Editorial:

Clones e medos crônicos
Carlos Vogt

Reportagens:
Clonagem ainda é técnica em desenvolvimento
Clonagem terapêutica ainda é promessa
Leis restringem pesquisas com células-tronco
Quem defende a clonagem humana
Polêmica também envolveu primeiro bebê de proveta
Clonagem humana é debatida por juízes brasileiros
Políticos tentam regulamentar mundialmente a clonagem
Clonagem já tem amplo uso na agropecuária
Técnica não é novidade na agricultura
Clonagem sob o olhar da religião
Artigos:
Nada contra a clonagem
Bernardo Beiguelman

Clones na mídia
Hélio Schwartsman

Humanos ao amanhecer
Ulisses Capozoli
Seres Híbridos & Clones: da literatura para as telas, das telas para a realidade
Edgar Franco
Poema:
Clone
Carlos Vogt
 
Bibliografia
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Clones na mídia

Hélio Schwartsman

No último dia 25, a empresa de biotecnologia norte-americana Advanced Cell Technology (ACT) anunciou a criação do primeiro clone humano. O embrião, que foi gerado para pesquisa de doenças, deixou de multiplicar-se quando contava com seis células.

Há certamente algum exagero em apregoar como primeira clonagem humana um emaranhado de células ainda anterior a um blastocisto. E vale lembrar que a divulgação não seguiu a rota canônica. Ela não foi feita através das principais publicações científicas com peer review, mas por dois veículos leigos (Scientific American e U.S. News & World Report) e por uma obscura revista científica eletrônica (Journal of Regenerative Medicine). Fica a sensação de que a ACT quer ganhar a corrida da clonagem "no grito". Estão em jogo patentes e mercados potencialmente milionários. Não duvido de que, para a história, o 25 de novembro de 2001 prevaleça como data da primeira clonagem humana, ainda que esse tenha sido muito mais um feito de mídia do que de ciência propriamente dita.

E a notícia, como notícia, é boa. A clonagem desencadeia fortes reações emocionais e dá margem a polêmicas acres. Isso "vende jornal". Mesmo assim, não seria exato afirmar que o anúncio da primeira clonagem humana apanhou a imprensa de calças curtas. Todo mundo sabia que era uma questão de tempo até que alguém arriscasse produzir um embrião humano por técnicas de transferência nuclear. Assim como é uma questão de tempo até que alguém produza um clone e o implante num útero para que se desenvolva até tornar-se uma pessoa.

A ACT assegura que jamais teve a intenção de produzir réplicas humanas. Todos os esforços, afirma a empresa, estão voltados para a clonagem terapêutica, a produção de células-tronco (com capacidade de converter-se em vários tipos de tecido) para ser usadas no tratamento de uma série de moléstias.

Como é frequente nas ciências, a técnica avança mais rapidamente do que o consenso sobre o que é ético e o que não é. Para tentar mapear a polêmica e entender melhor o papel da imprensa nesse imbróglio - meu propósito neste artigo -, precisamos, antes de mais nada, perguntar para que serve a clonagem.

A resposta mais óbvia é: "para fins terapêuticos". Nesse caso, a idéia é gerar células-tronco, isto é, células indiferenciadas, formadas nos primeiros estágios da divisão do embrião. Elas têm a capacidade única de converter-se em qualquer tipo de tecido, neurônio, osso ou pele. Em princípio, possibilitam o desenvolvimento de novas terapias para várias doenças degenerativas e até para reparar órgãos com defeito. Por enquanto, a clonagem terapêutica não passa de uma promessa, talvez até "inflada" pelos interessados. Mesmo assim, seria temerário ignorar esse campo de investigação.

A clonagem garantiria que as células utilizadas seriam 100% compatíveis com as do paciente, eliminando o problema da rejeição. Esse tipo de utilização, vale reforçar, não exige o desenvolvimento completo do embrião, que seria descartado poucos dias depois da "concepção".

