O Salto Cântico da Física
   
 
O salto cântico da Física:
Carlos Vogt
Física Quântica, o que é e para que serve:
Almir Caldeira

Ondas estacionárias circulares:
Luís Ferraz Netto

A interpretação da Mecânica Quântica:
Silvio Seno Chibeni

A Física no final do séc. XIX:
Roberto Martins

Max Planck e o início da teoria quântica:
Jean-Jacques de Groote
Teoria Quântica:
Jean-Jacques de Groote

A descoberta da estrutura atômica:
Afonso de Aquino

Caos e Mecânica Quântica:
Ozorio de Almeida e Raúl Vallejos
Digressões sobre a importância da Ciência Básica:
Peter Schulz e Marcelo Knobel

Dos transistores aos computadores:
Anna Paula Sotero

Quântica e a ciência dos materiais:
Alexandre Barros

O laser e a pesquisa básica:
Elza Vasconcellos

Consciência quântica ou consciência crítica?:
Roberto Covolan

Mecânica quântica e interpretação na mídia:
Ulisses Capozoli

Einstein e a Mecânica Quântica:
David Martinez

Poema
 

Carlos Vogt

A afirmação de Heisenberg, responsável, em 1927, pela introdução na Física do princípio de indeterminação, de que "o único objeto da Física Teórica é o de calcular resultados que possam ser comparados com a experimentação, sendo completamente inútil fazer uma descrição satisfatória de todo o desenvolvimento do fenômeno (Principles of Quantum Mechanics, 1930, p.7), dá bem a medida das profundas transformações que essa ciência conheceu nas primeiras décadas do século XX e que resultaram no que, de um modo geral, passou a ser conhecido como Física Moderna, ou mais especificamente, no caso, como Física Quântica.

Como o objeto da Física é o estudo da natureza, seus métodos, fundamentos teóricos e objetivos epistemológicos estão em relação direta com as concepções que se têm de seu objeto, isto é, da natureza. O que equivale a dizer que, ao menos do ponto de vista histórico, como acontece com qualquer área do conhecimento, há um certo relativismo teórico que permite reconhecer, em diferentes épocas, diferentes modos de conceber a ciência.

Nesse sentido, pode-se falar que a Física que nasce com Aristóteles no século III a. C., ocupa-se da "substância que tem em si mesma a causa de seu movimento", conforme escreve o filósofo grego em sua Metafísica, VI, 1, 1025 b 18, isto é, a Física é uma teoria do movimento.

Essa concepção mantêm-se viva até as origens da ciência moderna, no Renascimento, quando se dá uma grande transformação no conceito de natureza e de suas relações com o homem, através do conhecimento.

De ordem objetiva, esse conceito nos apresenta a natureza escrita em caracteres matemáticos, destituída de finalidade, absolutamente necessária em termos lógicos e epistemológicos, quer dizer, objetivamente verdadeira e tangível através dos experimentos científicos.

Abandona-se, assim, definitivamente, a idéia de que a Física devesse se ocupar da causalidade do movimento pela tarefa teórica, amadurecida com a obra de Newton, no século XVII, de descrever a ordem natural, "com experiências seguras [...], com o auxílio da geometria" procurando, como escreveu Kant no século XVIII, "estabelecer as regras segundo as quais ocorrem certos fenômenos na natureza".

A razão e o racionalismo conduzem a ciência na busca da previsibilidade dos fenômenos naturais pelo estabelecimento das regras capazes dessa previsão e que permitam, ao mesmo tempo, como condição de seu entendimento, a descrição visual do desenvolvimento dos fenômenos, representando-lhes a estrutura através de partículas em movimento.

Como escreveu Comte, filósofo do Positivismo, no século XIX, "o caráter fundamental da Física Positiva é considerar todos os fenômenos como submetidos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta exata e cuja redução ao mínimo número possível constituem os objetivos de todos os nossos esforços, considerando-se absolutamente inacessível e sem sentido a busca daquilo a que se dá o nome de causas, sejam elas primárias ou causais".

