| Clones 
              e Medos Crônicos Carlos 
              Vogt 
               
              
                | Provisoriamente 
                  não cantaremos o amor, que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
 Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
 não cantaremos o ódio porque esse não existe,
 existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
 o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
 o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
 cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
 cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
 depois morreremos de medo
 e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas 
                  e medrosas.
 Carlos 
                    Drummond de Andrade: "Congresso Internacional do Medo"
 |                I O filme 
              A.I. (Inteligência Artificial), de Steven Spielberg, 
              exibido até há poucas semanas nas telas de nossos 
              cinemas, é a história de um clone triste. A novela 
              O Clone, de Glória Perez, com fantásticas imagens 
              e cenários do diretor Jayme Monjardim, é a história 
              alegre de um clone triste. O Fausto, 
              de Goethe, publicado, originalmente, em dois volumes com um longo 
              intervalo de tempo entre eles (1808, o primeiro e 1833, o segundo) 
              é a história trágica de um clone cômico. O 
              Frankenstein, ou O Prometeu Moderno, de Mary Shelley, 
              que o publicou anonimamente, em 1818, quando tinha apenas 19 anos, 
              é a história trágica de um clone trágico. De 
              comum, em todas essas obras, de épocas tão diferentes, 
              o mesmo mito do cientista que, descontente com as limitações 
              de sua própria existência, busca superá-las 
              com a criação de vidas sobre-humanas. Há 
              outras histórias da mesma família como, por exemplo, 
              aquela que se conta no romance O Estranho Caso do Dr. Jekyll 
              e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, publicado em 1886, ou 
              esta outra, de H.G. Wells, A Ilha do Dr. Moreau, de 1896, 
              ou até mesmo aquela bem mais antiga narrada na Bíblia, 
              no Velho Testamento, no livro de Jó, em que Deus permite 
              ao Diabo a "clonagem" do Jó rico e feliz no Jó 
              pobre e infeliz para a dura provação de sua crença 
              e de sua devoção ao Senhor. II
 A transformação 
              de um em outro e o retorno à identidade original, enriquecida 
              pela viagem do estranhamento de si mesmo e da alteridade, é 
              um tema recorrente nos mitos clássicos da antigüidade 
              e mesmo nos mitos mais modernos do ciclo de novelas de cavalaria, 
              na Idade Média, ou no do médico-cientista que vende 
              a alma ao diabo, também na Idade Média e na Renascença 
              e que, além da complexa beleza, da versão de Goethe, 
              culmina, mais recentemente, no século XX, no vigoroso romance 
              de Thomas Mann, Doutor Fausto. Por 
              outro lado, a saga de gêmeos no imaginário da cultura, 
              as mais diversas e antigas, acrescenta ao tema da duplicidade elementos 
              que reforçam e aprofundam as indagações metafísicas 
              do homem, através dos tempos, sobre a singularidade de seu 
              destino comum. O tema 
              do espelho, em particular do retrato que representa o mesmo, sendo, 
              no entanto, o outro, e que tem no conto "O Espelho", de 
              Machado de Assis um de seus momentos altos, propicia no romance 
              de Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray, de 1891, tanto 
              a definitiva notoriedade do autor como a sua plena realização 
              literária. Trata-se, 
              como se sabe, de uma narrativa filosófica, cujo protagonista 
              é jovem, belo, dedicado ao prazer e ao culto da beleza. Recebe 
              de um amigo pintor o retrato que espelha, luminoso, tudo isso. Angustia-se 
              com a idéia de que um dia perderá tudo e, por um pacto 
              e um voto, consegue transferir para o quadro as marcas do tempo 
              e do envelhecimento, mantendo-se em eterna e fresca juventude. Abandona 
              a angelical Sibyl e acaba assassinando o amigo pintor que desaprova 
              o seu comportamento e recusa a sua conduta. Atraído 
              pela própria imagem no retrato, assiste, às vezes, 
              à degradação de si próprio no outro, 
              representado. Numa dessas vezes, contemplando o rosto degenerado 
              de seus vícios, no retrato, dilacera-o com um punhal, tombando 
              morto no instante mesmo em que sua imagem é destruída 
              por ele próprio. Há 
              semelhanças entre o livro de Oscar Wilde e o Dr. Jekyll 
              e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, publicado poucos anos 
              antes, assim com as há também com outras obras românticas 
              e pós-românticas como é o caso de La Nuit 
              de Décembre (A Noite de Dezembro) de Alfred de Musset 
              e, mais especialmente ainda, com La Peau de Chagrin (A Pele 
              do Onagro), de Balzac, este último carregado ainda mais de 
              simbologia dual, ou de dualidade simbólica, por ter sido 
              o último livro lido por Freud antes de sua morte, em 23 de 
