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             Os Ciclos da Vida 
             
              Carlos Vogt  
            I 
            É possível manter os atuais padrões de produção 
              e de consumo e ainda assim acreditar ser possível o desenvolvimento 
              sustentável da economia, da sociedade e das relações 
              do homem com a natureza? 
            Tudo indica que não, ao menos se se levarem em conta os 
              indicadores que vêm sendo publicados por instituições 
              como a Organização da Nações Unidas 
              (ONU), ou o Fundo Mundial para a Natureza (WWF - sigla em inglês 
              para World Wildlife Fund). 
            O Relatório Planeta Vivo 2002, da WWF, afirma que 
              já estamos excedendo em 20% a capacidade da Terra para responder 
              à demanda do consumo de alimentos e, portanto, bastante além 
              da capacidade de reposição do planeta. 
            Como a população na Terra deverá passar dos 
              pouco mais de 6 bilhões de habitantes para mais de 8.5 bilhões 
              até 2050, tem-se aí, em traços grossos, o desenho 
              do cenário da catástrofe global que vem se anunciando, 
              desde os fins dos anos 1960, e que deu origem à consciência, 
              cada vez mais aguda, de que é preciso replanejar, com clareza, 
              e praticar, com urgência, novas formas culturais de relacionamento 
              produtivo do homem em sociedade e da sociedade com a natureza.  
            II 
            Em julho de 1972, deu-se, na Suécia, a Conferência 
              de Estocolmo que viria a acrescentar, definitivamente, às 
              questões prioritárias discutidas pela ONU, criada 
              em 1945, - a paz, os direitos humanos e o desenvolvimento com igualdade 
              - o tema da segurança ecológica. Desse modo, a Conferência 
              das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, 
              mundialmente conhecida como Conferência de Estocolmo, 
              passou a ser o marco de referência para as discussões 
              sobre o que, na seqüência, viria a constituir-se numa 
              das questões mais complexas e mais cruciais da história 
              recente da humanidade, ou seja, a questão do desenvolvimento 
              sustentável.  
            Vários encontros e documentos foram produzidos no interregno 
              de 20 anos entre a Conferência de Estocolmo e a Conferência 
              das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento 
              (CNUMAD/UCED), realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992, conhecida 
              também por vários apelidos - Cúpula da Terra, 
              Eco 92 -, sendo um deles - Rio 92 - o mais difundido 
              e talvez o mais referendado.  
            Nessa Conferência tem origem o documento Agenda 21, aprovado 
              e assinado por 175 Nações presentes no encontro. Ao 
              mesmo tempo, e paralelamente, ocorreu, promovido por entidades da 
              Sociedade Civil, o Fórum Global 92, do qual participaram 
              cerca de 10 mil Organizações Não-Governamentais, 
              e que, por sua vez, deu origem a outro importante documento - a 
              Carta da Terra - para pautar, pelos olhos críticos 
              e pelos interesses legítimos da cidadania, as ações 
              globais dos governos e dos órgãos oficiais em prol 
              do desenvolvimento sustentável. 
            Dez anos se passaram, desde a realização da Rio 
              92. No meio tempo, houve a Rio+5 e agora, o Brasil e 
              as nações do globo se preparam para a Conferência 
              Mundial do Meio Ambiente, em Joanesburgo, África do Sul, 
              também conhecida como Rio+10, e que terá lugar 
              no final do mês de agosto, início de setembro.  
            Vários outros eventos de repercussão internacional 
              vêm ocorrendo, reforçando criticamente a necessidade 
              de medidas que avaliem a questão dos limites do crescimento 
              e as conseqüências dos modelos concentradores de produção 
              e riqueza vigentes, hoje, na economia globalizada. É o caso, 
              por exemplo, do Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, 
              nas edições de 2001 e 2002, e que atraiu mais de 50 
              mil participantes.  
            III 
             Desse modo, o Brasil parece ter se preparado, tanto pelas ações 
              governamentais, como pelas ações da sociedade civil, 
              para desempenhar um papel importante entre as lideranças 
              da consciência ecológica mundial que deverão, 
              pelos documentos, pelas declarações, pelas análises 
              críticas, pelo exemplo, enfim, constituir-se em exemplaridades 
              éticas das políticas de meio ambiente e de desenvolvimento 
              sustentável a serem efetivamente adotadas para garantir condições 
              de qualidade de vida presentes, projetando-as, para a preservação 
              da vida com qualidade das futuras gerações.  
            Por decisão do presidente da República, Fernando 
              Henrique Cardoso, o Brasil teve, no final de julho deste ano, promulgada 
              sua adesão ao Protocolo de Quioto para controle da 
              emissão de carbono a fim de procurar conter o aquecimento 
              global da Terra e, desse modo, interferir diretamente nos mecanismos 
              de mudanças climáticas ocasionadas pelo modelo de 
              desenvolvimento econômico em vigência no mundo, altamente 
              predatório ao meio ambiente e à paz social, tão 
              decantada retoricamente, e tão pouco praticada na efetividade 
              da distribuição da riqueza e da justiça social. 
              Basta, desse ponto de vista, considerar que os EUA, responsáveis 
              por 36% das emissões de carbono, não são signatários 
              do protocolo, levando consigo, para a mesma posição 
              de intransigência econômica, países como o Canadá 
              e a Austrália. É verdade, em compensação, 
              que o Japão, a Rússia e os 15 países que formam 
              a União Européia aderiram ao Protocolo, dando 
              medida de quanto é política, além da ética, 
              a luta para a mudança na cultura de gestão do meio 
              ambiente e do desenvolvimento sustentável nos diferentes 
              países do mundo e o quanto os interesses econômicos 
              interferem na gestão dessas políticas.  
            O conjunto de ações e de políticas de proteção 
              ambiental que integram a Agenda 21 resultaram de um amplo 
              processo de diálogo e de discussão e de cerca de 6 
              mil propostas, do qual participaram mais de 40 mil pessoas em todos 
              os Estados do país. 
            A Agenda 21, a ser apresentada na Rio+10, como o 
              documento oficial do governo brasileiro, compreende 4 seções: 
               