Desse modo, a descrição substitui a explicação como tarefa da Física e a formulação de suas leis segue rigorosamente o paradigma racionalista do reducionismo lógico: há objetivamente uma ordem natural das coisas e a Física, ciência da natureza, deve representá-la consistentemente, formulando-lhe as regras fundamentais de sua descrição.

À busca da causalidade do movimento de que são dotadas as substâncias, na Física aristotélica, segue-se pois, no mecanicismo da Física iluminista, a procura de uma nova forma de causalidade, a chamada causalidade necessária que subjaz à noção de ordem natural das coisas e cujas leis, como se disse, é tarefa da Física estabelecer, pelo estabelecimento das relações entre os fenômenos que dão concretude à ordem natural e pela demonstração empírica, através de experimentos, dessas relações.

Tinha-se nesse momento a sensação de que a Física havia concluído sua tarefa e que, excetuando-se alguns aspectos que era preciso ainda costurar, a ciência chegara às portas da grande Resposta.

Mas aí, e nesse momento se tem o marco da terceira fase da evolução da Física, Max Planck, em 14 de dezembro de 1900, anuncia, na Sociedade Berlinense de Física, que a energia não é emitida e tampouco absorvida continuamente, mas sim na forma de pequeninas porções discretas chamadas quanta, ou fótons, cuja grandeza é proporcional à freqüência da radiação.

Nascia a Física Quântica e consolidavam-se as mudanças de concepção que já vinham sendo anunciadas desde os fins do século XIX.

Em 1894, no livro Princípios de Mecânica, Henrich Hertz, físico alemão que em 1897 havia descoberto as ondas eletromagnéticas, já escrevia que "o mais imediato e, em certo sentido, o mais importante problema que o nosso conhecimento da natureza deve capacitar-nos a resolver é a previsão dos acontecimentos futuros, graças à qual poderemos organizar nossas atividades no presente".

Em 1927, Niels Bohr, com seu princípio de complementaridade, segundo o qual "não é possível realizar simultaneamente a descrição rigorosa do espaço-tempo e a conexão causal rigorosa dos processos individuais", anunciando que "uma ou outra deve ser sacrificada", sela a trajetória da Física como descrição total da ordem da natureza e a pretensão de que pudesse realizar-se, efetivamente, como teoria da necessidade dessa ordem natural.

Einsten e Infeld em The Evolution of Physics, anotando que fora necessária "uma corajosa imaginação científica para reconhecer que o fundamental para a ordenação e a compreensão dos acontecimentos podia não ser o comportamento dos corpos; mas o comportamento de alguma coisa que se interpõe entre eles, isto é, o campo -", indicam de forma clara os problemas que a Física Relativista trazia para a pretensão da Física Clássica de realizar a descrição do curso dos fenômenos através da representação visual das partículas em movimento.

Já não se trata mais nem de descrever, pela ambição da totalidade das representações, nem de explicar, pelo finalismo causal do movimento, a arquitetura da natureza, mas sim de prever os eventos observáveis consubstanciando-se a Tarefa da Física Moderna, que nasce com a Mecânica Quântica, na famosa observação de Heisenberg, quando escreve, em 1955, que a Física contemporânea não busca mais oferecer "uma imagem da natureza, mas uma imagem das nossas relações com a natureza".

A introdução do observador como elemento integrante, integrado e integrador da observação e do fenômeno observado relativiza o racionalismo objetivista e desenvolve, de um lado, uma dualidade na ciência que a manterá em contínua tensão com a busca obsessiva de sua unificação e da construção da teoria unificada capaz de fornecer ao homem a Resposta definitiva sobre a origem de tudo.

Físicos importantes, como Sheldom Glashow, prêmio Nobel, juntamente com Steven Weinberg e Abdus Salam, referem-se, em tom de desilusão a esse objeto de desejo da ciência como um Santo Graal da Física teórica, do mesmo modo que biólogos se referiram às perspectivas abertas pelos estudos do DNA recombinante e, depois, da Genômica, usando a mesma metáfora andante dos cavaleiros de Cristo.

O fato é que o desenvolvimento da Física Moderna impulsionado pela criação da Mecânica Quântica e pela Teoria da Relatividade, de Einsten, não se libertou dessa tensão e, ao contrário, levou-a aos limites da demonstrabilidade empírica e da testabilidade experimental.