              setembro de 1939, conforme nos relata Peter Gay em sua biografia 
              famosa do fundador da Psicanálise. III
 A eterna 
              busca do fogo sagrado da vida nos torna perseverantemente teimosos, 
              do ponto de vista epistemológico, e teimosamente ridículos, 
              do ponto de vista dos malogros a que nos condenam os mitos e as 
              suas recriações literárias, em diferentes épocas. Nem 
              por isso deixamos de continuar Prometeus e de transgredir os limites 
              que a ética e as religiões estabelecem para cada época, 
              como condição de harmonia social, de felicidade individual 
              e de sábia ignorância. Assisti, 
              há dias atrás, pela televisão, a propósito 
              do anúncio dos cientistas da empresa Advanced Cell Technology 
              (ACT) de que haviam clonado um embrião humano, ao rabino 
              Sobel, de São Paulo, declarar não ser contra os avanços 
              da ciência nesse campo. O problema, disse ele, é saber 
              como, onde e quando parar. O rabino 
              tem razão, mas, na verdade, o enigma da ciência só 
              se completa quando a esfinge do conhecimento pergunta também: 
              - Por que e para que parar? Com 
              isso se fecha o círculo ético de nossas incertezas 
              e dele ficamos prisioneiros, pois a capacidade social de resposta 
              a essas perguntas é cada vez mais lenta diante da velocidade 
              cultural com que a ciência e a tecnologia avançam em 
              novas descobertas e em novas invenções. A vertigem 
              desse ritmo não é, contudo, ditada apenas pelo potencial 
              intrínseco do conhecimento científico ou do domínio 
              tecnológico a que a humanidade chegou. É também 
              pautada fortemente pelo apelo do mercado de capitais, ávido 
              de notícias e de boatos, que possam mover as bolsas, e do 
              dinheiro fazer dinheiro. O caso 
              da Advanced Cell Technology é típico. O anúncio 
              da clonagem de um embrião humano foi feito em revista não 
              especializada, os cientistas do mundo todo contestaram a declaração 
              e o veterinário Jose Cibelli, vice-presidente da empresa 
              teve, ele próprio, de acomodar a estridência do anúncio 
              às finalidades terapêuticas mais consentidas no estágio 
              atual das leis e da admissão ética e religiosa das 
              pesquisas genéticas nesse campo. O fato 
              é que a ACT, anunciando ter feito muito mais do que fez, 
              mexeu com o mercado e nele valorizou-se. E foi 
              exatamente isso que atraiu a atenção do médico 
              italiano Severino Antinori, paladino da reprodução 
              humana clonada, que acusou os cientistas da empresa americana de 
              roubarem sua idéia. Razões da ciência de marketing 
              muito mais do que de marketing da ciência, como se vê. O papa 
              João Paulo II condenou enfaticamente a clonagem de seres 
              humanos e nem mesmo a atenuação das declarações 
              da ACT, dizendo que suas experiências se destinam, não 
              à clonagem, mas ao tratamento de doenças como o mal 
              de Parkinson e a diabetes, abrandaram a posição de 
              repúdio convicto e de condenação peremptória 
              adotada pela Igreja Católica. Segundo a Pontifícia 
              Comissão para a Vida, os embriões já são 
              vidas humanas com os direitos próprios de todo ser humano 
              e, clonados ou não, não podem ser sacrificados na 
              busca das células-tronco. O presidente 
              Fernando Henrique Cardoso fez saber, através do porta-voz 
              que seu entendimento é o de que a ética impõe 
              limites à pesquisa científica. E a 
              ciência aceita esses limites? E o 
              mercado compraz-se com as moratórias da ciência e da 
              tecnologia? E o cientista submete sua vaidade secreta às 
              razões da causa social da ciência e à humildade 
              de seus próprios temores? E a megalomania dos ricos e poderosos 
              aceita despir-se de seus projetos de eternidade? Quando 
              alertados pelo fato de estarem competindo com Deus, ao manipularem 
              a vida humana, muitos deles repetem, em clave de modesta humildade, 
              não serem mais do que um mero instrumento da divindade. O que, 
              convenhamos, já não seria pouco, admitindo-se a nossa 
              falibilidade e a cômica humanidade de nossos desatinos. Jose 
              Cibelli, sempre no esforço de atenuar as críticas 
              às declarações da ACT, disse também 
              que o objetivo da empresa é reverter o tempo e, desse modo, 
              retardar o envelhecimento e alongar a vida. Reencontramos 
              aqui o mito da longevidade e da eterna juventude que já havíamos 
              reconhecido em O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde e 
              que aparece também num folhetim gótico de Balzac - 
              O Centenário -, ou ainda, mais recentemente no excelente 
              O Perfume - História de um Homicida, do alemão 
              Patrick Süskind, de enorme sucesso no mundo todo, desde que 
              foi lançado, em 1985. Tanto 
              em O Centenário, como em O Perfume, vida sobre-humana, 
              ou a sobre-humanidade da essência da vida alimentam-se do 
