Passado, Presente e Futuro da Física Quântica: Digressões sobre a Importância da Ciência Básica
   
 
O salto cântico da Física:
Carlos Vogt
Física Quântica, o que é e para que serve:
Almir Caldeira
Ondas estacionárias circulares:
Luís Ferraz Netto
A interpretação da Mecânica Quântica:
Silvio Seno Chibeni
A Física no final do séc. XIX:
Roberto Martins
Max Planck e o início da teoria quântica:
Jean-Jacques de Groote
Teoria Quântica:
Jean-Jacques de Groote
A descoberta da estrutura atômica:
Afonso de Aquino
Caos e Mecânica Quântica:
Ozorio de Almeida e Raúl Vallejos
Digressões sobre a importância da Ciência Básica:
Peter Schulz e Marcelo Knobel
Dos transistores aos computadores:
Anna Paula Sotero
Quântica e a ciência dos materiais:
Alexandre Barros
O laser e a pesquisa básica:
Elza Vasconcellos
Consciência quântica ou consciência crítica?:
Roberto Covolan
Mecânica quântica e interpretação na mídia:
Ulisses Capozoli
Einstein e a Mecânica Quântica:
David Martinez
Poema
 
Peter A.B. Schulz e Marcelo Knobel

 
#7-10 Jam Session - Acrílico sobre tela de Faye Cummings, 1994

Nós gostamos de Jazz. Muita gente gosta de Jazz. Mesmo os que não gostam admitem que a vida seria mais pobre se não existisse esse gênero musical. Admitem isso talvez porque extinção de um tipo de música (do qual não gostam) abriria um precedente que poderia levar ao desaparecimento de outros gêneros, tais como o Blues, ou o Rock, por exemplo. Ou seja, a evolução do Jazz interessa direta ou indiretamente a todos. Entre os seus ingredientes principais, de importância central na vitalidade do Jazz, estão as chamadas "Jam sessions", as "sessões de Jazz após a meia-noite". São nessas sessões que os músicos tocam o que realmente querem, depois que o grande público já foi pra casa ou para outros bares. É nesse momento que se experimentam, improvisam-se e inventam-se novas maneiras de tocar, que depois serão eventualmente apreciadas por todos. Por outro lado, aos que perguntam o que é afinal de contas o Jazz, os puristas dessa arte, muitas vezes, alardeiam um folclórico preconceito de pronunciar a frase "se você tem que perguntar o que é, você nunca vai sabê-lo". Independentemente desse mau humor, o público e a indústria cultural agradecem aos jazzistas, dos mais populares aos inveterados praticantes do Jam.

Essa história pode ser perfeitamente transposta à ciência, suas vertentes e relações com o público e a sociedade. É sobre isso que escreveremos a seguir, baseando-nos na Física Quântica, cuja origem remonta aos primeiros anos do século passado. Numa analogia entre o Jazz e a Ciência, colocaríamos a "Jam session" como equivalente ao que se convencionou chamar de "Ciência Básica" (ou Pura, em oposição à "Ciência Aplicada"). 

De uma maneira bem geral, pode-se dizer que a ciência aplicada busca soluções em curto prazo, com objetivos delimitados, com uma aplicação direta em algum dado problema específico (demanda externa à comunidade científica). Por outro lado, a ciência pura busca resolver problemas de caráter mais geral, sem um objetivo muito delimitado, e muitas vezes sem nenhuma aplicação prática aparente (demanda interna à comunidade científica). Vamos começar por um exemplo: no início da Física Quântica, Einstein desenvolveu o conceito fundamental de emissão estimulada, relacionado com propriedades intrínsecas da matéria. Dificilmente encontraríamos um estudo de ciência básica mais característico. Décadas depois, baseado nesse conceito, foi desenvolvido o primeiro protótipo de um amplificador de luz por emissão estimulada de radiação: ou simplesmente LASER (Light Amplification by Stimulated Emission of Radiation - amplificação de luz pela emissão estimulada de radiação-, ver artigo nesta edição de Elza Vasconcelos). Hoje em dia existem desenvolvimentos específicos de LASERS aplicados às mais diversas áreas, da medicina à metalurgia, passando por telecomunicações e eletrônica de consumo. Hoje em dia, um técnico trabalhando no aperfeiçoamento de um LASER de alta potência para cortes de chapas de aço constitui um caso claro de ciência aplicada.

Do mesmo modo, era simplesmente inimaginável no início do século XX para onde a idéia revolucionária de quantização de energia, proposta inicialmente por Max Planck, poderia levar. Hoje, passado mais de um século do nascimento da Física Quântica, podemos olhar para o passado e ver que quase a totalidade dos objetos "modernos" de nosso dia a dia deve a sua existência à Física Quântica. Ninguém que viveu no primeiro quarto do século XX poderia sequer desconfiar que estudos aparentemente tão longínquos da realidade, como espectros de corpo-negro, efeito fotoelétrico, espectros de emissão e absorção atômicos, e outros objetos de estudo daquele período, formariam a base de uma teoria, que seria responsável direta pelo futuro desenvolvimento não só do LASER, mas também de equipamentos eletrônicos, computadores e uma enorme quantidade de outras maravilhas que fazem parte de nosso cotidiano. 