Não se pode negar a efetividade tecnológica decorrente do desenvolvimento da Mecânica Quântica nos mais diversos campos, entre eles os da microeletrônica e transistores, dos novos materiais, dos raios laser, da informática, dos supercondutores, e tantas outras apropriações que transformaram e se cotidianizaram no mundo contemporâneo, a ponto de se constituírem em fatores fundamentais do modelo econômico da globalização.

E isso pelos padrões de caracterização dessa terceira fase da evolução da Física, constitui uma medida indispensável para a aferição de suas verdades, o que dá ao conhecimento científico um pragmatismo que, se antes não lhe era estranho, não lhe era, contudo, constitutivo.

Mas no afã de encontrar a Resposta, pela construção de uma teoria unificada da Física, muitos cavaleiros dessa demanda laico-sagrada ultrapassaram as fronteiras da ciência e (re)ingressaram na fecunda criatividade do mito, da literatura e do misticismo religioso, como é o caso de Hoyle, de Capra, de Bohm, de Hawking e de muitos outros.

Não espanta, então, o fato de ter havido e continuar a haver tantas apropriações não físicas da Física Quântica, em especial as esotéricas e as que carregam no subjetivismo relativista de uma enorme quantidade de bobagens pseudo-científicas.

Mas é preciso lembrar que Einsten passou os últimos anos de sua vida buscando encontrar uma teoria que unificasse a Mecânica Quântica com a sua Teoria da Relatividade Geral. Muitos deram prosseguimento a essas andanças, viajando por universos paralelos, universos-bebês, universos inflacionados, buracos de minhocas, supercordas e outras metáforas engenhosas e imaginativas mas absolutamente imensuráveis.

Da indeterminação à incerteza e desta à formulação epistemológica da filosofia de Popper foram passos conseqüentes que levaram à formulação de uma visão probabilística e não mais racionalista da verdade.

Desse modo, a ciência aproxima-se da verdade, mas não chega a ela jamais: a revelação é impossível. A refutabilidade da teoria como método dinâmico para a superação contínua do conhecimento pelo conhecimento traz implícito um conceito logicamente negativo da verdade: prova-se o que não é, mas não o que é verdadeiro e, assim, evita-se o pavor do encontro definitivo com a Resposta que, se enunciada, nos condenaria a todos a um estado beatífico de inutilidade existencial. Mas a refutabilidade de Popper, seria ela mesma refutável? E se sim, a engenhosidade cética do método crítico, conseguindo evitar o paraíso do conhecimento absoluto para preservar a fé e a esperança do homem na ciência, não impediria, entretanto, que a sua progressividade se precipitasse no inferno teórico da regressão infinita, o mesmo inferno aberto pela possibilidade de não haver nenhum fundamento básico para o mundo físico, mas apenas partículas cada vez menores que se sucedem, encaixadas umas nas outras, como bonecas russas ou caixinhas chinesas, infinitamente.

Ao concluir o comentário que faz sobre John Wheeler, "um dos intérpretes mais influentes e inventivos da Mecânica Quântica, bem como da Física Moderna", aluno de Bohr, autor da expressão buraco negro e it do bit, com que chamou definitivamente atenção para as relações entre a Física e a Teoria da Informação, nome-chave para a idéia de que o universo, sendo um fenômeno participativo, requer o ato de observação e, logo, a consciência, além de ter se envolvido na construção da primeira bomba atômica e da primeira bomba de hidrogênio, John Horgan, autor do livro O Fim da Ciência escreve:

"[...] ele nos dá corajosamente um paradoxo adorável e desalentador: no coração de toda realidade existe uma pergunta, e não uma resposta. Quando examinamos os recessos mais profundos da matéria ou a fronteira mais remota do universo, vemos, finalmente, o nosso próprio rosto perplexo nos devolvendo o olhar."

Aqui, se não há encontro com a Resposta, há confronto harmônico com a poesia, como esta, da prosa realisticamente perturbadora de Jorge Luiz Borges:

"Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de habitação, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto."

   
           
     

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Atualizado em 10/05/2001

   
     

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