              · Dimensões Sociais e Econômicas, 
              que trata das relações entre meio ambiente e pobreza, 
              saúde, comércio, dívida externa, consumo e 
              população; 
              · Conservação e Gerenciamento dos 
              Recursos para o Desenvolvimento, que estabelece maneiras de 
              gerenciar os recursos naturais, visando a garantir o desenvolvimento 
              sustentável; 
              · Fortalecimento dos Principais Grupos Sociais, 
              no qual se apresentam formas de apoio a grupos sociais organizados 
              e minoritários que trabalham, colaboram ou adotam os princípios 
              e as práticas da sustentabilidade; 
              · Meios de Implementação, onde 
              são tratados os financiamentos e os papéis das instituições 
              governamentais e das entidades não-governamentais no desenvolvimento 
              sustentável.  
              As seções estão distribuídas por 40 
              capítulos, 115 programas e aproximadamente 2500 ações 
              sobre as diferentes áreas implicadas no processo, desde saúde, 
              educação e meio ambiente até saneamento, habitação 
              e assistência social. 
            Trata-se de um grande programa que vem sendo gestado desde a Rio 
              92 e para o qual o governo brasileiro quer se mostrar, na Conferência 
              de Johannesburgo, não só comprometido pelos enunciados 
              de que se compõe o documento, mas também pela iniciativa 
              de medidas concretas já tomadas relativamente ao meio ambiente 
              do país. É nesse contexto que se inscrevem, de um 
              lado, o Projeto de Lei da Mata Atlântica em discussão 
              no Congresso, e, de outro, a criação, no Amapá, 
              do Parque Nacional de Tumucumaque, com área de 3.8 milhões 
              de hectares, equivalente à área territorial da Bélgica 
              e cuja identificação como a maior reserva tropical 
              do planeta deu-se pelo Ibama em parceria com o WWF e o Banco 
              Mundial.  
            IV 
             Como se vê, são esforços importantes no sentido 
              da preservação ambiental e do desenvolvimento equilibrado 
              da economia e da qualidade da vida em sociedade.  
            Contudo, como lembra o jornalista Washington Novaes, em artigo 
              recente em O Estado de S. Paulo (sexta-feira, 19 de julho 
              de 2002, p.A2) referindo-se aos relatórios do desenvolvimento 
              humano da ONU, "apenas três pessoas juntas têm 
              ativos equivalentes ao produto bruto anual dos 48 países 
              mais pobres, onde vivem 600 milhões de pessoas [...], pouco 
              mais de 200 pessoas, com ativos superiores a US$1 bilhão 
              cada [têm] o equivalente à renda anual de 45% de toda 
              a humanidade (mais de 2.7 bilhões de pessoas)". 
            Será possível, nesse quadro de extrema concentração 
              de riqueza e de absurdas diferenças e desigualdades, almejar 
              o equilíbrio efetivo de nossas relações sociais 
              e a recomposição, construída, cultural, portanto, 
              de uma harmonia utópica do homem com a natureza? Por onde 
              passará a utopia? É o que se pergunta e, a todos nós, 
              o jornalista, no título de seu instigante artigo. 
            Certamente, por vários lugares e distintas soluções, 
              mas, como ele próprio sugere, talvez ajudasse "recorrer 
              a pensadores que, ao longo da História, colocaram no centro 
              a ética, a metafísica (há quem proponha 'o 
              retorno ao sagrado'). "Talvez console lembrar", continua 
              o articulista, "que a ciência moderna mergulha cada vez 
              mais na imensidão do espaço e nos informa sobre a 
              nossa insignificância". 
            