A relação entre as Ciências Básica e Aplicada não é, no entanto, uma via de mão única. A Ciência Aplicada também pode dar origem a novos problemas de caráter fundamental. Vejamos a origem da própria Física Quântica. Muitas das observações experimentais feitas no século XIX, ligadas a problemas tecnológicos como o controle da temperatura de fornos metalúrgicos (ver artigo nesta edição de Roberto Martins) simplesmente não puderam ser entendidas dentro do âmbito da Física Clássica. Os espectros de emissão térmica de Corpos Negros (bom modelo para um forno) só puderam ser descritos com a introdução do conceito de quantização de energia. Assim, a motivação de Planck para seus trabalhos sobre a radiação de corpo negro é também um bom exemplo de como a Ciência Aplicada pode levar a descobertas na Ciência Pura ou Básica. Isso nos leva a suspeitar que a divisão entre ciência básica e aplicada tende a ser inexata e artificial.

Antes de discutirmos um pouco mais detalhadamente o papel da Ciência Básica, vale a pena comentar um pouco sobre o atual estágio em que se encontra a Física Quântica, pelo menos de algumas de suas ramificações, passados mais de cem anos de seu advento. Muitos acreditam que se trata de uma Ciência com os fundamentos bem estabelecidos, mas muitos estudos de Mecânica Quântica básica continuam sendo realizados e não se limitam à busca de aplicações. Não existem evidências experimentais bem documentadas das quais a Mecânica Quântica não daria conta, embora um número relativamente pequeno de cientistas se preocupe (e devem se preocupar!) em definir onde se encontrariam os limites dessa visão do mundo. Por que então testar e voltar a testar essa teoria em novas situações encontradas na natureza (descrição mecânico-quântica das propriedades de moléculas de proteínas, por exemplo) ou criadas em laboratório (as chamadas caixas quânticas ou átomos artificiais, como outro exemplo)? Uma resposta interessante está no conceito de complexidade introduzido por P. W. Anderson nos anos 70. Aos poucos os especialistas foram se dando conta - e lentamente esboçando um novo objetivo científico - de que o conhecimento das leis fundamentais da natureza não garante o entendimento do funcionamento do universo. Descrever exaustivamente as pequenas peças que compõe o mundo não implica que possamos entender como elas funcionam em conjunto. Quanto maior o número de peças em um sistema, mais complexo ele se torna e novos efeitos, absolutamente imprevisíveis a partir das leis fundamentais, podem surgir. Mais um exemplo: descrever as propriedades dos metais a partir do comportamento de elétrons individuais foi um dos grandes sucessos da Física Quântica. Mas, para entender o fenômeno da supercondutividade é necessário estudar o comportamento de um conjunto grande de elétrons interagindo entre si em situações muito específicas.

O futebol pode fornecer uma ilustração útil dessa idéia de complexidade. Trata-se de um esporte envolvendo um número razoavelmente pequeno de participantes atrás de um objetivo aparentemente simples (ganhar o jogo através de esforços coletivos para colocar o maior número possível de vezes a bola no gol do adversário). O número de regras básicas que devem ser seguidas pode ser dominado por qualquer criança. O número de fundamentos (chute, drible, passes...) também é restrito. O resultado desse conjunto de regras e condições tão simples é um espetáculo complexo em contínua evolução, com valores que para todos (mesmo para aqueles que só de vez em quando assistem aos jogos da Seleção Brasileira) transcendem à mera torcida pelo resultado. São fenômenos coletivos, que se renovam e são reinventados desde o surgimento desse esporte e que simplesmente são imprevisíveis a partir de suas regras, objetivos e fundamentos.

No futuro esses estudos terão alguma aplicação prática? No caso das proteínas o conhecimento da seqüência química não é suficiente para descrever (e possivelmente modificar) suas funções biológicas, que muitas vezes estão associadas à morfologia (sua forma), que necessita da Química Quântica para ser desvendada. O outro exemplo mencionado, átomos artificiais, caixas sub-microscópicas feitas de semicondutores, contendo um pequeno número controlável de elétrons, poderão vir a ser os componentes que realizariam o conceito de Computação Quântica nas próximas décadas.

A busca do melhor entendimento de sistemas complexos é um dos maiores desafios da ciência atual, entretanto, tentar adivinhar o futuro desses estudos não passa de um exercício especulativo. Então, até que ponto vale a pena investir em Ciência Básica? Muitos experimentos são caríssimos, e provavelmente vários não levarão a lugar algum do ponto de vista de aplicações. Em outras palavras, a razão custo-benefício é compensadora? Como essa questão é freqüente, e sempre presente nas conversas e na mídia, vale a pena tentar levantar alguns pontos referentes ao papel da ciência em nossa sociedade, e em particular em um país em desenvolvimento como o Brasil.

