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             A 
              clonagem sob o olhar da religião 
            Em 
              meio as questões éticas, jurídicas e morais 
              que giram em torno da clonagem, há uma que remete à 
              um longínquo embate: aquele que defronta ciência e 
              religião. Certamente os confrontos entre essas duas visões 
              de mundo não são novos, mas encontram uma especificidade 
              ao relacionar-se com formas de reprodução artificial 
              e clonagem, pois colocam em cena a possibilidade de dessacralização 
              da vida pela ciência, em oposição à sacralidade 
              afirmada pelas religiões. 
            Guardadas 
              as devidas diferenças entre três religiões - 
              catolicismo, islamismo e judaísmo - as críticas à 
              clonagem encontram pontos comuns para estas vertentes, como o questionamento 
              das relações de parentesco, que podem abalar o ideal 
              de família, o questionamento da identidade do indivíduo 
              clonado e a possibilidade de aprimoramento genético a partir 
              de um ideal eugênico. Entre as críticas comuns destaca-se 
              a pretensão do homem em comparar-se a Deus.  
               
            Clonagem 
            e catolicismo 
            Segundo o padre Júlio Monari, ex-assessor de Dom Paulo Evaristo 
            Arns e atual professor de História do Cristianismo e Bioética 
            do Instituto Teológico Pio XIX e do Centro Universitário 
            Assunção, a igreja católica defende a existência 
            de vida humana, desde a fecundação, como algo divino. 
            "A vida humana é um dom de Deus, só Ele é 
            senhor da vida, nesse sentido ela reveste-se de um caráter 
            sagrado. O mandamento bíblico não matarás 
            é indicador desta sacralidade, abrange a vida desde a fecundação 
            até a morte natural. Não é permitido portanto, 
            destruir um embrião para obter células tronco, como 
            tampouco abreviar a vida de um ser humano para extrair órgãos 
            para um transplante, a fim de salvar outra vida", afirma padre 
            Monari. Assim, a clonagem com finalidade terapêutica é 
            rejeitada pelo catolicismo, pois quando se trata de extrair células 
            tronco de um embrião acaba-se infringindo o mandamento "Não 
            matarás". "O embrião já é uma 
            vida, que deve ser respeitada por inteiro", afirma padre Monari. 
             
            
            A Carta 
              Encíclica Evangelium Vitae de João Paulo II, 
              não aborda diretamente a clonagem reprodutiva ou terapêutica. 
              No entanto, condena todas as formas de reprodução 
              artificial. Na Carta, as técnicas científicas de reprodução 
              estão lado a lado com outras ações repudiadas 
              pela igreja, como o aborto, a eutanásia, o suicídio 
              e o homicídio. Padre Júlio Monari afirma que o único 
              meio de reprodução humana admitido pelo catolicismo 
              é originado da relação entre homem e mulher. 
              "A Igreja não permite em hipótese alguma a fecundação 
              in vitro, seja ela homóloga, feita com os gametas 
              do casal, ou heteróloga, com um óvulo ou espermatozóide 
              que não provém do casal", afirma ele. 
            Ainda 
              de acordo com o padre Monari a clonagem humana "já existe". 
              "É um fenômeno natural e acontece com os chamados 
              gêmeos legítimos. Já a clonagem artificial realizada 
              em laboratório, seja a reprodutiva ou terapêutica, 
              não é admitida pela igreja católica. 
            A Pontifícia 
              Academia Pro Vita do Vaticano já se pronunciou condenando 
              taxativamente qualquer reprodução via clonagem, tanto 
              para finalidades reprodutivas, quanto para finalidades terapêuticas. 
              Entre os problemas apontados, está a possibilidade da aproximação 
              da clonagem com a eugenia, ciência que estuda as condições 
              mais propícias à reprodução e melhoramento 
              genético da espécie humana e que esteve na base de 
              doutrinas como o nazismo. Paralelamente, pontua-se nesses pronunciamentos 
              outros argumentos contrários a clonagem: redução 
              do significado da reprodução humana ao seu aspecto 
              biológico, numa perspectiva que enquadra a lógica 
              da produção industrial; instrumentalização 
              da mulher, a qual passa a estar limitada às suas funções 
              biológicas, a partir do empréstimo dos óvulos 
              e do útero; perversão das relações fundamentais 
              de filiação, parentesco, consangüinidade e progenitura; 
              falta de identidade da pessoa clonada, que passa a ser uma "cópia". 
            Dos 
              pronunciamentos da Pontifícia Academia Pro Vita, dois abordam 
              respectivamente as clonagens terapêutica e reprodutiva: a 
              "Declaração 
              sobre a produção e o uso científico e terapêuticos 
              das células estaminais embrionárias humanas" 
              , de agosto de 2000, e "Reflexões 
              sobre a clonagem" , de 1997, ambos escritos pelo professor 
              Juan de Dios Vial Correa e Monsenhor Elio Sgreccia. Neste último, 
              é interessante notar que a construção da crítica 
              à clonagem humana se faz numa associação com 
              as idéias do filósofo Friedrich Nietzsche, que se 
              desenvolveram em torno de quatro vetores: a morte de Deus, a Vontade 
              de Poder, o Eterno-Retorno e o Super-Homem e constituem, entre outras 
              coisas, uma das mais profundas críticas ao cristianismo. 