            V 
            Talvez ajude também, dentro desse processo de profundas 
              mudanças em nossas atitudes culturais, entender que, muitas 
              vezes, por diferentes caminhos de peregrinação e aventuras, 
              o conhecimento científico e experimental acaba por encontrar-se 
              com a sabedoria da tradição de antigas filosofias 
              a dizer, pela teoria e pela experimentação do método, 
              o que já fora dito pela intuição especulativa 
              e pela expressão sensível de conceitos consubstanciados 
              em metáforas e imagens de pura poesia. 
            Leia-se, nesse sentido, o que escreve o pesquisador Aldo da Cunha 
              Rebouças, no livro Águas Doces no Brasil (Instituto 
              de Estudos Avançados da USP, Academia Brasileira de Ciências, 
              Escrituras, São Paulo, 1995, pg. 4 e 5): 
              "A idéia da Terra como um sistema vem dos primórdios 
              das civilizações. Porém, a sua visão 
              só se tornou possível a partir das primeiras viagens 
              espaciais, na década de 1960. Atualmente, ninguém 
              põe em dúvida a idéia chave da Teoria de Gaia 
              [...], que mostra um estreito entrosamento entre as partes vivas 
              do planeta - plantas, microorganismos e animais - e as partes não 
              vivas - rochas, oceanos e a atmosfera. 
            O ciclo todo é caracterizado por um fluxo permanente de 
              energia e de matéria, ligando o ciclo das águas, das 
              rochas e da vida. Essa visão sistêmica reúne 
              geologia, hidrologia, biologia, meteorologia, física, química 
              e outras disciplinas cujos profissionais não estão 
              acostumados a se comunicar uns com os outros.  
            Torna-se evidente que, se a água é elemento essencial 
              à vida, esta é, por sua vez, um dos principais fatores 
              que engendram as condições ambientais favoráveis 
              à existência da água em tão grande quantidade 
              e abundância na Terra". 
            Compare-se, agora, o trecho acima com a passagem do romance de 
              W. Somerset Maugham, The Razor's Edge (O Fio da Navalha), 
              de 1944, em que o autor-narrador dialoga com o personagem Lawrence 
              Darrel e este lhe conta, num café, em Paris, quase no final 
              da obra, as suas andanças por países e experiências, 
              em busca de respostas às suas indagações existenciais 
              e metafísicas.  
            O trecho em questão, que traduzo livremente, contém 
              o relato do jovem Larry de seu convívio com um também 
              jovem amigo hindu em constante jornada de busca de seu objetivo. 
               
              "E qual seria este?", pergunta o narrador. 
               
              E a resposta de Larry: 
               
              "Tornar-se livre da servidão de renascer. De acordo 
              com os seguidores do Vedanta, o eu, que eles chamam atmã 
              e nós chamamos alma, é distinto do corpo e de seus 
              sentidos, distinto da mente e de sua inteligência; não 
              é parte do Absoluto, pois o Absoluto, sendo infinito, não 
              pode ter partes, a não ser o próprio Absoluto. Não 
              foi criado; existe desde a eternidade e quando, por fim, desvelar 
              os sete véus da ignorância retornará à 
              infinitude de onde veio. É como uma gota de água que 
              se ergue do mar e cai com a chuva numa poça, flui depois 
              para um regato, encontra uma torrente, cai num rio, passando por 
              gargantas de montanhas, largas planícies, serpenteando seu 
              leito obstruído por rochas e árvores tombadas, até 
              que, finalmente, alcança o mar sem fim de onde se ergueu". 
            A visão sistêmica de nosso planeta, de que nos fala 
              com competência científica o professor Aldo da Cunha 
              Rebouças, está, também, presente, a seu modo, 
              no trecho do romance que reproduz, por metáfora, a filosofia 
              do Vedanta. As diferenças, é claro, entre uma coisa 
              e outra são muitas e até mesmo intransponíveis, 
              do ponto de vista teórico e metodológico. Permanece, 
              contudo, inegável, o fato de que em ambas as atitudes culturais 
              há um traço comum que nasce da consciência de 
              que não basta decompor analiticamente o todo em suas partes 
              para chegar à plena compreensão de seu funcionamento. 
             
             É preciso, ao contrário, entendê-lo na sistematicidade 
              das relações entre natureza e cultura para que as 
              transformações de uma pela outra não engendre 
              nem o monstro da soberba nem tampouco o querubim da apatia. 
             
            
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