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             Clones 
              na mídia 
            Hélio 
              Schwartsman 
            No 
              último dia 25, a empresa de biotecnologia norte-americana 
              Advanced Cell Technology (ACT) anunciou a criação 
              do primeiro clone humano. O embrião, que foi gerado para 
              pesquisa de doenças, deixou de multiplicar-se quando contava 
              com seis células. 
            Há 
              certamente algum exagero em apregoar como primeira clonagem humana 
              um emaranhado de células ainda anterior a um blastocisto. 
              E vale lembrar que a divulgação não seguiu 
              a rota canônica. Ela não foi feita através das 
              principais publicações científicas com peer 
              review, mas por dois veículos leigos (Scientific American 
              e U.S. News & World Report) e por uma obscura revista 
              científica eletrônica (Journal of Regenerative Medicine). 
              Fica a sensação de que a ACT quer ganhar a corrida 
              da clonagem "no grito". Estão em jogo patentes 
              e mercados potencialmente milionários. Não duvido 
              de que, para a história, o 25 de novembro de 2001 prevaleça 
              como data da primeira clonagem humana, ainda que esse tenha sido 
              muito mais um feito de mídia do que de ciência propriamente 
              dita. 
            E a 
              notícia, como notícia, é boa. A clonagem desencadeia 
              fortes reações emocionais e dá margem a polêmicas 
              acres. Isso "vende jornal". Mesmo assim, não seria 
              exato afirmar que o anúncio da primeira clonagem humana apanhou 
              a imprensa de calças curtas. Todo mundo sabia que era uma 
              questão de tempo até que alguém arriscasse 
              produzir um embrião humano por técnicas de transferência 
              nuclear. Assim como é uma questão de tempo até 
              que alguém produza um clone e o implante num útero 
              para que se desenvolva até tornar-se uma pessoa. 
            A ACT 
              assegura que jamais teve a intenção de produzir réplicas 
              humanas. Todos os esforços, afirma a empresa, estão 
              voltados para a clonagem terapêutica, a produção 
              de células-tronco (com capacidade de converter-se em vários 
              tipos de tecido) para ser usadas no tratamento de uma série 
              de moléstias. 
            Como 
              é frequente nas ciências, a técnica avança 
              mais rapidamente do que o consenso sobre o que é ético 
              e o que não é. Para tentar mapear a polêmica 
              e entender melhor o papel da imprensa nesse imbróglio - meu 
              propósito neste artigo -, precisamos, antes de mais nada, 
              perguntar para que serve a clonagem. 
            A resposta 
              mais óbvia é: "para fins terapêuticos". 
              Nesse caso, a idéia é gerar células-tronco, 
              isto é, células indiferenciadas, formadas nos primeiros 
              estágios da divisão do embrião. Elas têm 
              a capacidade única de converter-se em qualquer tipo de tecido, 
              neurônio, osso ou pele. Em princípio, possibilitam 
              o desenvolvimento de novas terapias para várias doenças 
              degenerativas e até para reparar órgãos com 
              defeito. Por enquanto, a clonagem terapêutica não passa 
              de uma promessa, talvez até "inflada" pelos interessados. 
              Mesmo assim, seria temerário ignorar esse campo de investigação. 
            A clonagem 
              garantiria que as células utilizadas seriam 100% compatíveis 
              com as do paciente, eliminando o problema da rejeição. 
              Esse tipo de utilização, vale reforçar, não 
              exige o desenvolvimento completo do embrião, que seria descartado 
              poucos dias depois da "concepção". 
            A maioria 
              das associações de cientistas dos EUA e da Europa 
              defende esse tipo de pesquisa. A oposição fica por 
              conta do Vaticano e dos grupos conservadores de sempre. Admito que 
              minha exposição talvez peque por ser excessivamente 
              utilitarista, mas acho que ela se sustenta. Quem não se opõe 
              ao aborto não teria muitas razões para ser contra 
              esse gênero de investigação. 
            O debate 
              fica intelectualmente mais estimulante quando se considera a clonagem 
              reprodutiva, isto é, com vistas a gerar um novo ser humano. 