A maioria das associações de cientistas dos EUA e da Europa defende esse tipo de pesquisa. A oposição fica por conta do Vaticano e dos grupos conservadores de sempre. Admito que minha exposição talvez peque por ser excessivamente utilitarista, mas acho que ela se sustenta. Quem não se opõe ao aborto não teria muitas razões para ser contra esse gênero de investigação.

O debate fica intelectualmente mais estimulante quando se considera a clonagem reprodutiva, isto é, com vistas a gerar um novo ser humano. No imaginário popular, a clonagem ofereceria a chave para a imortalidade, ao tornar possível a criação de cópias fiéis de um determinado indivíduo. Só que aqui o desejo fala bem mais alto do que os fatos. Um clone gerado a partir de um adulto não é absolutamente um alter ego, um "mini-eu". Ele é antes um irmão gêmeo univitelino, só que muitos anos mais novo. Talvez um pouco menos. Sem ser submetido ao mesmo ambiente, uma impossibilidade prática, ele se pareceria ainda menos com o original do que um gêmeo "normal" criado na mesma família.

Para que se possa pensar em imortalidade ou algo semelhante, seria preciso encontrar uma forma de transferir as memórias e a personalidade para esse corpo mais jovem. Embora elas ocorram sobre uma base físico-química, conservam uma imaterialidade essencial. A memória está no cérebro, mas, até onde vai nosso conhecimento, é algo muito diverso de um determinado grupo de neurônios e substâncias químicas. E, no fundo, quando falamos em imortalidade, pensamos mais em memórias e personalidade do que no corpo propriamente dito.

Até onde consigo ver, clonar e gestar um ser humano não serviria para muita coisa. Existe, é claro, um público cativo, composto normalmente de personalidades narcísicas (Schwarzenegger é candidato) ou pessoas que estão em processo de luto, como pais que pretendam "recriar" um bebê morto. Fala-se também em utilizar a clonagem para permitir que homens inférteis tenham "filhos" biológicos. Só que esses "filhos" não seriam exatamente filhos, mas uma cópia cuja relação de parentesco com o original ainda não tem nome.

Alguns grupos já iniciaram os preparativos para tentar criar um ser humano por clonagem. Em comum, têm o fato de serem outsiders, que parecem mais interessados em propaganda e lucros fáceis ou em simplesmente dar vazão a crenças exóticas.

Um deles é a seita dos raëlianos. Querem "trazer de novo à vida" um bebê que morreu poucos anos atrás. Os raëlianos afirmam, entre outras temeridades, que a vida na Terra foi trazida por discos voadores.

Outro grupo é liderado por Severino Antinori, médico, proprietário de uma clínica de fertilidade na Itália e que gosta de aparecer na imprensa. Já ganhou manchetes fazendo uma mulher de 62 anos dar à luz.

Acho precipitado afirmarmos desde já e com todas as letras que a clonagem de um ser humano com fins reprodutivos deva, do ponto de vista ético, ser proibida para sempre. Uma decisão tão drástica exige mais debates. Mas podemos afirmar com toda a certeza que ainda é cedo para tentá-la. Insistir no projeto pode trazer graves implicações, que beiram a irresponsabilidade. As técnicas ainda não são boas o bastante. O índice de sucesso com mamíferos é da ordem de 1% ou 2%. Isso significa que é necessário produzir de 50 a 100 embriões para obter um único nascimento. Como se não bastasse, são altas as taxas de animais que nascem com anomalias graves. Um bezerro ou uma ovelha podem ser sacrificados; um ser humano, não.

Precisamos, contudo, tomar cuidado para que o debate não se torne excessivamente técnico, centrando-se na segurança do método e não em suas implicações sociais e até ontológicas. Mesmo que o procedimento se torne 100% seguro, caberá a reflexão filosófica em relação a sua realização ou não com seres humanos. A discussão ética deve ser anterior à técnica, princípio nem sempre observado.