Existem muitas pessoas, incluindo políticos, jornalistas e até cientistas, que acreditam que em um país como o nosso não se deva incentivar a Ciência Pura. Voltando ao exemplo da Física Quântica, segundo Leon Lederman, Prêmio Nobel e Diretor Emérito do Fermilab, mais de 25% do produto interno bruto norte-americano depende de tecnologias que surgiram diretamente conectadas a fenômenos essencialmente quânticos (Leon Lederman, The God Particle, Houghton Mifflin 1993). Porém, tal desempenho de uma Ciência Básica nem sempre ocorre, mas não devemos nos ater apenas ao "sucesso econômico direto" da ciência, mas lembrar dos reflexos indiretos que ela provoca, além da complexa questão sobre a divisão entre o que é básico e o que é aplicado.

De acordo com John Ziman, em seu famoso livro "A Força do Conhecimento", no capítulo sobre Ciência e a Necessidade Social, a função social da pesquisa básica é encarada sob três pontos de vista distintos: o primeiro, e mais comum, refere-se ao exemplo principal de que já tratamos neste artigo. É o que afirma que a pesquisa básica constitui o suporte da pesquisa aplicada, mesmo que em longo prazo. Além da história da Física Quântica, há inúmeros casos na história da Ciência onde princípios científicos fundamentais adquiriram enorme aplicabilidade tecnológica com o passar dos anos. Além disso, muitas vezes justificam-se os enormes gastos em projetos mirabolantes, como levar o homem à lua, ou a construção de uma estação espacial, referindo-se à enorme quantidade de sub-produtos comercializáveis que esses projetos produzem. A NASA e os fãs de Fórmula-1 não se cansam de usar esse argumento.
 
Where Do We Come From? What Are We? Where Are We Going? - Óleo sobre tela de Paul Gauguin, 1897

O segundo ponto de vista também já foi comentado anteriormente, ao sugerir a analogia da Ciência Básica com as jam sessions, ou seja, por si só a Ciência Pura constitui um evento estético e espiritual para a humanidade, digno de ser praticado e aclamado, como ocorre com qualquer manifestação artística. De fato, por mais que tentemos, talvez não consigamos vislumbrar uma futura aplicação para estudos de Astrofísica. Mas, ainda de acordo com Ziman, se essas pesquisas podem nos levar a um pequeno avanço no entendimento do Universo, quem somos, de onde viemos, e para onde vamos, será que isso não vale mais do que os benefícios materiais? Afinal, de um modo ou de outro, com maior ou menor intensidade, essas questões sempre intrigaram a humanidade e são inerentes ao ser humano. Nesse contexto, o financiamento da Ciência Básica pode ser encarado com o mesmo espírito do financiamento de uma orquestra sinfônica. É caro? Sim, muitas vezes parece muito caro, mas a complexidade da questão impede obter uma resposta única e precisa.

Finalmente, uma visão política-pragmática entende que é importante a educação técnica (no sentido amplo) de estudantes de ensino superior. E quem ensina esses estudantes deve estar trabalhando em problemas desafiadores em contato com outros pesquisadores, estar motivado com o seu trabalho, e com a mente aberta para receber e processar novas informações, para assim melhorar a qualidade de ensino. Nesse sentido, a Universidade concentra pessoas dispostas a aprender e ensinar, altamente qualificadas, o que gera um círculo de realimentação positiva em torno dessa questão. A educação desvinculada da própria geração de conhecimento básico é problemática e leva inevitavelmente a uma queda irreparável na qualidade do ensino.

Uma sociedade desenvolvida não pode prescindir da Ciência Básica, aliás nenhuma sociedade moderna tornou-se desenvolvida sem o auxílio da Ciência Básica. Um país de Terceiro Mundo não tem outro paradigma ao qual recorrer em um projeto de desenvolvimento a longo prazo. A dificuldade em fazer projeções sobre seus custos e benefícios não constitui uma limitação da Ciência Pura e sim das ciências econômicas. A discussão sobre a necessidade de financiar pesquisas de caráter fundamental não pode, portanto, estar unicamente atrelada ao avanço das ciências econômicas no cálculo de valores de difícil inserção em planilhas e balanços contábeis. Trata-se de operações de risco, cujos significados são balizados pela história e interpretados pela sociedade de acordo com o seu acesso aos resultados dessas pesquisas. Se no Brasil temos Jam Sessions, corridas de Fórmula 1, orquestras sinfônicas, devemos ter também Ciência Básica bem divulgada. 

Peter A.B. Schulz e Marcelo Knobel são professores do Institutos de Física Gleb Wataghin da Unicamp

   
           
     
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Atualizado em 10/05/2001
   
     
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