              No imaginário popular, a clonagem ofereceria a chave para 
              a imortalidade, ao tornar possível a criação 
              de cópias fiéis de um determinado indivíduo. 
              Só que aqui o desejo fala bem mais alto do que os fatos. 
              Um clone gerado a partir de um adulto não é absolutamente 
              um alter ego, um "mini-eu". Ele é antes um irmão 
              gêmeo univitelino, só que muitos anos mais novo. Talvez 
              um pouco menos. Sem ser submetido ao mesmo ambiente, uma impossibilidade 
              prática, ele se pareceria ainda menos com o original do que 
              um gêmeo "normal" criado na mesma família. 
            Para 
              que se possa pensar em imortalidade ou algo semelhante, seria preciso 
              encontrar uma forma de transferir as memórias e a personalidade 
              para esse corpo mais jovem. Embora elas ocorram sobre uma base físico-química, 
              conservam uma imaterialidade essencial. A memória está 
              no cérebro, mas, até onde vai nosso conhecimento, 
              é algo muito diverso de um determinado grupo de neurônios 
              e substâncias químicas. E, no fundo, quando falamos 
              em imortalidade, pensamos mais em memórias e personalidade 
              do que no corpo propriamente dito. 
            Até 
              onde consigo ver, clonar e gestar um ser humano não serviria 
              para muita coisa. Existe, é claro, um público cativo, 
              composto normalmente de personalidades narcísicas (Schwarzenegger 
              é candidato) ou pessoas que estão em processo de luto, 
              como pais que pretendam "recriar" um bebê morto. 
              Fala-se também em utilizar a clonagem para permitir que homens 
              inférteis tenham "filhos" biológicos. Só 
              que esses "filhos" não seriam exatamente filhos, 
              mas uma cópia cuja relação de parentesco com 
              o original ainda não tem nome. 
            Alguns 
              grupos já iniciaram os preparativos para tentar criar um 
              ser humano por clonagem. Em comum, têm o fato de serem outsiders, 
              que parecem mais interessados em propaganda e lucros fáceis 
              ou em simplesmente dar vazão a crenças exóticas. 
            Um 
              deles é a seita dos raëlianos. Querem "trazer de 
              novo à vida" um bebê que morreu poucos anos atrás. 
              Os raëlianos afirmam, entre outras temeridades, que a vida 
              na Terra foi trazida por discos voadores. 
            Outro 
              grupo é liderado por Severino Antinori, médico, proprietário 
              de uma clínica de fertilidade na Itália e que gosta 
              de aparecer na imprensa. Já ganhou manchetes fazendo uma 
              mulher de 62 anos dar à luz. 
            Acho 
              precipitado afirmarmos desde já e com todas as letras que 
              a clonagem de um ser humano com fins reprodutivos deva, do ponto 
              de vista ético, ser proibida para sempre. Uma decisão 
              tão drástica exige mais debates. Mas podemos afirmar 
              com toda a certeza que ainda é cedo para tentá-la. 
              Insistir no projeto pode trazer graves implicações, 
              que beiram a irresponsabilidade. As técnicas ainda não 
              são boas o bastante. O índice de sucesso com mamíferos 
              é da ordem de 1% ou 2%. Isso significa que é necessário 
              produzir de 50 a 100 embriões para obter um único 
              nascimento. Como se não bastasse, são altas as taxas 
              de animais que nascem com anomalias graves. Um bezerro ou uma ovelha 
              podem ser sacrificados; um ser humano, não. 
            Precisamos, 
              contudo, tomar cuidado para que o debate não se torne excessivamente 
              técnico, centrando-se na segurança do método 
              e não em suas implicações sociais e até 
              ontológicas. Mesmo que o procedimento se torne 100% seguro, 
              caberá a reflexão filosófica em relação 
              a sua realização ou não com seres humanos. 
              A discussão ética deve ser anterior à técnica, 
              princípio nem sempre observado. 
            Vale 
              registrar que a clonagem não é o único avanço 
              biotecnológico que enseja dilemas éticos. A partenogênese, 
              por exemplo, já chamada de "concepção 
              imaculada", na qual o óvulo é levado a transformar-se 
              em embrião sem nenhum tipo de fertilização, 
              desperta mais ou menos as mesmas questões. 