              "A proclamação da morte de Deus, na vã 
              esperança de um super homem, traz consigo um resultado evidente: 
              a morte do homem. De fato, não se pode esquecer que 
              a negação da sua dimensão de criatura, longe 
              de exaltar a liberdade do homem, gera novas formas de escravidão, 
              novas discriminações, novos e profundos sofrimentos. 
              A clonagem corre o risco de ser a trágica paródia 
              da omnipotência de Deus".  
            Clonagem 
              e islamismo 
              O sheik Aly Abdoune, presidente da Assembléia Mundial da 
              Juventude Islâmica da América Latina (WAMY), afirma 
              que o Islã incentiva todo e qualquer avanço científico 
              que venha a beneficiar o homem, mas que a clonagem é totalmente 
              contrária aos princípios islâmicos e à 
              dignidade do indivíduo. Com relação à 
              clonagem humana, sheik Abdoune afirma que a hereditariedade não 
              é respeitada, pois o indivíduo clonado é desprovido 
              de pai e mãe. 
            Assim 
              como a questão do parentesco, outro ponto em comum com a 
              crítica católica, é o dos conflitos de identidade 
              que podem fazer parte da vida de um indivíduo clonado. "Não 
              se leva em conta as dificuldades que esta criatura terá no 
              futuro, pois é fatal que seja questionada pelos seus pares 
              sobre a forma excêntrica pela qual veio ao mundo. Isto com 
              certeza trará problemas psicológicos e poderá 
              inserir na sociedade pessoas sem o menor senso de família, 
              a base de uma sociedade sadia", afirma o sheik, que ainda questiona 
              a responsabilidade da sociedade para com os frutos das experiências 
              da clonagem, possíveis seres humanos defeituosos, física, 
              moral e mentalmente. 
            Acerca 
              da clonagem humana, o sheik Abdoune conclui que criar uma máquina 
              para auxiliar na manutenção da vida de uma criatura 
              é algo incentivado pelo Islã, mas imbuir-se da pretensão 
              de dar vida à esta máquina, dotá-la de alma 
              e consciência deve ser totalmente rejeitado por qualquer criatura 
              com um mínimo de senso ético. 
            O islamismo 
              também condena a clonagem terapêutica. Para o Islã, 
              "o ser humano é merecedor de respeito. Os seres humanos 
              não são criados por partes e não podem ser 
              alvo de experiências. Toda criatura é obra de Deus, 
              o qual instala almas nos corpos, não por pedaços, 
              mas por inteiro. Não se pode aproveitar determinadas partes 
              de um ser vivo e jogar no lixo outras tantas. Isso é assassinato, 
              é desrespeito com o próximo, é uma violação 
              do direito básico à vida", argumenta sheik Abdoune. 
              Neste aspecto, a religião islâmica aceita e incentiva 
              a doação de órgãos, após a morte 
              do indivíduo, desde que haja permissão do doador e 
              da família e que a doação não ocorra 
              por comércio. Segundo o sheik, a doação de 
              órgãos é mais eficiente do que as experiências 
              de laboratório. 
            Clonagem 
              e judaísmo 
              O presidente do rabinato da Congregação Israelita 
              Paulista, rabino Henry Sobel, afirma que é plenamente a favor 
              da pesquisa científica, mas categoricamente contra a clonagem 
              de seres humanos. A posição do rabino muda quando 
              se fala em clonagem animal. Apesar de também conter problemas 
              éticos, ela pode ser justificada com base nos benefícios 
              potenciais para a vida humana. 
            A idéia 
              da presunção do homem em tentar se comparar a Deus, 
              também está presente nas críticas e questionamentos 
              feitos pelo rabino. "Sinto enorme apreensão diante desse 
              fenômeno. Quantos embriões e quantos bebês mal 
              formados serão destruídos nesses procedimentos? E 
              para quê? Para satisfazer o ego de algum cientista? E, mesmo 
              que não houvesse, no processo de clonagem humana, o risco 
              de formação de fetos defeituosos, há um quê 
              de arrogância em reduzir o mistério da Criação 
              a uma experiência de laboratório". A identidade 
              do indivíduo também é apontada como uma forte 
              preocupação para o rabino. "Não posso 
              deixar de me questionar sobre como seria um mundo repleto de clones 
              humanos. Onde ficaria a singularidade de cada indivíduo, 
              a tão fundamental unicidade do ser humano, se essa unicidade 
              fosse negada pela possibilidade de fazer diversos exemplares de 
              uma pessoa", diz o rabino Sobel. 