Vale registrar que a clonagem não é o único avanço biotecnológico que enseja dilemas éticos. A partenogênese, por exemplo, já chamada de "concepção imaculada", na qual o óvulo é levado a transformar-se em embrião sem nenhum tipo de fertilização, desperta mais ou menos as mesmas questões.

Vários países já elaboraram ou estão elaborando leis para regular biotecnologias. Elas dificilmente vão conter as "forças de mercado" que procuram veios lucrativos na biologia. Da mesma forma que existem paraísos fiscais, deverão surgir paraísos genéticos, onde pesquisadores poderão fazer o que bem entenderem. Cita-se muito a China e a Coréia do Sul como países que já despontam como "liberais" na regulação de biotecnologias. Embora eu considere as leis necessárias, não creio que sejam elas que funcionarão como principal freio a abusos. Além de paraísos genéticos, há a própria dificuldade natural de levar agentes da lei aos recônditos dos laboratórios e clínicas de reprodução. A barreira mais efetiva - e mesmo assim pouco efetiva - deverá ser alguma forma de consenso de médicos e cientistas em relação ao que é ético.

Termino agora por onde deveria ter começado. Qual é o papel da imprensa nessa confusão toda?

Uma das principais funções dos jornais é informar o leitor de "novidades". Mas jornalistas são seres humanos, e seres humanos, quando têm de lidar com novidades, frequentemente se atrapalham. A ciência e o jornalismo científico, apesar de operarem principalmente com categorias racionais, não constituem exceção. Não escapam a deslizes e trapalhadas. O caso da clonagem é eloqüente. Embora sapos sejam clonados há décadas, a imprensa não-especializada descobriu o tema em 1997, com o anúncio da existência da ovelha Dolly.

Na ocasião, jornais de todo o mundo dedicaram páginas e mais páginas ao assunto. Evidentemente, havia pautas para todos os gostos. As editorias de ciência procuraram explicar os aspectos técnicos da clonagem. Articulistas e editorialistas se puseram a discutir as questões éticas que a nova tecnologia colocava. Colunistas com pendores de ficcionista deram rédeas livres à imaginação. Entre mortos e feridos, o público pôde informar-se sobre a novidade, mas, como sempre ocorre, também se deparou com muita bobagem.

Ler com os olhos de hoje as notícias científicas - e não tão científicas - do passado pode dar ocasião a boas gargalhadas. Nos anos 60, padres discutiam se a inseminação artificial por esperma que não o do marido configuraria adultério. Nos 70, escritores, cientistas e advogados, além do Vaticano, condenavam os primeiros experimentos com bebês de proveta. Afirmavam que o método geraria monstros, acabaria com o amor e criaria exércitos de robôs, entre outras sandices. Em 1973, a Justiça de Nova York embrenhou-se em apaixonante debate jurídico para determinar se a inseminação artificial produz filhos legítimos.

É claro que, do outro lado, avanços técnicos provocaram desastres para a humanidade. Efeito estufa, buraco na camada de ozônio e Tchernobil são exemplos contundentes.

Hoje nós provavelmente estamos escrevendo algumas das besteiras "científicas" das quais nossos filhos um dia se rirão, mas podemos também estar criando o começo daquilo que um dia eles amaldiçoarão. Como o que se imprime agora sobre a clonagem humana acaba exercendo significativa influência sobre seu futuro, a imprensa tem grande responsabilidade. Legisladores e até cientistas acabam formando suas convicções com base no que lêem, tanto em publicações especializadas como nas mais gerais.

Gostemos ou não, opera aqui um pouco daquilo que Hegel chamava de ideologia (falsa consciência). "Grosso modo", importa menos como cada indivíduo pensa o mundo e muito mais como todos o pensam. E jornais, gostemos ou não, ajudam a formar essa consciência coletiva, enganosa e enganada, moldada pelo mundo, mas que também o molda.

Hélio Schwartsman é jornalista.

Atualizado em 10/12/2001

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