            Vários 
              países já elaboraram ou estão elaborando leis 
              para regular biotecnologias. Elas dificilmente vão conter 
              as "forças de mercado" que procuram veios lucrativos 
              na biologia. Da mesma forma que existem paraísos fiscais, 
              deverão surgir paraísos genéticos, onde pesquisadores 
              poderão fazer o que bem entenderem. Cita-se muito a China 
              e a Coréia do Sul como países que já despontam 
              como "liberais" na regulação de biotecnologias. 
              Embora eu considere as leis necessárias, não creio 
              que sejam elas que funcionarão como principal freio a abusos. 
              Além de paraísos genéticos, há a própria 
              dificuldade natural de levar agentes da lei aos recônditos 
              dos laboratórios e clínicas de reprodução. 
              A barreira mais efetiva - e mesmo assim pouco efetiva - deverá 
              ser alguma forma de consenso de médicos e cientistas em relação 
              ao que é ético. 
            Termino 
              agora por onde deveria ter começado. Qual é o papel 
              da imprensa nessa confusão toda? 
            Uma 
              das principais funções dos jornais é informar 
              o leitor de "novidades". Mas jornalistas são seres 
              humanos, e seres humanos, quando têm de lidar com novidades, 
              frequentemente se atrapalham. A ciência e o jornalismo científico, 
              apesar de operarem principalmente com categorias racionais, não 
              constituem exceção. Não escapam a deslizes 
              e trapalhadas. O caso da clonagem é eloqüente. Embora 
              sapos sejam clonados há décadas, a imprensa não-especializada 
              descobriu o tema em 1997, com o anúncio da existência 
              da ovelha Dolly. 
            Na 
              ocasião, jornais de todo o mundo dedicaram páginas 
              e mais páginas ao assunto. Evidentemente, havia pautas para 
              todos os gostos. As editorias de ciência procuraram explicar 
              os aspectos técnicos da clonagem. Articulistas e editorialistas 
              se puseram a discutir as questões éticas que a nova 
              tecnologia colocava. Colunistas com pendores de ficcionista deram 
              rédeas livres à imaginação. Entre mortos 
              e feridos, o público pôde informar-se sobre a novidade, 
              mas, como sempre ocorre, também se deparou com muita bobagem. 
            Ler 
              com os olhos de hoje as notícias científicas - e não 
              tão científicas - do passado pode dar ocasião 
              a boas gargalhadas. Nos anos 60, padres discutiam se a inseminação 
              artificial por esperma que não o do marido configuraria adultério. 
              Nos 70, escritores, cientistas e advogados, além do Vaticano, 
              condenavam os primeiros experimentos com bebês de proveta. 
              Afirmavam que o método geraria monstros, acabaria com o amor 
              e criaria exércitos de robôs, entre outras sandices. 
              Em 1973, a Justiça de Nova York embrenhou-se em apaixonante 
              debate jurídico para determinar se a inseminação 
              artificial produz filhos legítimos. 
            É 
              claro que, do outro lado, avanços técnicos provocaram 
              desastres para a humanidade. Efeito estufa, buraco na camada de 
              ozônio e Tchernobil são exemplos contundentes. 
            Hoje 
              nós provavelmente estamos escrevendo algumas das besteiras 
              "científicas" das quais nossos filhos um dia se 
              rirão, mas podemos também estar criando o começo 
              daquilo que um dia eles amaldiçoarão. Como o que se 
              imprime agora sobre a clonagem humana acaba exercendo significativa 
              influência sobre seu futuro, a imprensa tem grande responsabilidade. 
              Legisladores e até cientistas acabam formando suas convicções 
              com base no que lêem, tanto em publicações especializadas 
              como nas mais gerais. 
            Gostemos 
              ou não, opera aqui um pouco daquilo que Hegel chamava de 
              ideologia (falsa consciência). "Grosso modo", importa 
              menos como cada indivíduo pensa o mundo e muito mais como 
              todos o pensam. E jornais, gostemos ou não, ajudam a formar 
              essa consciência coletiva, enganosa e enganada, moldada pelo 
              mundo, mas que também o molda. 
            Hélio 
              Schwartsman é jornalista. 
             
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