              vigor, da juventude e da beleza de outras vidas humanas, numa espécie 
              de vampirismo sem caninos e sanguessugas . O principal 
              investidor da ACT, o milionário Miller Quarles, propala aos 
              quatro ventos que quer ser o primeiro ser humano a chegar aos 200 
              anos de idade. Como 
              alimentar esse sonho? IV
 Segundo 
              o Velho Testamento, Jó, depois de voltar a ser rico, respeitado 
              e feliz, por vontade de Deus, viveu ainda, 140 anos, morrendo muito 
              velho, numa nova família de muitos descendentes. Será 
              que a ciência dará ao nosso empresário da ACT 
              a mesma compensação e o mesmo destino ditoso do penitente 
              Jó? A crer 
              no que oferece a seita Raëlita e a empresa Clonaid a ela ligada, 
              através dos pronunciamentos do guru da primeira, Raël, 
              um ex-piloto de automóveis francês, e da bioquímica 
              da segunda, a também francesa Brigitte Boisselier, sim e 
              para já. A página 
              desse pessoal na Internet anuncia a realização dos 
              sonhos míticos da humanidade, por preços que variam 
              de 50 mil a 200 mil dólares, entre eles o da ressurreição 
              de entes queridos desaparecidos, já que o próprio 
              Jesus só ressurgiu dos mortos pela ação de 
              alienígenas conhecedores, já naquela época, 
              da biologia molecular e da tecnologia da clonagem. Leon 
              Kass, bioeticista norte-americano com fortes ligações 
              religiosas, considera que o medo que a sociedade tem em relação 
              à clonagem de seres humanos é parte do que ele chama 
              de "sabedoria da repugnância" (wisdom of repugnance), 
              aqueles conhecimentos que possuímos, como seres humanos e 
              para os quais não há nenhuma necessidade de argumentação 
              lógica e de demonstração racional. Os 
              raëlitas, se entregam ou se entregarão o que vendem, 
              não sei, mas que reforçam e dão razão 
              aos argumentos religiosos da ética de Kass, quanto a isso 
              não há a menor dúvida. Num 
              artigo interessante de 1998, P.D. Hopkins, analisa o comportamento 
              da mídia americana relativamente ao anúncio da clonagem 
              da ovelha Dolly e identifica constantes morais por ela veiculadas, 
              classificando-as em três grandes grupos de medos e receios: 
              o da perda da unicidade e da individualidade do ser humano, as motivações 
              patológicas do desejo de clonar ou ver clonado um ser humano 
              e, enfim, o medo da perda do controle da ciência sobre os 
              objetos e os seres de sua criação. Vem-nos 
              imediatamente à lembrança as ficções 
              de 2001 - Uma Odisséia no Espaço, a narrativa 
              de Arthur Clarke e o filme de Stanley Kubrick, Blade Runner, 
              de Ridley Scott, do livro de Ira Levin Os Meninos do Brasil 
              e a sua versão cinematográfica, além, é 
              claro, do clássico romance de Aldous Huxley, Admirável 
              Mundo Novo. Alguns 
              autores distinguem uma ética da clonagem de uma ética 
              na clonagem, argumentando que a maior parte das discussões 
              éticas que cercam o tema até agora são externas 
              a ele. Mas será a ciência capaz de representar-se a 
              si mesma em fóruns distintos ao dela própria? Pode 
              o conhecimento conhecer-se a si próprio, ou a mente representar-se 
              a si mesma, ou a consciência ser consciência da própria 
              consciência? Não 
              há ciência sem simulação, tampouco conhecimento 
              sem linguagem e representação. Os 
              símbolos fazem a mediação do mundo e do conhecimento 
              do mundo. A unidade 
              e a unicidade do ser humano são o fundamento de sua humanidade, 
              e a vida é sagrada porque morre e renasce em diferenças 
              e dessemelhanças. O humanismo 
              feroz e a humana ferocidade da literatura de Hemingway ressoam na 
              epígrafe clássica de Por Quem os Sinos Dobram?: 
              "Nenhum homem é uma ilha... Eles dobram por ti". A banalização 
              do mistério da vida, posto em gôndolas eletrônicas 
              da Internet, banaliza a morte, a violência, o crime e faz 
              terra arrasada da singularidade da existência de cada ser 
              humano em sua infinita provisoriedade. Dessacraliza a vida. Tudo 
              o que o homem pode fazer ele fará, mesmo que a custo de muitas 
              vidas e muito arrependimento tardio, como foi o caso para os autores 
              da bomba atômica. Cedo 
              ou tarde, o homem clonará o homem e com mais facilidade do 
              que fez a bomba, porque os aparatos tecnológicos e os custos 
              envolvidos são mais simples e instaláveis numa clínica 
              particular. É 
              um risco para o qual a sociedade não está ainda preparada 
              a não ser pelo medo mítico das representações 
              que conhecemos e quem sabe pela "sabedoria da repugnância" 
              de que nos fala a bioética de Leon Kass. Será 
              suficiente? Dizem 
              os deuses que não; seus instrumentos, que sim!
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