação às necessidades vigentes em vigilância e controle de doenças.

Em época recente, a avaliação do que se convencionou denominar “carga da doença”[i] , sistemática recomendada pela Organização Mundial da Saúde para determinar o impacto de uma doença sobre uma dada população. Sem entrar em maiores detalhes, o planejamento de qualquer ação de controle deverá levar em conta a definição da doença e seu impacto sobre a mortalidade, a morbidade, a ocorrência de seqüelas, a opinião pública e o custo econômico. Essa avaliação nem sempre é objetiva, muitas vezes a opinião pública dificulta uma análise fria da situação, através da mobilização da sociedade civil, o que pode levar a uma alocação desigual de recursos para o controle de diferentes doenças, como pode ser comprovado com a aids e a malária. Esta segunda doença, ainda que determine uma mortalidade muita maior do que a da aids foi relegada a um segundo plano na prioridade de alocação de recursos para pesquisa e controle.

A se manter o atual rumo da re-estruturação dos serviços de saúde pública em todo o mundo, teremos serviços de vigilância e controle mais ágeis, menores e descentralizados, infelizmente não com urgência que se faz necessária.

[1] - Professor titular, disciplina de infectologia, Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Ciências Médicas, UNICAMP.
E-mail: ljsilva@unicamp.br
[2] - A literatura corrente tem preferido vigilância em saúde, não é esse o objeto dessa discussão, vigilância epidemiológica será adotado por ser tradicional e dispensar maiores explicações.
[3] - A Lei No 6.229 de 17 de julho de 1975, que criava o Sistema Nacional de Saúde, previa a instituição de um sistema de vigilância epidemiológica de âmbito nacional, coordenado pelo Ministério da Saúde. Esse sistema, assim como o Programa Nacional de Imunizações, também previsto da mesma lei, foram regulamentados pela Lei No 6.259 de 30 de outubro de 1975.
[4] - No Brasil, no entanto, o governo federal ainda mantém a dicotomia entre ações de vigilância e controle de doenças e ações de vigilância e controle de riscos e agravos, sob a responsabilidade da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
[5] - Portaria [Funasa] no 1.399 de 15 de dezembro de 1999
[i] - Do inglês disease burden. A tradução não é a mais adequada, o correto seria fardo, não carga. Não obstante, carga tem sido o termo mais amplamente utilizado na literatura nacional.

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Atualizado em 10/06/2005

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