            Outro 
              ponto crítico apontado pelo rabino com relação 
              à clonagem é o fato de que, estabelecida a técnica 
              para fins terapêuticos, nada garante que ela não seja 
              usada para fins reprodutivos. Ambas podem ser disseminadas dificultando 
              o controle por parte dos governos e abrindo brechas para a proliferação 
              de clínicas clandestinas, tal como existe para o aborto. 
            A eugenia 
              também esta entre os pontos que preocupam o rabino. "Não 
              é absurdo imaginar um banco de células fornecendo 
              matéria-prima para clones de pessoas física ou mentalmente 
              superdotadas. A História já nos deu provas aterradoras 
              do que acontece quando se procura 'aprimorar' a raça humana, 
              a mesma História que nos ensina que a ciência não 
              tem consciência". O rabino diz que, assim como existem 
              cientistas e médicos de elevada moralidade, também 
              há aqueles que se entusiasmam com a pesquisa científica, 
              sem levar em consideração a ética, a finalidade 
              e os meios utilizados. Ele tem dúvidas sobre se a humanidade 
              está realmente preparada para assumir a responsabilidade 
              coletiva de discernir o bem do mal.  
            Clonagem 
              e espiritismo 
              Já os espíritas (kardecistas) posicionam-se de uma 
              forma mais cautelosa, apesar de criticarem algumas possibilidades 
              trazidas pela técnica da clonagem. A doutrina espírita 
              surgiu no século XIX e recebeu forte influência do 
              evolucionismo e em muitas ocasiões apoia-se nele e na ciência 
              para explicar questões espirituais. Para a médica 
              espírita Marlene Rossi, presidente da Associação 
              de Médicos Espíritas (Amesp), os últimos avanços 
              na área biológica levaram a uma crise ética 
              sem precedentes na história da ciência e possibilitaram 
              o mais sério encontro entre ciência e religião 
              dos últimos séculos. Para ela, não há 
              dúvidas de que a ovelha Dolly tem alma ou princípio 
              inteligente, do contrário não seria um ser vivo. "Só 
              o Espírito tem o poder de agregar matéria e, consequentemente, 
              de formar o corpo físico, segundo o molde contido em seu 
              envoltório, o perispírito. Assim, se a clonagem humana 
              for sucesso, certamente, não produzirá robôs, 
              mas seres autênticos e distintos uns dos outros, porque cada 
              Espírito carrega em si uma experiência única, 
              de bilhões de anos de evolução", afirma 
              a doutora Marlene Rossi, que ressaltou também a ineficiência 
              atual da técnica de clonagem. 
            A médica 
              relembra que, para fabricar a Dolly, foram feitas 277 tentativas. 
              Formaram-se 29 embriões e apenas um teve êxito. Constatou-se, 
              porém, que Dolly está precocemente envelhecida. Embora 
              tenha nascido há cinco anos, suas células são 
              equivalentes às de uma ovelha de 12 anos. Este fato estaria 
              ligado a um dos principais problemas da clonagem, o de lidar com 
              células adultas, que estão sujeitas a muitas mutações 
              e, segundo ela, à questão espiritual. O envelhecimento 
              precoce dos clones indicaria que há falhas no processo de 
              produção de fluido vital ou ectoplasma (envoltórios 
              espirituais), provavelmente envolvendo os genes citoplasmáticos 
              e os do núcleo. O clone teria herdado um processo vital em 
              andamento, reiniciado do ponto interrompido, quer dizer do número 
              de anos já vividos pela ovelha clonada.  
            Do 
              ponto de vista espiritual, Marlene Rossi afirma que, no atual estágio 
              evolutivo, a clonagem humana é indefensável. "Nada 
              pode justificar a realização de experiências 
              com organismos humanos vivos; fazer pesquisas in anima nobile 
              é imoral", diz ela. Do mesmo modo, seria indefensável 
              a manipulação de embriões com finalidade eugênica. 
              Com tais "escolhas" genéticas, os cientistas permanecerão 
              circunscritos ao campo físico, sujeitos às mesmas 
              frustrações de Hitler, diante de Jesse Owens, o expoente 
              negro do atletismo norte-americano, vencedor das Olimpíadas 
              de 1938, em que bateu todos os "arianos puros" alemães. 
              Isto ocorre porque não se pode desconsiderar o Espírito 
              imortal, único responsável pelas qualidades físicas, 
              morais e intelectuais da individualidade, argumenta Rossi. 
            A médica 
              reconhece que a ciência deve seguir seu curso próprio, 
              desvendando os segredos da natureza. "O nosso respeito pelas 
              conquistas científicas está alicerçado, sobretudo, 
              nas lições de Allan Kardec", diz ela. O respeito 
              aos avanços técnico-científicos não 
              significa uma aceitação tácita de liberdade 
              ética indiscriminada para o cientista. "O pesquisador 
              despreocupado das questões espirituais prosseguirá, 
              normalmente, com a clonagem humana terapêutica; para os especialistas 
              espíritas, no entanto, as indagações éticas 
              continuam em aberto, aguardando respostas mais definitivas", 
              conclui Marlene Rossi. 
            (MK) 
               
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